LINHO DOR... LINHO AMOR
Ecoavam pelos ares secas pancadas
À hora do calor, debaixo das ramadas
Era o martírio do linho
Estranho ritual de dor
Que obrigava a castigar o nosso amor
Em penosa festa
À beira do caminho
Linhaça no linhal
Semeado, regado, mondado
Linho amado de corpo e alma
Linho bendito que o povo salma
Em cânticos perfumados de ternura
A suavizar mil gestos de tortura
Tortura... amor também
Raízes arrancadas sem dó nem piedade
Ao aconchego da terra sua mãe
Repouso refrescante
Em água límpida e reconfortante
Suavidade e maciez
Em leito de bondade
No ribeiro de murmúrios doloridos
Aos caules ressequidos
À hora do calor debaixo das ramadas
Mãos sofridas fiando a tarde inteira
Torcendo o linho com jeitinho
Girando o fuso devagarinho
Mãos molhadas na boca
Jogo de sedução do fuso para a roca
Mãos que dobavam dobadoira louca
Incansável girar em rodopio
Sala da tecedeira, artista da teia e do tear
Fio cruzado, entrecruzado
Fio com arte por fim armado
Teia tecida, entretecida, para cá, para lá, até cansar
E outra, e tanta vez
Ao ritmo da dança de seus pés
Pano tecido que cobria coradoiros
De aromas a limpeza, aromas a barrela
Quadro de tortura
Dor com estigmas de fogo ardente
Carvão e cinza, água fervente
Pano corado
Terno panal de pia baptismal
Lençol de noiva cem vezes contado
Rico ou pobre enxoval
Enfeite lindo de mesa pascal
Ornamento de altar, alva toalha
Fria e triste mortalha
Linho coragem, retrato todo dor
Na dor daquele bater, do maçar e do tascar
Na dor daquele sofrer do sedar e do arrepelar
Por gestos todos eles feitos de amor
Ecos de dor sentidos com ternura
Ternura, dor, saudade
Debaixo das ramadas da minha mocidade!
*Aurora Simões de Matos
( excerto do poema " Linho dor... linho amor )
in " Poentes de mar e serra" - 1997