(Baseado em factos reais e com a devida autorização da família. Nome fictício.)
Amor magoado
Rosalina saiu de casa, ainda o Sete-Estrelo brilhava no
escuro do céu, por entre milhões de pontinhos tremeluzentes. Faltaria cerca de
uma hora para a Estrela d’ Alva anunciar o começo do dia, na madrugada que
abriria caminho a uma manhã soalheira de verão, em seus princípios.
Já tinha descido à Paiva, por atalhos quase a pique entre
gordos milheirais. Atravessara as poldras, seguia agora o carreiro que
serpenteava pelo monte, a subir, a subir, sempre a subir serra acima.
Ao colo, a filha de três meses, embrulhada no velho lenço de
merino. À cabeça, sobre a rodilha, a pequena canastra com meia rasa de feijão,
a broa de milho cozida na véspera, a lata de quartilho de azeite, a chouriça
que a sogra lhe dera. Na saca de trapos, as calças de cotim que Joaquim lhe
deixara para lavar e remendar.
De alma angustiada e corpo denegrido pela violência do
marido, Rosalina meteu-se a caminho, até às minas de Regoufe, na esperança de,
com aqueles mimos, fazer as pazes com ele. Apesar de tantas vezes sentir na
carne as dores injustas das bordoadas, não conseguia estar zangada. Era o
pai dos oito filhos que deitara ao mundo e isso lhe bastava, entendia ela, para
o amar e respeitar.
No barroco de Deilão, já manhã velha, parou a uma fresca,
para dar de mamar à menina. O velho pegureiro, conhecendo-a de outras
caminhadas e de outros desabafos, meteu conversa e ofereceu-lhe umas peras,
dividindo o frugal almoço. Como se a partilha fosse uma obrigação dos pobres.
Na despedida, ainda augurou:
- O mais certo é que, à vinda, tragas outro filho na
barriga. Vais fazer-lhe festinhas, depois não te queixes…
Rosalina já não o ouvia e, a passo certo, escolhendo as
poucas sombras dos castanheiros, continuou caminho, na busca de um sorriso, uma
palavra carinhosa, quem sabe uma nota de vinte na algibeira.
Cerca de duas léguas, por entre atalhos sinuosos e solitários, a
separavam ainda do Alto dos Engonchos. Mas também, quando aí chegasse, por
pouco se avistariam já as minas.
Depois de mais de quatro horas a andar, alcançou finalmente o seu
destino, ao fim da manhã. Joaquim gozava a hora de refeição. Ao vê-la,
surpreendido, olhou-a nos olhos pisados, pegou na filha e, em silêncio,
ajeitou-a no chão, ao canto da enxerga de palha.
Num repente, como se toda a vida
tivesse estado à espera daquele momento, cobriu, com o seu, o corpo exausto e
sem ação da mulher que, entre beijos, lágrimas e graças a Deus, sentiu
mansamente o forro da barraca encher-se de minúsculas estrelinhas que se
transformavam em estrelas maiores, luas cheias e sóis cada vez mais brilhantes
e poderosos, até rebentarem numa explosão de luz e cor e música e felicidade.
Ao voltar do céu à Terra, no momento da descontração total, murmurou num
sussurro:
- E o anjinho, ali quietinho, nem acordou!
Dois dias depois, Rosalina fazia a viagem de regresso aos
filhos que deixara com a avó. Tinha valido a pena a caminhada que fizera pelo
coração do seu homem. A que lhe devolvera o sorriso e as boas palavras de
Joaquim. A que, alheia a cansaços, lhe trouxera ânimos com que haveria de ultrapassar
as trabalheiras da vida.
Com a canastra vazia, ao passar pelo barroco de Deilão, foi
avistada, de longe, pelo velho pegureiro que, ao ouvi-la cantar “meu amor era
mineiro…”, comentou para os seus botões:
- Canta, canta, que logo bebes… Aposto que já aí levas mais
um filho. Valha-te Deus, rapariga! Mais te valia estares quieta!
Mas de novo Rosalina não o ouviu. Parou para molhar o rosto
e beber água fresca, mudou o cueiro à criança, soltou os belos cabelos louros,
penteou-se com a travessa e ajeitou o noco. Ao fixar os olhos, do mais puro
azul, no fio cristalino do riacho, pareceu-lhe que a água corria ao invés, como
se o calor que levava dentro de si, mais forte que o sol do meio-dia, lhe
alterasse a visão e o sentido real das coisas. Como uma tontura, daquelas que
costumava sentir logo que engravidava. Logo, no primeiro dia… já era costume.
Não deu importância. Estava habituada a andar sempre grávida.
Só queria que ninguém a maltratasse. E foi este pensamento triste que lhe fez
brotar dos lindos olhos as lágrimas que lhe rolaram pela face magoada e lhe
avivou recordações que não deveria ter no mesmo peito onde guardava tanto amor.
Lembrou os meses em que Joaquim, doente e muito tempo em
casa, gostava de umas gemadas com vinho do Porto. Para lhe dar força! – dizia.
E fora assim que, também ela a necessitar de força, começara a beber. Por gula,
que se transformaria em vício. Vício que se transformaria em pesadelo. Pesadelo
que se transformaria no princípio e no fim da sua vida atribulada. O álcool trazia-lhe
angústia; a angústia pedia-lhe álcool. E nas malhas deste ciclo vicioso,
Rosalina fora apanhada sem dó nem piedade. Sem dó nem piedade era, em casa,
maltratada, com atos pouco dignificantes para a sua condição de mulher e mãe.
Pelos de fora, era estimada e merecedora de compreensão e
carinho. Porque todos sabiam de que modo inocente o álcool se instalara e
tomara conta da sua vida. E também porque, sempre disponível a qualquer hora do
dia ou da noite, era ela a enfermeira de que todos precisavam na aldeia. Incluindo a autora destas linhas.
Rosalina faleceu em 1969, aos 41 anos, vítima de paragem
cardiorrespiratória. O coração não lhe aguentou os sobressaltos da vida.
Dos 12 filhos que deitou ao mundo, sete sobreviveram e aí
estão, saudáveis e trabalhadores. Certamente que, a par dos avós que os
ajudaram a criar, recordarão com saudade a mãe que tanto os amou e que, só na
morte, encontrou a paz.
Eras tão bonita e doce, Rosalina!
* Aurora Simões de Matos
Do livro "Contos de xisto" - 2012