Parada de Ester,
Feira dos Doze
As ruas já não
cheiram a velhos caminhos, aos caminhos de uma infância em que tudo
ia dar à Feira dos Doze.
Revisitar hoje o
local da feira onde, há cerca de meio século, mensalmente satisfiz
minha curiosidade, dei largas à imaginação, dialoguei com a vida,
no convívio com o de mais genuíno possui a gente da minha terra, é
sempre uma romagem de ternura e de saudade a um tempo e a um espaço
em que se alicerçou boa parte da minha identidade.
Andar por lugares
onde nada existe já que no terreno testemunhe a vivência e o
fervilhar das gentes e das emoções de outros tempos é, no mínimo,
uma estranhíssima sensação de perda. Os sons, os cheiros e os
paladares, que durante ainda muitos anos sobreviveram nos meus
sentidos, terão sofrido o desgaste de uma ausência à intimidade
com aquele largo de terra batida circundado por algumas oliveiras
que, no dia doze de cada mês, se transformava no ponto de encontro
quase obrigatório do povo de Parada e arredores.
Do largo da feira não existe
praticamente nada. O aglomerado habitacional da aldeia, em crescente
alargamento, não se compadeceu com o quase mítico terreiro, onde
hoje se erguem algumas moradias cuja arquitectura e aparcamento
acompanharam naturalmente o evoluir dos tempos.
Por estranho que pareça, sinto melhor
aquele espaço à distância, porque o sinto incólume, nas memórias
duma vida onde, em cada retrospectiva, há sempre momentos ímpares
que se vão redescobrindo. O saudosismo, que assumo sem preconceitos,
traduz-se assim no carinho pelas raízes de que todos os Paradenses
se orgulham.
Embora por curto período, vivi algum
tempo da minha meninice em Parada, bem concretamente no sítio que,
pelo óbvio, se chamava de Feira. Tive, assim, o privilégio de viver
e de sentir a feira bem por dentro, embora com o sentido de
observação e de análise de uma criança.
A festa era anunciada três dias
antes, com a chegada do Fafe, vendedor ambulante, talvez o mais
conhecido dos feirantes da região. Outros tendeiros vinham de
véspera para demarcarem os seus lugares e armarem as tendas para
exposição dos seus artigos. Ou logo pela madrugada do dia doze. Ao
longo da manhã, de todo o lado iam chegando os feirantes para mercar
ou vender, ou simplesmente acorrer a um encontro ou a um dia de
lazer.
A feira ia engrossando de gente, de azáfama, de barulho, de
alegria e de negócios. Com produtos ligados às actividades económicas
da região: animais de criação, sementes e hortaliças, ferramentas
e utensílios; vestuário e calçado; louça branca e de barro negro
ou vermelho vidrado; tecidos de fazenda, burel, riscado, chita,
popelina, gorgorina ou organza, a metro. Mas também ouro: cordões e
voltas de vários tamanhos e grossuras, anéis, brincos e arrecadas,
broches e pulseiras para todos os preços. Tudo bem regateado entre o
povo que mercava e os intermediários na mira do maior lucro, os
agricultores com os produtos da terra, ou os artesãos que ofereciam
a sua arte de tamanqueiros, ferreiros, cesteiros, albardeiros,
correeiros ou latoeiros.
Na esquina, um ceguinho tocava
concertina enquanto a mulher, com voz de fadista, cantava dramas
passionais, as tragédias mais incríveis e os sentimentos mais
inconfessáveis para, de seguida, guardar as moedinhas de tostão ou
dois tostões que iam caindo num chapéu velho no chão, a seu lado.
Logo adiante, as mazelas à vista de um jovem sem braços, de um
velho com a perna gangrenada, da pobre mãe com o filho paralítico
nos braços. Que os pedintes faziam também parte deste alvoroço.
Em surdina, ouviam-se vozes de mulher a
oferecer molhadas de cebolo ou de couve-galega "sem raça de potra".
Em grande alarido, ao altifalante
vendiam-se as cobiçadas carradas de roupa de cama e atoalhados a
quem, acotovelando-se, conseguisse brandir primeiro a nota de conto.
Nota que pagava uma carrada (rima de peças), contra o direito de se
ficar com duas. Só visto!
Todavia, os negociantes de vacas e
cavalos eram, sem dúvida, os grandes senhores das mais caras
transacções, exibindo despudoradamente os grossos maços de notas
para pronto pagamento, logo ali, em dinheiro à vista. Que o uso de
cheques estava longe de ser prática corrente e o Serviço Multibanco
seria uma longínqua utopia.
Mas o meu fascínio começava nas
tendas de miudezas impecavelmente distribuídas por pequenas divisões
num enorme tabuleiro de madeira, passava pelos brinquedos de latão,
madeira, barro ou papelão, e acabava nas doceiras rodeadas de
grandes cabazes de pão-leve e rosquilhos e de açafates de
beijinhos cobertos com toalhas de linho alvíssimo de brancura e de
limpeza.
Muitos revezavam-se nas casas de pasto
para o almoço que experientes cozinheiras preparavam logo desde
manhãzinha com o temperar das carnes e o acender dos fornos. Eram
afamados os pratos de arroz acabado de sair em grandes caçoilas, as
batatas e a carne assada em alguidares de barro vidrado, nas casas da
Herondina, da Maria ou da Anitas do Bem Bô, da Ti Ermelinda do
Alhões, do Veríssimo, do João do Bernardo. Sabores inesquecíveis.
A azáfama e o burburinho duravam até
à noite. Tinham-se feito compras e vendas, encontrado amigos e
inimigos, começado e acabado namoros, uns copos bem bebidos, um ou
outro ajuste de contas. Mas só no dia seguinte a festa acabaria, com
a criançada a vasculhar os sítios das tendas já desmontadas, na
mira de alguma moeda perdida na ocasião dos trocos. Só depois tudo
findava, para regressar à pacatez do quotidiano.
Hoje, a feira deixou de ser o que era.
Mudou de lugar, deslocando-se umas centenas de metros, e mudou de
estilo. Ainda se negoceiam, embora em muito menor escala, produtos
agrícolas, animais e utensílios. Mas os tecidos a metro deram a vez
ao pronto-a-vestir; os tamancos aos ténis; o burel à ganga; a
madeira e o cabedal ao plástico; as cantigas ao desafio às cassetes
pirata; os dom- robertos às pistas de carrinhos de corrida; os
pirolitos à coca-cola; os rosquilhos aos croissants; a ourivesaria à
marroquinaria; as bonecas de papelão, gordinhas e coradas, com
vestidinhos sempre em dois tecidos diferentes para o peito e para a
saia, deram lugar às barbies magricelas de roupas standardizadas.
Hoje, a feira deixou de ser o que
era. Mudam-se os tempos, mudam-se os gostos e as necessidades.
Mudam-se os nomes às grandes superfícies onde se praticam novas
formas de mercado.
No entanto,
embora as ruas já não cheirem a velhos caminhos, aos caminhos da
minha infância, todas elas, as de Parada e as das redondezas vão,
uma vez por mês, dar à Feira dos Doze. Numa saudável convivência
entre o tradicional e o moderno, a economia da região, saída há
muito tempo da quase auto-suficiência dos
seus agricultores e dos seus artesãos, vai tentando encontrar novas
formas de se revigorar. Rendida à força das novas tecnologias que,
mercê da facilidade de transporte, invadiram o mundo rural com a
oferta de pequenos luxos, a Feira dos Doze tenta ainda afirmar-se
como satisfação à subsistência, progresso, divertimento e
convívio de uma boa parte das gentes da beira – Paiva.
Aurora Simões de Matos
( no livro Imagens da beira-Paiva, Editora Palimage,2011)
Nota:----Estas eram as realidades da feira, até ao ano de 2011