Apresentação do Livro "Contos de Xisto", na Biblioteca Municipal Dom Miguel da Silva, em Viseu
Por: Dra. Maria Irene Cardoso
Contos
de xisto: aqui
está o livro, na beleza expressiva da sua apresentação gráfica.
E
começo com uma citação:
«Um
dia, quis fazer um poema à beira do silêncio de um giestal em flor.
Sentei-me aos pés do silêncio, escorreguei o corpo, devagarinho (…)
sorvi com prazer o aroma da brisa que passava, sorri na plenitude
daquele estado de graça.»(In
Contos de xisto).
E
é neste «estado de graça» que Aurora Simões de Matos depõe nas
nossas mãos o seu novo livro.
«No
tempo azul da minha terra, ouvi o cuco a querer dizer-me que o tempo
verde estava aí, à espera das emoções de quem quisesse abraçar
aquele mundo em festa, beijar aquele raio de sol fagueiro a querer
inundar de vida cada ser, sorrir àquela esperança do amor a
renovar-se.» (In
Contos de xisto).
Nestas
frases, em prosa poética, estão algumas das coordenadas desta obra:
a sensação física vivida em plenitude e as emoções de um coração
intenso, na vibração máxima e sagrada de um amor sem medida pela
terra, a sua terra, a beira-Paiva, no concelho de Castro Daire. É
Meã, a aldeia natal da distinta Autora, a terra que, nesta obra,
vamos visitar. Mas somos convidados a visitar, também, a fiada de
pérolas das aldeias circundantes de Meã, que bordam as margens das
águas cristalinas, as mais cristalinas de todas as águas da velha
Europa: o rio Paiva. “A Paiva”, como, carinhosa e familiarmente,
os habitantes desta zona chamam ao rio que é seiva e alegria e vida
da sua terra.
«No
tempo azul da minha terra…»
Este
possessivo com valor afectivo, bem como a notação cromática, o
“azul”, a significar a plenitude, / o infinito, remetem-nos para
uma totalidade. Uma totalidade anímica, física e transcendental, de
que Aurora Simões de Matos é a voz, de que Aurora Simões de Matos
é a alma, mas também o corpo e o húmus, numa identificação
telúrica, que só tem paralelo em Miguel Torga: «Regresso às
fragas de onde me roubaram/Ah! Minha serra, minha dura infância!» -
diz o Poeta. Mas aqui, com Aurora Simões de Matos, na beira-Paiva,
as “fragas” são xisto, a rocha metamórfica, laminada,
geralmente escura ou mesmo negra, que tão bem conhecemos. É o xisto
que serve de moldura, mas é também elemento constitutivo e suporte
deste pequeno mundo serrano, que salta da vida para as páginas de um
livro, pela pena «ágil e grácil» de uma filha da beira-Paiva.
Em
Aurora Simões de Matos, nesta identificação com a terra e com a
serra, encontramos uma espécie de “saudade”, a “saudade” um
tanto à maneira de Teixeira de Pascoaes. A saber: «…o sincretismo
sentimental entre dois contrários - a lembrança presa ao passado e
a esperança projectada no futuro» - segundo Fernandes da Fonseca.
Efectivamente,
em CONTOS DE XISTO,
encontramos a memória ancestral de uma comunidade, nas suas diversas
vertentes: no “modus vivendi” do quotidiano, marcado pelo ritmo
do tempo. [...]
Contudo,
nesta obra, encontramos também uma actualidade pujante, nas
personagens mais jovens, com o seu modo de viver já modernizado por
uma nova visão da vida, um novo modo de estar, e o recurso às novas
tecnologias. É a esperança que abre caminho ao futuro…
A
saudade! Ela encontra expressão ao longo de toda a obra. [...]
«Quanto
ao poema que quis fazer, sentada aos pés do silêncio do giestal em
flor, dele aqui fica um esboço. (…) Que o meu poema não é mais
que uma saudade.»
E
é na saudade, nascida do passado e do presente, por paradoxal que
pareça, que Aurora Simões de Matos se exprime como a voz da terra e
da gente da sua beira-Paiva.
Recordo,
a propósito, as palavras de Manuel Alegre, num dos seus mais belos
poemas:
«Canto as armas e
os homens,
Porque
a Tribo me disse:
tu
guardarás o fogo.
E
por armas me deu
o
bronze das palavras.»
E
permito-me parafrasear estes versos, em atenção à Autora de CONTOS
DE XISTO:
«Canto
a terra e a gente,
Porque
a Tribo me disse:
Tu
guardarás o fogo.
E
por armas me deu
O
ouro, o mel e o linho das palavras.»
Assim,
investida da sua missão de «guardar o fogo», é com palavras “de
ouro, de mel e de linho” que a voz de Aurora Simões de Matos se
ergue, inebriada, para celebrar a Vida na sua beira-Paiva, com toda a
riqueza da simplicidade e da ancestralidade que lhe são próprias.
«O
ouro, o mel e o linho das palavras.»
O
ouro, encontramo-lo na expressão viva concisa e precisa de muitas
destas narrativas.
A
linguagem é versátil, plástica, por vezes poética, sugestiva,
apta a desposar a realidade no seu ritmo do quotidiano, do insólito,
quando ele surge. [...]
Em
“Luta de bois na feira do Fojo”, o leitor quase “assiste”,
empolgado, à cena como realmente se passou. O vocabulário
criteriosamente seleccionado e a feliz combinação das sonoridades,
com vogais abertas e fechadas, alternando-se, as consoantes mudas e
sonoras, as sibilantes e as líquidas, dão-nos a visão ampla e do
combate esforçado entre os animais:
«A
luta começa. O boi finca as patas no chão e, usando a força da sua
corpulência, empurra o adversário com a testa. Chifres contra
chifres, músculos retesados, baba a escorrer de raiva, olhos
desvirados pelo cansaço (…). Bravura à flor da pele, num jogo de
força e resistência.»
Em
CONTOS DE XISTO,
sentimos um mundo de aconchego e amor que nos lembra a doçura
intensa e maviosa do mel, no dia-a-dia rural, percepcionado pelo
olhar feminino de uma Pessoa com uma alma a transbordar de humanismo.
«Sobre a nudez crua da Verdade, o véu diáfano da fantasia» -
poderíamos dizer, citando Eça de Queirós. Contudo, em Aurora
Simões de Matos, esse “véu de fantasia” não atraiçoa a
realidade. Pelo contrário: dá-lhe outro relevo, apontando, sem
enfadonhos moralismos, para a construção de um mundo melhor: com
calor humano feito de solidariedade e de partilha. Com afectos.
Sempre numa atitude de total respeito: pelos humanos, pelos animais,
pela Natureza inteira. Há também uma atitude de respeito pela
Transcendência, nas várias referências à religiosidade popular e
ao modo como o Povo se relaciona com o Sagrado. A celebração
jubilosa das festas de São Bartolomeu, de São Jerónimo, de São
Macário ou de Santa Bárbara Virgem, ocupa, nesta obra, lugar de
relevo. [...]
Tal
como em Teixeira de Pascoaes, «a religiosidade e a Transcendência
estão sempre presentes, como uma inerência ao sentido da vida»,
segundo Fernandes da Fonseca. Assim também nas narrativas de CONTOS
DE XISTO: «Deus
super omnia»; ou, por outras palavras, e usando o registo popular:
«Deus é grande e está no mesmo sítio».
Finalmente,
«o linho das palavras», na atitude de «…marcar
(…) a diferença e a
qualidade
dos bens de cada família».
Mas não só. A alvura esplendorosa, no esmero do trabalhado do
linho, é simbólica da pureza e da inocência das gentes, dos ares
lavados da serra, e das águas claras da
Paiva. E passo a citar Aurora Simões de Matos:
«A
toalha branca de linho corado, bordada a bainha aberta e debruada a
bicos de renda, envaidecia o cabaz da merenda que, à cabeça das
romeiras, assumia um dos mais fortes protagonismos da festa.»
«Porque
a Tribo me disse
Tu guardarás o fogo.»
Um
dos maiores méritos da escrita de Aurora Simões de Matos é a
missão de “guardar o fogo”: preservação de um mundo que está
a acabar. [...] «Com ela acabaram os sons batidos do tear. Na Bouça,
já não se fia, nem doba, nem urde, nem tece.» Fica «o carreiro
(…) em direcção à fonte, a mesma fonte de sempre». Ficam as
casas de xisto: molduras, agora mudas e vazias, de um bulício que
era vida, que era gente,/ e gente de valor. [...]
Na
louvável tentativa de preservar o passado, surgem-nos, em CONTOS
DE XISTO,
(como, aliás, já foi dito) os nomes de muitos utensílios do
quotidiano. Desde os nomes relativos à arte da tecelagem (o tear, a
dobadoira, a roca, o fuso, o caneleiro, o pente, a lançadeira…)
até aos nomes de utensílios de alfaiataria, por exemplo. [...] Mas,
singular, é a narrativa “Marcada pelo dia em que nasceu”. Aqui,
aparece-nos, mesmo, “para memória futura”, um diálogo muito
especial. Trata-se das palavras “ipsis verbis” de uma parteira de
aldeia, sem preparação científica alguma – a mãe-velha, também
chamada “comadre” noutras terras – no acto supremo do
nascimento de uma criança – a Mindinha. O que aqui lemos é um
conjunto de palavras e de frases de incitamento à parturiente…
«tolhida de dores nas cruzes».
Em
CONTOS DE XISTO,
temos a beira-Paiva do Portugal de antanho. Como anjo tutelar, Aurora
Simões de Matos guarda, preserva, esse “fogo” antigo, como
outrora, na pré-História, em sociedades tribais, as mulheres
guardavam o fogo do lar primitivo – a caverna. [...]
Nesta
obra, a ficção
pura cede quase sempre lugar à evocação de variadas acções que
se enraízam no real, no quotidiano vivido na beira-Paiva. Os
protagonistas, os “heróis” (como a Autora lhes chama), são
pessoas reais, algumas já falecidas, outras ainda vivas. São estas
pessoas que a Autora transforma em personagens de uma obra atenta à
vida e às suas circunstâncias. Pelo prazer de criar mundos com
palavras, pelo prazer de rever a sua terra natal, / pela necessidade
de se rever a si mesma, numa catártica e muito pessoal identificação
com as suas origens, com o seu torrão natal. Nas suas recordações,
como filha que é dessa mesma terra, Aurora Simões de Matos acaba
por cumprir um outro desígnio: o de dar a conhecer e preservar este
mundo que, em muitos aspectos, está em risco de acabar.
Ocorre-me
que José Saramago dizia que os seus livros deveriam ter, sempre, na
capa, uma fita, avisando o leitor: «Atenção, este livro leva uma
pessoa dentro.» E agora digo eu: atenção, CONTOS
DE XISTO leva dentro
uma comunidade inteira: o povo da beira-Paiva, das aldeias de Meã,
Parada de Ester, Corgo de Água, Ilha, Sobrado, Laboncinho, Pena,
Canelas, Fojo, Vila, Baldios, Fujaco… Uma comunidade inteira, nas
pessoas das personagens ou actores,/ já que é em acção que os
sentimos. A acção é, assim, cheia de movimento. Todos na luta pela
vida. [...]
O
narrador, a voz que fala, situa-se, quase sempre, fora da acção,
como quem observa. Diríamos, academicamente, que de trata de um
narrador heterodiegético. Mesmo na narrativa que tem como título
“Marcada pelo dia em que nasceu” e cuja protagonista, na vida
real, é a própria irmã da Autora aqui presente./ Mindinha é
«…toda ela agitação e travessura…», nas palavras do texto,
vivacidade e rebeldia, em consonância com a trovoada do dia em que
nasceu, 22 de Maio, dia de Santa Rita de Cássia, advogada de todos
os impossíveis, segundo a religiosidade popular. Estes elementos
são, pois, já indícios da índole desta personagem, toda ela
dinamismo e originalidade, capaz mesmo de atitudes insólitas, cheias
de exuberância, mas onde avulta a sua inata «força de alegria»
bem como a bondade manifestada na generosa partilha, sempre no
sentido de construir a felicidade dos seus e (passo a citar):
«…tentando fazer de cada instante um momento único de diversão.»
Determinada e optimista, Mindinha tem como lema a sentença popular:
«Candeia que vai à frente, alumia duas vezes…» [...]
A
palavra “xisto” é recorrente. Aqui o xisto é a base, a terra, o
chão, a realidade concreta, de onde parte a humanidade, e a
espiritualidade alada das personagens/ que são gente de coração
generoso e de alma aberta ao Infinito… [...]
Em
“Aldeia da Pena, um mundo quase irreal” a própria linguagem se
faz irreal em leveza, beleza, e propriedade: pela sua significação
e sonoridades sugestivas.
«Subir
ao São Macário é já uma festa. Descer aquela estrada estreita, de
quase três quilómetros, em constante confronto com o abismo (…)
para além de ser um acto de coragem em jogo de subtilezas (…) é
também um percurso de migração em que a nossa identidade dá o
salto para um mundo quase irreal.»
“As
mulheres da Pena – heroísmo no feminino” – este título remete
para algumas narrativas em que se destacam as mulheres: pela sua
tenacidade, trabalho intenso, capacidade de resiliência, de doçura
e de imaginação criativa, no confronto com o quotidiano. É “o
eterno feminino”, na construção do mundo, no acto continuado de
tecer a paz, de tecer o aconchego familiar. Tal como outrora,
Penélope, a grega, tecendo e desfazendo a sua teia, num ritual de
silenciosa sabedoria, para manter, indefectível, a sagrada
fidelidade a Ulisses, seu marido. [...]
Com
“A casa assombrada” e “Bruxas e assombrações, temos o
fantástico em CONTOS
DE XISTO. Ele aí
está pelas vozes das personagens “Ti Belmiro” e “Maria”, a
parteira da aldeia de Meã, a mãe-velha, como é chamada.
Em
ambas as narrativas nos aparece,/ nítida,/ a ambiguidade ou
hesitação entre duas explicações: a racional e a meta-empírica
(ou supra-real). [...]
Assim,
no domínio do fantástico, produz-se um acontecimento que a razão
não explica. O “mistério”, o inexplicável” o “inadmissível”,
introduz-se na vida real, ou no mundo real - de acordo com as
citações feitas. Em “A casa assombrada”, às certezas do “Ti
Belmiro” opõe-se a dúvida, a vacilação de dois entrevistadores.
É que o “Ti Belmiro” “viu”, ele afirma que “viu” o
Diabo, o “Rabudo”, que esconjura com um “Abernúcia!”
de arrepiada rejeição. Finalmente a ordem do mundo real
sobrepõe-se quando se descobre que se trata apenas da cabra preta da
Ti Zulmira a qual, numa atitude muito pragmática, completamente
avessa ao fantástico, ou a qualquer outra especulação, pergunta
aflitivamente:
-«E
agora? Quem é que me vai pagar a minha cabra preta?»
Em “Bruxas assombrações”, a vacilação, a descrença do
fantástico, por parte da Senhora Professora (personagem secundária,
deuteragonista que se identifica com a Autora desta obra) não
encontra eco na consciência da “Maria, a mãe-velha” que,
invariável e peremptoriamente, responde:
-
«Não senhora, aquilo era o Diabo!»
-
«Não senhora, aquilo era uma alma penada!»
-
«Não senhora, aquilo eram as bruxas!»
[...]
Da
intimidade calorosa e pulcra de um conjunto de “aldeias de xisto”
nasceu esta obra, que é um contributo notável para a cultura e para
uma civilização que se quer repassada de humanismo, zelosa guardiã
do passado. Esse passado que é berço do presente e que é
imprescindível conhecer como matriz do futuro; esse passado que é
alicerce, estruturante de um agir que será, sempre, no futuro,
pautado pelos mais altos valores do Espírito, da Cultura e da Ética.