quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Não me surpreende

Não me surpreende





Não me surpreende a paragem do viajante, de binóculos, esmagado ao gigantismo de uma paisagem dominadora.

Não me surpreende o fervilhar da gente que, nestes dias de férias estivais, coalha os caminhos, as romarias, as feiras, o mercado da vila, os pequenos e os grandes restaurantes à beira das estradas, as partes do rio mais convidativas a uma boa tarde de sol,de sombra e de lazer.

Não me surpreende o aparecimento de certas arquitecturas a mancharem horizontes desavindos com a inexorabilidade do progresso que tantas vezes irrompe desajustado de seus fins.

Não me surpreende o reavivar das tradições mais poéticas, na realidade quase mística que alicerça a identidade de um povo.

Não me surpreende a dimensão do amor subjacente aos gestos, atitudes e conceitos unificadores do sentimento colectivo que transforma a vivência social no pulsar de uma cultura que, atravessando todos os sobressaltos, segue o curso que parece dar sentido ao tempo histórico, em permanente interacção com a fé, a razão e o sonho.

Desde há décadas que o destino de muitos dos pastores e agricultores das extensas encostas da minha terra deixou de acompanhar o movimento das estrelas e as fases da lua e de esperar pela chegada cíclica das estações do ano. A estrutura básica de uma economia matricial de subsistência deixou há muito tempo de satisfazer as suas necessidades e as suas mais que legítimas ambições.

Não me surpreende, pois, a partida dos que, desde há cerca de cem anos até aos nossos dias, num crescendo quase fatal, buscam noutras paragens o amenizar de uma vida quase sempre confrontada com a inevitabilidade de outras dores e de outros suores.

O que me surpreende é o orgulho e a tenacidade dos resistentes, o estoicismo dos que ficaram que, colmatando fracturas bem a descoberto em dolorosos abandonos e em aparatos mais ou menos desarticulados, continuam a perseguir valores ancestrais e conceitos de património, assumidos ao rigor máximo da herança que receberam e que querem, a todo o custo, transmitir incólume. Num testemunho de coerência verdadeiramente heróica, a força desta gente é o alicerce singular de uma cultura fiel às suas origens.




Apesar da debandada de seus filhos,grande parte dos campos ribeirinhos de Meã e Parada continuam viçosos, férteis, bem regados e estrumados, ostentando, com raras excepções, os mesmos milheirais de desde que me conheço. Campos e lameiros, retalhos de uma manta em vários tons de verde, continuam a policultura dos mimos, ervas e cereais que hão-de abastecer as famílias residentes e seus animais, ser fonte de paladares únicos para os filhos saudosos em visita ao lar materno, ser deleite aos olhos de quem procura, ao passar, as marcas de uma identidade. Na riqueza de princípios ancestrais como o trabalho, o amor à terra, a auto - suficiência. Na solidez da força desta gente rija como o granito e na fé desta gente moldada à maciez do xisto. Na transparência desta gente em jogo de espelhos com o rio e no fluir da vida ao correr do ar puro e agreste que a serra abandona ao respirar. Na iconografia de espaços acomodados à rusticidade e à coerência. Enfim, na sentida e assumida bênção de se ter nascido em terras de beira-rio.

Aurora Simões de Matos





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