Não
me surpreende
Não me surpreende a
paragem do viajante, de binóculos, esmagado ao gigantismo de uma
paisagem dominadora.
Não me surpreende o
fervilhar da gente que, nestes dias de férias estivais, coalha os
caminhos, as romarias, as feiras, o mercado da vila, os pequenos e os
grandes restaurantes à beira das estradas, as partes do rio mais
convidativas a uma boa tarde de sol,de sombra e de lazer.
Não me surpreende o
aparecimento de certas arquitecturas a mancharem horizontes
desavindos com a inexorabilidade do progresso que tantas vezes
irrompe desajustado de seus fins.
Não me surpreende o
reavivar das tradições mais poéticas, na realidade quase mística
que alicerça a identidade de um povo.
Não me surpreende a
dimensão do amor subjacente aos gestos, atitudes e conceitos
unificadores do sentimento colectivo que transforma a vivência
social no pulsar de uma cultura que, atravessando todos os
sobressaltos, segue o curso que parece dar sentido ao tempo
histórico, em permanente interacção com a fé, a razão e o
sonho.
Desde há décadas que o
destino de muitos dos pastores e agricultores das extensas encostas
da minha terra deixou de acompanhar o movimento das estrelas e as
fases da lua e de esperar pela chegada cíclica das estações do
ano. A estrutura básica de uma economia matricial de subsistência
deixou há muito tempo de satisfazer as suas necessidades e as suas
mais que legítimas ambições.
Não me surpreende,
pois, a partida dos que, desde há cerca de cem anos até aos nossos
dias, num crescendo quase fatal, buscam noutras paragens o amenizar
de uma vida quase sempre confrontada com a inevitabilidade de outras
dores e de outros suores.
O que me surpreende é o
orgulho e a tenacidade dos resistentes, o estoicismo dos que ficaram
que, colmatando fracturas bem a descoberto em dolorosos abandonos e
em aparatos mais ou menos desarticulados, continuam a perseguir
valores ancestrais e conceitos de património, assumidos ao rigor
máximo da herança que receberam e que querem, a todo o custo,
transmitir incólume. Num testemunho de coerência verdadeiramente
heróica, a força desta gente é o alicerce singular de uma cultura
fiel às suas origens.
Apesar da debandada de
seus filhos,grande parte dos campos ribeirinhos de Meã e Parada continuam
viçosos, férteis, bem regados e estrumados, ostentando, com raras excepções, os mesmos
milheirais de desde que me conheço. Campos e lameiros, retalhos de
uma manta em vários tons de verde, continuam a policultura dos
mimos, ervas e cereais que hão-de abastecer as famílias residentes
e seus animais, ser fonte de paladares únicos para os filhos
saudosos em visita ao lar materno, ser deleite aos olhos de quem
procura, ao passar, as marcas de uma identidade. Na riqueza de
princípios ancestrais como o trabalho, o amor à terra, a auto -
suficiência. Na solidez da força desta gente rija como o granito e
na fé desta gente moldada à maciez do xisto. Na transparência
desta gente em jogo de espelhos com o rio e no fluir da vida ao
correr do ar puro e agreste que a serra abandona ao respirar. Na iconografia de espaços acomodados à rusticidade e à coerência. Enfim, na sentida e assumida bênção de se ter nascido em terras de
beira-rio.
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