quarta-feira, 31 de outubro de 2012
sexta-feira, 26 de outubro de 2012
IGREJA PAROQUIAL DE PARADA DE ESTER
Igreja Paroquial de Parada de Ester
Castro Daire
TEXTO COM GALERIA DE FOTOS
TEXTO COM GALERIA DE FOTOS
Pelas
ruas empedradas de íngremes caminhos, os paradenses sabem que todos
os destinos vão dar à sua Igreja Paroquial, onde gerações após
gerações têm cumprido os rituais do Catolicismo, a religião
abrangente de praticamente toda esta região. Sabem-no os paradenses
e sabe-o toda a freguesia. Por isso, em cerimónias sempre solenes,
como as Eucaristias dominicais, baptizados, confissões, comunhões,
sermões, casamentos, festas ao padroeiro, funerais, etc., ocasiões
sempre especiais na vida de cada um, é ali que se expressam boa
parte dos sentimentos da beira- Paiva.
A
paróquia de Parada de Ester pertence à Diocese de Lamego e é seu
Orago S. João Baptista. Em tempos remotos, foi Abadia do padroado
real, no distrito eclesiástico do Douro. Já
nas Inquirições de 1258, reinado de D. Afonso III, há informação
de que a Igreja estava situada numa herdade do rei. Também do século
XIV há documentos que se lhe referem. E no século XVII, são
mencionadas as capelas de S. Pedro, em Parada; Santa Comba, em Eiriz;
Santa Catarina, em Mós; e S. Bartolomeu, em Meã, como sendo de
fundação medieval. Não admira, pois, que o nosso património
religioso e artístico, traduzido em construções antiquíssimas e
valiosas peças de arte, quer de escultura em pedra, quer de
escultura em madeira, assim como a riqueza das suas talhas douradas e
policromadas, seja um hino do nosso orgulho.
A
Igreja Paroquial foi sofrendo, ao longo dos séculos, profundas obras
de remodelação. A presente construção data do século XVIII. São
belíssimos os seus caixotões com santos pintados a forrar o tecto;
o arco triunfal a pleno centro, policromado; o retábulo principal e
os laterais em talha barroca dourada e policromada; o coro- alto em
madeira policromada com varanda de balaústres. No corpo da nave, o
pavimento de madeira, com a sequência de sepulturas numeradas.
Já
no exterior, do lado esquerdo da entrada, figura agora um busto de
bronze sobre base de granito polido, homenagem da Freguesia de Parada
e da Câmara de Castro Daire ao ilustre Bispo D. João Crisóstomo
Gomes de Almeida, natural e por muitos anos residente em Eiriz e
Figura relevante da nossa região.
A
Igreja Matriz de Parada de Ester constitui um dos cerca de 50 núcleos
museológicos de interesse turístico, do «Museu Territorial do Vale
da Paiva e Serras», proposto por Arménio Vasconcelos, do Museu
Maria da Fontinha.
A
nossa Igreja faz parte das nossas vidas, com a carismática força daquilo que representa. A partir dali, de onde se avistam horizontes
sem fim, e surpreendendo o viajante com a sua romântica torre
branca, estende o olhar e a sua acção pelos íngremes ou aplanados
caminhos que atravessam as terras da beira- Paiva.
Aurora Simões de Matos
Do livro "Imagens da beira-Paiva"-------2ª edição em 2011
Aurora Simões de Matos
Do livro "Imagens da beira-Paiva"-------2ª edição em 2011
Galeria de Fotos da Igreja Paroquial de Parada de Ester
(gentilmente cedidas pela Paróquia )
(gentilmente cedidas pela Paróquia )



segunda-feira, 22 de outubro de 2012
sexta-feira, 19 de outubro de 2012
BIOGRAFIA ROMANCEADA DE
MARIA DO CÉU TRINDADE
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A SOBREVIVENTE |
Não lhe bastou um século para viver tanto amor e tanta dor
(Nasceu a 5 de Dezembro de 1902 e vive há 25 anos no Lar da Santa Casa da Misericórdia de Castro Daire)
(Nasceu a 5 de Dezembro de 1902 e vive há 25 anos no Lar da Santa Casa da Misericórdia de Castro Daire)
Nota introdutória
Quando fui contactada
para escrever a história de vida de Maria do Céu Trindade, aceitei
o desafio, sem hesitar um momento. Não porque a tarefa me parecesse
fácil ou porque dispusesse, à altura, de dados suficientes para
levar a bom termo esta missão. Não porque qualquer laço afectivo
me ligasse à senhora ou sequer aos espaços por onde partilhou a
longa existência.
O meu entusiasmo residiu
no fascínio pela descoberta da Mulher. Da mulher rural do século
XX, com a sorte e a ousadia de o ter ultrapassado. Na heroicidade de
uma vida aparentemente apagada e que, no entanto, se impôs na
discreta passagem pela discreta Quinta da Seara, sobrevivendo a tudo
e a todos:
À monarquia, à I
república, à ditadura, até conhecer a democracia. Ao papado de
vários chefes da igreja: Leão XIII, Pio X, Bento XV, Pio XI, Pio
XII, João XXIII, Paulo VI, João Paulo I, João Paulo II, até
chegar a Bento XVI. Sobreviveu ao imenso e sentido espanto, pela
descida da Virgem Maria à Terra. E pela subida do Homem à Lua. Às
duas contendas mais devastadoras da história do mundo. À varíola,
à poliomielite, à difteria, à tuberculose, ao cancro, ao AVC, à
depressão, às doenças mais terríveis do século.
A tudo e a todos
sobreviveu. À guerra e à paz. À fome e à fartura.
A par de trazer a
público o recato de vivências semelhantes a tantas outras daquela
época, tentei enquadrá-las nessa mesma época, contextualizando
espaços e modos de sentir muito específicos da região onde
decorreu a acção desta história. Só assim se compreenderão
maneiras de estar e de actuar, que hoje nos parecem quase irreais.
Ao romancear a vida de
Maria do Céu Trindade, é natural que, em especial a família, que
deve ser quem melhor a conhece, depare com factos seus desconhecidos
ou até chocantes. É natural que isso aconteça. É que, entendeu a
autora, contar esta história só faz sentido, se a enquadrarmos num
tempo real, numa época específica, em que ela foi vivenciada.
Claro que, no desenrolar
da narrativa, encontraremos muita ficção. Ela serve apenas de
suporte ao mais importante, que são, afinal, 110 anos de vida igual
a tantas outras... e diferente de todas elas.
Castro Daire, Setembro de
2012.
A autora
Aurora Simões de Matos
Maria
do Céu Trindade
Biografia Romanceada
Deixamos
Castro Daire, pela estrada nacional 225 que, seguindo a linha da
Paiva em grande parte do seu percurso, ruma a Castelo de Paiva. A
cerca de 6 km da vila, na descida até Pinheiro, mesmo antes de
passarmos pela Igreja Matriz da Ermida, encontramos um desvio à
direita que nos abre caminho para Ribas, Sobradinho, Cetos, Pereira e
Póvoa de Montemuro, encosta acima.
Estamos
já a subir pela estreita via alcatroada, quando logo ali, a escassos
300 metros, deparamos, à esquerda, em monte contíguo e ao mesmo
nível, separado do nosso pelo vale do barroco onde um fio de água
rumoreja lá no fundo, um pequeno lugarejo. Impressiona pelo
abandono, pela solidão, pela saudade do que foi. Três ou quatro
casitas de pedra rústica, ao lado de uma outra pintada de branco,
qual casa de bonecas vista de longe, sem dúvida a que sugere
melhores condições de habitabilidade e de conforto.
Paramos
o automóvel e, por momentos, perante as ruínas vistas àquela
distância, surge a dúvida:
Há
quanto tempo terá começado a derrocada daquelas construções
humildes que um dia albergaram vidas e sonhos, labutas e ambições?
Há quanto tempo não se ouve ali o choro de uma criança, o
gargalhar de um jovem, uma conversa solta entre vizinhos, os
queixumes de um velho?
Há
quanto tempo terá deixado de sentir-se o mugir das vacas, o balir
das ovelhas, o cacarejar das poedeiras, que um dia foram ali força
de trabalho e base de uma economia matricial de apoio à subsistência
humana?
Vamos
até lá. Continuando a estrada, contornamos a curva que o relevo
obriga e paramos à beira da via que prossegue para Ribas. Procuramos
o caminho sulcado de pedras, meio escondido pela vegetação
selvagem, o único carreiro que, apesar da difícil condição, dá
acesso à Quinta da Seara. Assim se chama o lugarejo que é agora um
amontoado de pedras onde, no entanto, ainda se percebem resquícios
de um passado em que a agricultura foi princípio e fim do sustento
de três ou quatro famílias que ali, no isolamento fatal,
conseguiram dar filhos ao mundo, criá-los e fazer deles gente de
bem.
Que
conseguiram, apesar de tudo, sorrir, cantar e ser felizes. E sair
para voltar, como aconteceu a João de Almeida Trindade que, perante
as dificuldades da vida, partiu um dia para o Brasil, na busca de
proporcionar à mulher e aos filhos melhores condições de viver e
de crescer. Mas não aguentou as saudades dos seus. Regressou,
passados cinco anos, à casa humilde de onde partira. Para viver
pobre mas honrado, ao lado da mulher que haveria de dar-lhe os seus
oito filhos, quatro rapazes e quatro raparigas, das que o Senhor
levou três ainda anjinhos. Que anjinhos são todas as crianças.
Para sentir, logo de manhã, o sol bater-lhe em cheio na frente da
casa e entrar-lhe pela janela apertada do quarto de dormir, ao lado
da salita, onde a máquina de costura era rainha.
Na
salita, media, cortava, alinhavava, provava, cosia os buréis, os
riscados, os linhos e muito mais tarde os modernos terilenes que lhe
cobriam a cama de ferro, a um canto. Tecidos que esperavam a sua mão
de hábil artista. O ferro de brasas aceso, com que havia de alisar
as peças de roupa que ali ia confeccionando, como alfaiate
prestigiado que era. Obra não lhe faltava, ajudado pela mulher. Obra
para as aldeias, os lugares e as quintas ao redor. Das redondezas
chegavam os fregueses, vindos das lojas da vila ou da feira do
Crasto, com os panos à cabeça, atados com uma guita. De tudo fazia
e fazia bem. Mas o orgulho maior, sentiu-o ele, quando costurou a
farda para a antiga música de Castro Daire. Do seu trabalho de
alfaiate haveria de sustentar a casa, que as territas pouco davam,
nem para o dia-a-dia. E ele tinha ambições para os filhos.
Tinha
ambições para os filhos. E eles eram quatro. Ou cinco, contando com
a rapariga, que também comia e a quem igualmente queria muito bem.
Tinha ambições para os filhos. Queria vê-los crescer saudáveis e
felizes. Queria muito que, da Quinta da Seara, os seus rapazes
saltassem os socalcos e se embrenhassem no mundo.
Queria
mostrar-lhes que o barroco do lameiro fundeiro das suas terras não
era nada comparado com a Paiva, lá em baixo, onde tantas vezes já
fora deitar as redes, na mira de sorte na pescaria que lhe valesse um
petisco para o jantar do meio-dia de Domingo. Mas que a Paiva, mansa
de consolo em Verões de abrasar o corpo e o chão, ou brava de meter
medo em Invernos rigorosos, quando o bramido das águas se ouvia por
todo o vale, a Paiva era uma criança até chegar ao Douro, soberbo
de orgulho e de força. E que, mergulhadas as suas águas no caudal
do grande rio, mesmo assim continuava a ser uma criança trémula de
medo, ao enfrentar o mar imenso.
O
mar, o mar imenso... Tão grande, que o vapor demorara quase um mês
a atravessá-lo. E os seus rapazes tinham que ver e que sentir a
imensidão das coisas. Da água e da terra. Das cidades e das gentes
por esse mundo fora. Que os seus rapazes não haviam de ser menos que
os filhos dos outros. Dos outros, dos que ele conhecera no Brasil,
onde se ganhava dinheiro certo e não faltava trabalho. E não haviam
de faltar oportunidades para os seus rapazes serem alguém.
Era
esse o maior sonho de João Trindade. Por isso, quando cada um deles
chegou à idade de aprender a ler, obrigou-o a ir para a escola. Já
se sabia que ficava longe, os caminhos eram carreiros ruins de
atravessar até Vila Seca, a perto de uma hora de distância, o lugar
mais próximo onde a Mestra ensinava um grupo de rapazes, numa salita
meia escura. Tudo rapazes. Não era que fossem obrigados, naquele
tempo, à frequência da escola. Mas quem soubesse ler e escrever
tinha o futuro garantido.
No
caso das raparigas, a situação era diferente. Eram raríssimos os
casos em que os pais dispensavam as filhas do trabalho e as mandavam
para a escola. Nem haveria necessidade disso – pensava João
Trindade. Para quê mandar para a Mestra a única rapariga que o
Senhor lhe deixara ficar? Para quê, se a vida da mulher era no lar,
a tratar do homem, dos filhos, da casa, dos animais e das terras, se
adregasse de as ter? Que sempre uma mulher haveria de arranjar que
fazer e onde empregar forças e afectos. Que sempre uma mulher
ficaria melhor no aconchego do lar, que por esse mundo fora, louvado
seja Deus!
Louvado
seja Deus, que a João Trindade calhara-lhe a sorte grande. Mulher
trabalhadeira a sua. E respeitadora. Amiga do marido e cumpridora dos
seus deveres de mulher e mãe. Que Deus lha conservasse.
Maria
Emília de seu nome, filha de gente de bem, família de boa formação
religiosa e moral, tia de Padre, era ela o grande apoio daquele lar.
Nunca se lhe ouviu uma praga, um maldizer, um berro zangado. A calma
em pessoa, era esta mulher que, desde madrugada, não parava até
altas horas da noite. Para tratar da casa, dos filhos, do homem. E de
tudo o resto, que a seu cargo tinha tudo o resto. Animais e terras. E
as compras na vila ou na loja de Sobradinho, ou na de Ribas. E a lã
para fiar e fazer caturnos. E o linho para semear, mondar, regar,
colher, massar, tascar, limpar, fiar, dobar, tecer. Do pouco linho
que conseguia cultivar no lameiro do meio, abaixo da casa. Que
haveria de lavar na barrela e estender no coradoiro, em lençóis e
brancas toalhas. E, pela noite fora, ajudar o homem na costura. Que o
tempo fez-se foi para trabalhar.

O
que lhe valia era a filha, a única que o Senhor lhe deixara, desde
que a última lhe morrera, com doze anos apenas. A sua Margarida, que
Deus havia de ter no céu. O que lhe valia era a filha. A Céuzita,
calma e obediente como a mãe, trabalhadeira como a vida lho exigia.
Humilde e meiga como a mãe, responsável e atenta como o pai lho
exigia. Sorridente e acomodada como a mãe, discreta e púdica como o
Senhor Abade lho exigia. Que a sua religião e os ensinamentos da
Santa Madre Igreja tinham grande peso nas famílias e nas pequenas
comunidades espalhadas por todo o vale da Paiva e serras ao derredor.
-
Ó senhora mãe, daqui por quinze dias é a festa de Nossa Senhora do
Carmo. Já falta pouco para o 16 de Julho. E eu queria estrear uma
saia e um lenço da cabeça.
-
Já sabes que o teu pai te dá sempre qualquer coisa para estreares
no dia da festa. Mas é só uma peça, que os teus irmãos são
quatro e eu prometi que dois deles haviam de levar o andor de Nossa
Senhora na procissão. Sempre têm que ir bem arranjados. Tu
contenta-te com a saia, ou com o lenço. Eu falo com o teu pai.
-
Mas eu é que sou a mordoma da festa. Também gostava de ir bem
arranjada!
-
E vais, e vais, minha filha. Vai ser a rapariga mais linda daquela
festa! - aconchegava a mãe.
-
Ó senhor pai, então sempre me dá a saia para a festa? E também me
dá um lenço? Já nem lhe peço uma blusa de chita...
-
Era o que faltava! Ainda no inverno te fiz uma nova.
-
O riscado já se rasgou. Também... ando sempre com ela... Tanto se
suja e tanto se lava, que tem que se romper.
-
Não respondas ao teu pai! - repreendeu João Trindade, de mau humor.
-
Tenho sempre que me calar. Já sei, já sei...
-
Ela anda a ficar muito atrevida! Também me responde a mim! Não
sejas malcriada, Céu. Senão, pode sair-te cara a brincadeira! -
aconselhou o irmão mais velho, em tom irónico.
-
Eu não disse mal nenhum...
-
A pequena não disse nada que ofendesse ninguém, valha-me Deus! Só
pediu uma saia e nada mais...
E
dirigindo-se à filha:
-
Vai segando o caldo, que eu já vou ter contigo para conversarmos.
Maria
do Céu já não ouviu a mãe. Cabisbaixa, meteu-se em casa a
resmungar sozinha. Que não havia direito, os rapazes tinham tudo e
faziam o que lhes apetecia. Ao contrário dela, que tinha que se
calar a tudo. Pegar no que lhe dessem, sem nada poder pedir. Mas o
que mais a deixava triste era o pai pôr-se sempre do lado dos
irmãos. Que, esses sim, davam-lhe cabo do juízo. «Céu para aqui,
Céu para ali, Céu para tudo e mais alguma coisa».
Não
era que não fossem amigos dela, mas falavam como se fossem todos
seus pais.
-
Não vês que o irmão só te quer bem? Quer é fazer de ti uma
mulher como deve ser, valha-me Deus! - contemporizava a mãe, com
aquela calma na voz.
Aquela
calma que enchia o lar de paz. Que fazia de todas as horas, momentos
de carinho e de sossego.
(Excerto da biografia de Maria do Céu Trindade, que está a ser publicada em capítulos, nos jornais regionalistas:
Notícias de Castro Daire
Gazeta da Beira
Jornal do Douro
Notícias de Vouzela)
Aurora Simões de Matos - 2012
quarta-feira, 17 de outubro de 2012
Gratidão
Em prece, ergo minhas mãos aos céus
e invento nova forma de rezar,
entregando, com fervor, nas mãos de Deus,
o segredo que só quero partilhar
com quem entenda esta devoção
que, inebriada pela Natureza,
eu sinto pelo ar e pelo chão
em que nasci, na pura singeleza
do meu primeiro berço perfumado
por cravinas à mistura com o linho
bem corado pelas mãos de minha avó...
E, se a prece rezada em tom velado,
for por Deus entendida... em meu caminho
outras vozes me dirão que não vou só.
E muitas outras vozes se erguerão
cantando, em coro, um Hino de Alegria,
bendizendo, em uníssona oração
que subirá aos céus em melodia,
a Gratidão de quantos neste mundo
tiveram sua sorte bafejada,
ao nascerem e viverem, no profundo
amor por esta terra abençoada
que nunca atraiçoou os filhos seus,
que os espera de braços sempre abertos
de cada vez que se impõe um breve adeus
e que, com os sentidos bem despertos,
firme e atenta aos desígnios de Deus,
faz dos tempos errados... tempos certos.
Aurora Simões de Matos
domingo, 14 de outubro de 2012
Burra
escondida… com o corpo de fora
(in Contos de Xisto)
Uma noite, quando regressava do moinho, pelo carreiro das Devesas,
afigurou-se-lhe ver o Tonho das Cancelas, agachado entre o milho,
como quem, na calada da escuridão, se escondesse do mundo. Ainda
esteve para voltar a cabeça, na tentativa de perceber a situação e
encontrar uma certeza. Tão estranho!
O Tonho das Cancelas?! O que faria naquele lugar isolado das gentes,
àquela hora tardia de vida, naquela posição de quem espreitava
para não ser espreitado? Estaria a satisfazer alguma necessidade do
corpo, que ninguém pudesse cumprir por si? O Tonho? Seria mesmo ele
ou o diabo por ele?
Assim pensando, Alfredo Carriço fez figas, benzeu-se, recitou o
Credo e seguiu caminho, sem olhar para trás, meio desconfiado.
O Tonho das Cancelas?! Ali… longe da casita onde morava sozinho
desde que a mãe, viúva e acamada, se finara, ia para dois anos,
deixando-o ao cuidado dos mesmos vizinhos que a tinham acompanhado
até à ultima hora?
Filho único, nascera já fora de tempo, no aproximar da velhice dos
pais. Viera ao mundo sãozinho e escorreito. Mas quis a sorte que,
aos seis anos, a terrível meningite o deixasse incapacitado para o
resto da vida. Incapacitado de grandes pensamentos e raciocínios,
inteligência e hipótese de grandes êxitos. Incapacitado de se
exprimir por palavras que todos entendessem, pois a fala
entaramelava-se-lhe e nem sempre era fácil percebê-lo.
Fisicamente, não havia moço mais desenxovalhado nas redondezas.
Alto e bem parecido, não se lhe conheciam maleitas que o impedissem
de trabalhar, de conviver, divertir-se e mesmo namoriscar.
Todos gostavam dele. Por compaixão, mas também pela sua boa
disposição e ausência de maldade. As vizinhas revezavam-se na
lavagem da roupa e, aos domingos, havia sempre alguém a chamá-lo
para a sua mesa de almoço melhorado.
Durante o resto da semana, ele lá se arranjava, com o pouco que era
capaz de cozinhar.
Gostava de andar limpo e asseado. Lavateava-se, vezes sem conta, no
rego de água que, rumo às quelhas de Vale Fundeiro, lhe passava
quase rente às cancelas, cantando o que só ele entendia.
Talvez por isso, aquele rego de água fosse o seu maior amigo,
confidente de quantas alegrias e mágoas lhe iam atravessando a vida.
Aprendera a adormecer ao canto daquela voz líquida de murmúrios e
aprendera a acordar aos tropeços da corrente irregular. Aprendera o
passar do tempo, nas horas dos dias e das noites, com o volume da
água que alternava na estreita levada, e aprendera a conhecer-se de
feições, na limpidez daquele espelho rumorejante. Aprendera que,
depois de ultrapassar as cancelas do quinteiro que lhe emprestaram o
nome, era preciso ultrapassar o rego e que, para lá dele, havia um
mundo a descobrir. Aprendera, enfim, que, para vencer um obstáculo,
sempre teria que experimentar um passo maior.
Naquela noite quente de verão, apetecera-lhe ir até ao rio. E foi
já perto dele que, num silvado que servia de extremas a dois
milheirais, parou a apanhar amoras, à luz do luar.
Foi daí que se lhe afigurou ver o Alfredo Carriço a vir do moinho,
pelo carreiro acima. Ia a casa buscar mais um taleigo de centeio, que
a burra Mulata, manca de velha, não pudera com o carrego
completo e teve que, à última hora, descarregar o contrapeso.
Alfredo fez o que tinha de fazer e regressou ao velho moinho, com o
saquito às costas. Ao chegar, nem queria acreditar no que via, ou
antes, no que não via. A burra, que ficara presa a um amieiro,
desaparecera misteriosamente.
Lembrou-se então do Tonho das Cancelas, ou do diabo por ele, que se
lhe tinha afigurado ver. Benzeu-se outra vez, olhou ao derredor,
chamou o animal; mas nem um zurro, nem um bater de casco.
Quando amanheceu, foi o Carriço à procura da Mulata, por
entre montes e vales, carreiros e ribeirinhos, giestais e matagais,
por atalhos que lhe foram comendo as forças.
Sabia que o Tonho não tinha currais, mas sempre espreitou pelas
cancelas entreabertas. Nada se notava. Apenas uns barulhos esquisitos
vindos do interior da casita de xisto e o murmúrio da água correndo
pelo rego, onde o rapazola se lavateava, como era seu costume.
Alfredo mandou rezar um responso a Santo António, advogado das
coisas perdidas e, pela burra, ofereceu uma vela para a festa da
Santa Padroeira.
E não é que a Santa Padroeira ouviu as suas orações, aceitou a
vela e fez o milagre?
No dia da festa, no fim da Eucaristia, o povo, atrás do andor da
Santa, organizou-se em procissão até ao Cruzeiro, rezando e
entoando cânticos.
A fechar o cortejo, o Tonho das Cancelas, com ar solene, montado na
burra manca, ia respondendo às palavras do Senhor Abade:
Arre Mulata… cheia de graça… Arre Mulata… entre
as mulheres… Arre Mulata… rogai por nós… Arre Mulata…
agora e na hora da nossa morte. Amem.
Aurora Simões de Matos
in Contos de Xisto
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quinta-feira, 11 de outubro de 2012
Regionalismos da beira-Paiva
(Médio Paiva)
abada-
quantidade contida numa aba de avental; grande quantidade
almotriga-
almotolia; vasilha para o azeite
aguilhada-
vara comprida com ferrão na ponta, para picar as vacas
arrecada-
argola
augado-
guloso
alapado-agachado
alancar- carregar às costas
aluado- maluco
aqueibar-deter
arancu- pessoa parada, com pouco rasgo
arreganhar a tacha- rir
astrever-se- conseguir
atrojar- dar pancada na cabeça de alguém ou de algum animal com intenção de matar
auga- água
barranha-
panela de barro vidrado
barrela-
método de lavagem da roupa, em grandes cortiços, com cinza e água
a ferver
barreleiro-
pano de linho
barroco-
caminho fundo e acidentado, com passagem de água
boletra-
bolota
~
de
boamente- de boa vontade
bonecra-
boneca
bornal-
sacola para levar a tiracolo
bosteira-
monte de bosta
broche-
alfinete de lapela
bucha-
comida em pequena quantidade
babujar- babar
bacro- porco pequeno
balsa- dorna
barulho- zaragata; discussão
banzoneira- mulher coscuvilheira
belga- rego de água estreito que parte da torna ( rego maior)
bolastra- preguiçosa
boletra- bolota
borboreta- borbolet
a
a
bordasco- linho grosseiro
borratel- diarreia
botelha- abóbora
caçoila-
panela de barro
café
do bom- café puro
café
de cevada- cevada
calubra-
cachaço do porco
caturno-
meia curta
caticha!-
exclamação de repugnância
carreiro-
caminho muito estreito
caneco-
vasilha em madeira, para a água
cevado-
porco pronto para a matança
chambaril-
apetrecho para pendurar enchidos, sobre a lareira
chamiça-
gravato de lenha
ciloiras-
ceroulas
cobranto-
quebranto; prostração
codo-
gelo à superfície do chão
consoadas-
presentes de Natal
contas-
terço
corte-
curral
cravo
de papel- bandeirinha de papel
cuinhar-
gritar aflitivo do porco
calha bem!- manifestação de desaprovoação a rematar uma frase
canso- cansado
caculo- acima das bordas de uma medida
caganita- excremento de cabra, ovelha ou coelho
ceia- jantar
chimpar- arremesa
r
r
calhorda- pessoa desprezível
dada-
vermelhidão no seio da mulher que amamenta
desapartar-
separar
dependuradoiro-
apetrecho para pendurar o porco morto de cabeça para baixo
desenriçado-
desemaranhado; alisado
desmancha-
operação para decompor o porco morto em pedaços
dito-
ditado
desalvorado- agitado,sem tino, desnorteado
desinçar- desembaraçar
diteira- pessoa maldizente
encafoar- arrumar apressadamente
empalhar a água- juntar palha à terra, para melhor segurar a água no rego
emborcado- debruçado
empecer- atormentar
empegar- regar pela primeira vez
empontar- afastar alguém
escachar- puxar de esguelha
escachar- se-afastar as pernas
escarnicalho- trocista
escraviado- acidentado; que sofreu acidente
encardido-
muito sujo
enchedeira-
espécie de funil para introduzir a carne de porco na tripa, para
fazer os enchidos
engalhar-
enganar
engadilhar-
bulhar
enxergão-
colchão cheio com palha
escaleira-
escada exterior
escarrapachada-
sentada com as pernas abertas
escochada-
sem cabeça
escudela-
espécie de bacia de madeira, para saltear a massa do pão antes de
entrar no forno
fento-
feto
fieira-
fila
fressura-
vísceras de um animal
fueiro-
pau afiado que se espeta no carro de vacas para segurar a carga
gatafanho-
gafanhoto
home-
homem
gaiteiros- cogumelos a nascer
junguir-
jungir; emparelhar
jantar- almoço
joiça- excremento
lançar fora- vomitar
lanzudo- cabeludo
liço- fio ou cordão
lumiar- designar; apontar o nome
luxar- vestir bem
lameiro-
campo com erva para os animais
levada-
torrente de água
licança-
lacrau
longumeiro-
legumeiro
mancheia-
mão cheia; punhado
maninho-
terreno baldio
maquia-
percentagem
manteiga
de porco- banha
masseira-
grande tabuleiro de madeira com pernas, onde se amassa a farinha,
para fazer o pão
mercar-
comprar
mareado- tingido
moado- fundo do caldo da tigela
moafa- trejeito
monzém- pessoa preguiçosa
odre cheio- estômago cheio
ougado- guloso pelo que é dos outros
ougar- ficar com sentido no que é dos outros
ougar- partir ao meio
patim- patamar nas escadas exteriores da casa
peitar- presentear
pelego- que tem dificuldades na fala
postema- melancoli
prosa- vaidade
palaio-
salpicão feito com a língua do porco
palheiro-
arrecadação onde se guardam palhas, fenos, lenhas e alfaias
agrícolas
pão-
leve- pão- de-ló
pegureiro-
pastor
pedão-
podão
pedoa-
podoa
pilheira-
monte de lenha ao lado da lareira
pirolito-
bebida gasosa
poldra-
pedra colocada no rio, para facilitar a passagem a pé
porteira-
entrada
potra-
doença na raiz de certas plantas
puído-
gasto
quebrados
( toque a)- toque a finados
queiroga-
torga
quentura-
calor
quinteiro-
pequena área do espaço habitacional, onde se fazia a compostagem de
certos lixos e despejos das cozinhas
ramo
da teia- medida de comprimento com cerca de três metros de teia
rede
chumbeira- rede de pesca com malha apertada e pedaços de chumbo para
apanhar também peixes muito pequenos
rela
ou reza- espécie de rã dos matos
rogar
uma pessoa- convidar ou contratar alguém
santas
barbras- santas bárbaras
sebe-
espécie de cerca feita de vime entrelaçado, que se usa sobre o
carro de vacas, para segurar a carga
sopa-seca -
sobremesa feita com fatias de pão de trigo, mergulhadas em água com banha de porco e polvilhadas num alguidar de barro, às camadas, com açúcar e
canela, antes de irem ao forno a tostar; sobremesa de festa dos pobres
sorte-
campo de cultivo
sortes
-( ir às)- ir à inspecção militar
suventre-
parte da barriga do porco
talhadoiro-
lugar onde, no rego, se interrompe o percurso normal da água para a
rega
talhar
a água- mudar a direcção da água; tapar a água do rego
tapada-
terreno no monte, cercado de muro
tentear-
equilibrar
terçogo-
terçolho
tirante-
excepto
tomentos-
linho grosseiro
travesseiro-
almofada estreita e comprida, com o comprimento igual à largura da
cama
tricha-
icterícia
unheiro-
olheiro
venda-
loja; mercearia
vessada-
preparação da terra para a sementeira
vigia-
rebanho
volta
de ouro- fio de ouro
Aurora Simões de Matos
in "Imagens da beira-Paiva" - 2001
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