MEMÓRIAS DE UM DIA DE ROMARIA
( Por meados do século XX )
( Conto )
Tal como hoje, em pleno verão, no último fim de semana de julho, os povos ao redor preparavam-se para a concorrida festa de S. Macário.
O trânsito para uma outra face da vida começava na antevéspera do grande dia, quando os do grupo, a que todos os anos se juntavam mais alguns elementos, começavam, cada um em sua casa, os preparativos para o farnel da tradição, que se queria tão farto e esmerado quanto o permitisse o desafogo de cada família.
Era preciso pôr o bacalhau de molho em água fresca da fonte, várias vezes mudada, quer se destinasse às postas para fritar, envolvidas em leve polme de ovos e farinha triga, aromatizado com a verdura da salsa, quer se destinasse aos bolos de bacalhau a que, a par da qualidade dos ingredientes, só a experiência da cozinheira poderia garantir o êxito e o elogio.
Na véspera, matava-se o frango que, depois de cortado aos bocados, temperado e acerejado na sertã, em azeite ou manteiga de porco, era acomodado no tacho de esmalte e metido no cesto, ao lado das latas forradas de papel pardo, onde se acondicionavam também a chouriça e o salpicão cozido, os fritos de bacalhau, as bogas de escabeche, as filhós polvilhadas de açúcar ou cobertas de mel.
A toalha branca de linho corado, bordada a bainha aberta e debruada a bicos de renda, envaidecia o cabaz da merenda que, à cabeça das romeiras, assumia um dos mais fortes protagonismos da festa.
De madrugada, ainda o céu estrelava, desceu o grupo até ao passadoiro da Paiva, nas poldras da Nogueirinha. A água cobria as pedras, mas era a única passagem por ali perto.
-Quem for calçado, tem que se descalçar...
A maioria já o ia, por promessa de sacrifício ou por cuidados em não romper, em tão longa caminhada, os tamancos ou as alpercatas que só à entrada da romaria seriam postos nos pés, em sinal de asseio, de luxo, de afirmação social, de respeito pelo momento.
A pequena Maria levava sapatos velhos para a viagem a pé e outros novos de verniz, para se apresentar catita no recinto dos festejos.
A mãe, ao ver a água cobrir as poldras, recomendou.
-Descalça-te para atravessar a Paiva. Não vês que molhas os sapatos?
Mas a garota, despreocupada, fez orelhas moucas e foi saltando de pedra em pedra, com o calçado nos pés.
De repente, um escorregão na maciez limosa da poldra desprendeu-lhe o sapatito que, num instante, se perdeu de vista, por entre a espuma das águas, cantando na fresca madrugada.
-E agora? - perguntou Maria, aflita.
Agora vais com um pé calçado e outro descalço, que é para não seres desobediente. E não olhes para os de verniz, que esses só os vais calçar à entrada da festa.
A cantar e a rezar, subiram à escola da Ameixiosa e seguiram pelos carreiros serranos, serpenteando o monte nos maninhos das encostas.
Já ia a manhã a meio, quando chegaram ao destino.O grupo parou, a fim de se preparar para a entrada no buliço da romaria.
Algumas mulheres viraram a saia do direito, pois o avesso da mesma lhes servia de roupa de cote e de trabalho.
Sentados a uma sombra, comeram a primeira parte do farnel, trocando entre todos petiscos e elogios.
- Não sei como é. Eu faço os bolos de bacalhau pela receita da Inês, dou-lhe as mesmas voltas, mas os dela ficam sempre melhores.
- A diferença está nas batatas, te afianço eu! - acudiu a vizinha, cheia de sabedoria.
Estão já perto da capela de S. Macário de Baixo, mesmo ao lado da gruta onde se diz que. como sacrificado eremita, viveu em oração e penitência o almocreve que um dia, encontrando na sua cama um homem deitado, roído pela dúvida quanto à fidelidade da esposa, o matou sem dó nem piedade, ignorando tratar-se do seu próprio pai.
Quando se apercebeu do que fizera, aterrorizado e arrependido, procurou no isolamento do monte o castigo e o sacrifício que lhe valeram a fama de Santo e a honra dos altares. O seu culto data já do século XIII.
Depois de uma visita à capela e à gruta, o nosso grupo sobe pela encosta, por caminho íngreme e difícil, coalhado de romeiros, de pedintes, de muitos devotos cumprindo promessas. Uns a pé, outros de joelhos e mesmo de rastos, até à capela de S. Macário de Cima.
É ali a ermida maior e mais antiga, protegida dos ventos e escondida dos olhares por um alto muro, construído a toda a volta. E é ali que todos assistem à Missa e ao sermão do pregador.
Cumprem as suas promessas, dão as suas esmolas em dinheiro, oferecem as suas velas e figuras de cera.
Finda a parte religiosa, dão umas voltas pelo recinto da romaria, encontram gente conhecida, fazem compras, apreciam o lançar de uma descarga de fogo e preparam-se para mais um avanço no farnel.
Pelo meio da tarde, chegam os tocadores de concertina e os cantadores de fado à desgarrada.
Estarão presentes os mais afamados das redondezas.
A Arminda do Veado, cinquentona ainda com o sangue na guelra, toma a dianteira e provoca o cantador, que acaba de se apear do cavalo:
Ó meu rico S. Macário
Mandai varrer o terreiro
Que vem aí o boi bravo
Falta vir o carniceiro
E logo ele, de língua pronta e voz afadistada:
Venho da vila de Braga
Governar a minha vida
Se eu sou boi tu és a vaca
Venho ver se andas saída
No meio de palmas e gargalhadas, o desafio continua até as vozes enrouquecerem de alegria, brejeirice, entusiasmo e cansaço. Alguma raiva. Algum despeito. Muita euforia. Vaidade em ser o melhor. Gozo e prazer pela admiração de quem ouve e aplaude.
Para o ano há mais. Que enquanto houver S. Macário, não faltarão romeiros nem romaria!!!
Autora: Aurora Simões de Matos
Romeiros de S. Macário
Na encosta de Nodar
que subia até Parada
muitas vezes esperei
em alta fraga sentada
ao fim de tardes distantes
de dias de calmaria
os cansados viajantes
e as canções que a voz erguia
dos romeiros viandantes.
Tinham partido a rezar
manhã cedo madrugada
em bandos de cada aldeia
a alma em fé inundada
cabaz com farnel sortido
por caminho já lendário
por atalho escondido
rumo a Santo S. Macário
no alto da serra erguido.
Do alto da tua serra
Vejo tudo ao derredor
E ouço vozes na Terra
Cantando-te seu louvor.
Vim de longe e vim a pé
À festa do S. Macário
Trago na alma esta fé
Que me ajuda em eu calvário
Ó meu rico S. Macário
Que tens duas capelinhas
Numa rezei meu rosário
Noutra pus nove velinhas
Meu rico S. Macairinho
As tuas capelas são
Bem pequenas para quem
É da serra o guardião.
Regressavam a cantar
depois da longa jornada
de corpo todo partido
Já bem perto de Parada
na encosta de Nodar
os realejos tocavam
cantigas de bem amar
Cravos de papel falavam
da romaria sem par.
Fui pedir ao S. Macário
Que me desse bom viver
Sem doenças nem desgostos
Que eu lhe irei agradecer
No dia da romaria
Apanhei muito calor
Mas tudo valeu a pena
Em troca de um novo amor
A água fresca da serra
Bebi eu em muita mina
Mas só acalmei a sede
Em Macário de Cima
A S. Macário de Baixo
Cheguei já com merenda pouca
Resolvi matar a fome
Com o pão leve de Arouca
Nem o Alto de Parada
nem a Encosta de Nodar
são os mesmos daquele tempo
Tudo tem vindo a mudar
mesmo da serra o caminho
Só não muda a devoção
do povo por seu Santinho
e o povoa corre no verão
ao Santo S. Macairinho...
Autora: Aurora Simões de Matos
1 comentário:
S. Macario de rara beleza tendo por la passado grandes cantadores de desgarrada
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