~~~ HONRA E ORGULHO EM COAUTORIA ~~~
Com Prefácio do Senhor Presidente da República, Professor Marcelo Rebelo de Sousa, acaba de ser publicada mais uma obra de que sou coautora. E que é, sem dúvida alguma, com cerca de 400 páginas de profundo saber partilhado, um dos mais importantes livros alguma vez escrito sobre o Montemuro.
Uma honra fazer parte do leque dos treze autores convidados (várias teses de doutoramento sobre esta região) com que a Dra. Pilar Dias, com raízes parentais em Picão e coordenadora de tão ambicioso projeto, a partir da exigência que lhe conhecemos, pôde contar. Para, cada um ao seu estilo e especificidade no conhecimento da vasta terra montemurana, dar o seu melhor, em registos documentais que certamente ficarão para a História da nossa Serra. Sob o ponto de vista geográfico, histórico, social, económico, etnográfico. A fauna, a flora, a paisagem natural e a humana. Tradições que aqui afloram, em ambiente cultural de enorme alcance, na missão sublime da preservação incólume das raízes.
O tema que me foi destinado - " A ESCOLA DO MONTEMURO - MEIO SÉCULO DE DESAFIOS" foi desenvolvido em 17 páginas de um testemunho vivo, na qualidade de professora, autora, estudiosa e apaixonada pela cultura tradicional deste chão natal que me é sangue.
Muito obrigada,Dra. Pilar Dias, por me ter incluído nas suas escolhas.
Muito obrigada,Dra. Pilar Dias, por me ter incluído nas suas escolhas.
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A ESCOLA DO MONTEMURO - MEIO SÉCULO DE DESAFIOS
Estávamos na década de 1950. Ainda a distância considerável, viria a denominada "DEMOCRATIZAÇÃO DO ENSINO". Tão desejada pelos politizados e naturalmente tão utópica para a grande maioria da população portuguesa. Uma enorme percentagem dos habitantes do Montemuro seguia a par com a situação de outras regiões do País, onde o isolamento ditava o elevadíssimo grau de analfabetismo, que nos colocava na cauda de uma Europa cada vez mais culta.Por aquele tempo, o maior sonho de qualquer chefe de família com os recursos económicos que lhe permitissem uma maior visão sobre o mundo, era ter um filho doutor de leis ou uma filha mestre-escola. Assim, e sendo que meu irmão mais velho era já advogado, nosso pai decidiu que eu seria professora.Quando chegou a altura, internou-me num bom colégio de meninas em Viseu, de onde passei mais tarde, em regime de semi-internato, para a frequência da ESCOLA DO MAGISTÉRIO PRIMÁRIO. E aos dezoito anos, tinha na mão o diploma que me conferia habilitações para exercer a docência, em qualquer estabelecimento da então chamada Instrução Primária.A esse natural orgulho pela compensação do meu esforço, aliava-se o de quem tinha encontrado a sua vocação profissional e ainda a alegria de meu pai estampada no rosto e no olhar quando, para amigos, conhecidos e desconhecidos, proferia a solene informação: «Tenho uma filha empregada do Estado.»*Por tudo isso, a responsabilidade da menina-mulher profissional era redobrada quando, a sete de outubro de 1960, me dirigi ao primeiro emprego. Por sinal e por sorte, na própria aldeia onde nasci e que, nos últimos anos, usufruíra já dos serviços de uma regente escolar. A quem fora, como a muitas outras por esse Portugal adiante, além da quarta classe obrigatória por lei, ministrado um curso intensivo de algumas semanas, que a habilitava para a prática pedagógica com crianças. Para trás tinha ficado mais um dos postos de ensino que, poucas décadas atrás, exigia aos seus profissionais apenas que soubessem ler e escrever.Era eu, portanto, na história da minha terra e ao seu derredor, a primeira diplomada a exercer a atividade de professora. O que, na opinião dos aldeões, justificava a cem por cento a grande descarga de foguetes que rebentou no ar quando, um pouco antes das nove horas previstas no horário, cheguei à porta da escola.Minha mãe, que me acompanhava para assistir à festa, não dominou as lágrimas e, livremente, juntou-as ao pranto emocionado de várias dezenas de homens e mulheres que, daquele modo exuberantemente ruidoso e simultaneamente intimista no carinho, manifestavam o seu orgulho e a sua expectativa.Uma professora diplomada e para mais filha da terra! Poderia lá haver maior causa de alegria?! E certamente fora por esse motivo que meu pai, mais tarde, trouxe a notícia que dava conta da surpresa, do espanto e das felicitações dos outros povos em volta, acordados do torpor matinal pelo estralejar festivo da minha aldeia.Mas o encanto maior tive-o eu, não por via do foguetório, nem pelas lágrimas sentidas daquela gente boa que tanto esperava de mim. A emoção mais forte daquele primeiro dia com as crianças esteve no momento em que elas, alegremente, me brindaram com um afinado coro de vozes:- Bom dia, senhora professora!!!*A escola era uma casa arrendada a particular, que a tinha devoluta e que servira já ao trabalho da tal regente. Possuía uma sala e, separados por taipal de madeira, dois quartinhos minúsculos e sem luz natural.Através da pequena sacada e das duas janelas apertadas, entrava o sol possível, logo pela manhã. E o ruído dos raríssimos carros que passavam na estrada. Mesmo ao descer das escaleiras e a seguir a um pequeno logradouro, que servia de apoio aos tempos de recreio. Sem a presença de qualquer funcionária que ali ajudasse a controlar as crianças, que brincavam ao lado da via, na ausência de qualquer proteção. Essa seria também, logicamente, função da mestra.*Não tinha eletricidade, nem água por perto. Obviamente que à semelhança da grande maioria das escolas, espalhadas pela serra do Montemuro e pelo vale do Paiva. Quer funcionassem em espaços privados, quer pertencessem aos vistosos edifícios do Plano dos Centenários, que o Estado Novo mandara edificar, na década de quarenta. Em comemoração de duas importantes datas para a Nação Portuguesa: a da independência do Reino, em 1140, e a da sua restauração, em 1640.Não havia casa de banho. Nem espaço onde as crianças pudessem aliviar-se. Teriam de procurar o monte mais próximo, ou a berma de um caminho. Nesse aspeto, a professora sempre gozava da boa vontade de uma vizinha que, com marido jeitoso para a carpintaria, tinha construído, toda em madeira e ao lado da sua habitação, aquilo a que chamavam uma "sagreta". Onde não se usava água e de que se aproveitava o estrume para adubar a terra de cultivo.Bem vistas as coisas, e à luz da condição atual das necessidades básicas, não tinha quase nada, a minha escola. A bem dizer, nem carteiras suficientes para sentar os 67 alunos que a frequentavam naquele ano. Isso mesmo, senhor leitor. Percebeu bem, mas vou escrever por extenso. Sessenta e sete alunos das quatro classes. E vinte carteiras. O que, feitas as contas, obrigava a que os mais pequenos se sentassem aos quatro e os maiores aos três, em cada uma daquelas estruturas de madeira, com assento agarrado ao tampo inclinado. Possuindo na parte superior um estreito apoio horizontal, com dois buracos onde se enfiavam os tinteiros de louça branca.Bonito! - pensava eu, enquanto os dispunha nos seus lugares para, de seguida, rezarmos de pé a primeira oração em conjunto. A primeira de muitas.
Modelo de sala de aula do Estado Novo ( imagem google)
Na parede branca da frente, um grande crucifixo e, uma de cada lado, as fotografias do Presidente da República, Almirante Américo Tomás e do Chefe do Governo, Doutor Oliveira Salazar. Suspenso logo abaixo, o grande quadro preto, onde se escrevia a giz branco. E se limpava com esponja ou pano húmido, para não levantar pó. Nas paredes laterais, o mapa de Portugal Continental e o das Províncias Ultramarinas. De apoio ao estudo da situação, limites, divisão administrativa, cidades e vilas, rios e seus afluentes, serras e montes, caminhos de ferro e seus ramais, produções e indústrias nas várias regiões dos territórios em causa. E um Mapa-Mundo. E um outro com imagens do corpo humano, para estudo dos seus órgãos e funções.O estrado a demarcar posições e, sobre ele, uma secretária e uma cadeira. Sobre a mesa, repousava a temida régua de madeira grossa. Que, pelos vistos, fazia parte do mobiliário. Ou ali fora, simpaticamente deixada por alguém, como instrumento indispensável ao bom funcionamento dos trabalhos! Ao lado, e em jeito de biblioteca, não mais que meia dúzia de livros, num pequeno armário de duas portas envidraçadas. Com protagonismo para as publicações que falavam dos valores da família, da religião católica, dos feitos dos nossos heróis coletivos. E do Ultramar Português. Não havia ainda, por aqueles anos, literatura infantil disponível ao acesso de todas as crianças. Nada disso. Esse mimo propagar-se-ia bastante tempo depois.*Quase nada. E no entanto, quase tudo. A minha vocação, à prova do meu esforço. A minha juventude, à prova da minha alegria. A surpresa confusa, à prova de um raciocínio lógico e frio. E a inocência rebelde dos sessenta e sete, à prova da sua capacidade de concentração em coisas novas, trazidas pela senhora professora. Diplomada, como tanto tinham ouvido repetir nos últimos dias.Quase tudo. E, a sobressair de tanta fartura de emoções, o luxo de uma estrada à porta. Que fazia a enorme diferença entre a minha escola e a da maioria das colegas, espalhadas pelo mundo da nossa serra. Muitas em lugares recônditos onde, em alguns casos, apenas o burro seria usado como transporte possível, por carreirinhos entre mato, à flor da terra.Pobres colegas, companheiras de sonhos e crescimentos! - pensava eu. A grande maioria, no feminino. Que, por aqueles anos, poucos eram os homens que se aventuravam no ensino. Cá para mim, penso que muito por via de uma atitude com laivos do preconceituoso machismo vigente. Vivia-se uma cultura civilizacional, que ditava a educação para a maternidade das raparigas. E a figura da professora tinha muito de maternal. Onde já se vira um homem trabalhar com "canalha" e limpar o ranho aos filhos dos outros? Os poucos professores homens disponíveis eram colocados apenas em escolas de turmas masculinas, onde as havia. Em localidades de maiores agregados populacionais. Onde já se vira um homem ensinar, aos sábados, as meninas a bordar e a coser roupa, na aula de lavores? E não nos esqueçamos que a coeducação em turmas mistas era considerada, em última análise, um mal menor de recurso economicista. Mas que nunca um professor homem poderia, por lei, lecionar nessas condições.*Sim, nesse tempo e por mais uns bons anos, a escola abria aos sábados de manhã. Era o dia das atividades ligadas à Mocidade Portuguesa. O que então se chamava de Educação Cívica. A formação para a cidadania, como se diria nos dias de hoje. Era a manhã destinada à Moral e Religião, às limpezas, à costura e bordados para as raparigas, aos trabalhos manuais para os rapazes. E às cantorias. Que começavam com o Hino Nacional e terminavam com a Marcha dos Lusitos. No inflamado ardor que determinava uma educação carregada da ideologia imposta pelos valores do Estado Novo.Era ainda nesse dia que costumávamos fazer as contas e lavrar as atas da Caixa Escolar.- O que era a Caixa Escolar? - perguntarão os mais novos.Era uma espécie de conta corrente de todas as receitas oferecidas por algum benemérito e pelos alunos com maior poder económico, através de quota mensal obrigatória. E de todas as despesas em material escolar coletivo ou individual, em favor dos mais necessitados. Giz e esponja para usar no quadro preto, borracha e afia, tinta azul para encher os tinteiros onde se molhavam os aparos (ou bicos) das canetas (ou penas). Somente usadas a partir de uma certa fase das classes mais adiantadas, depois de muito bem treinadas a escrever a lápis, em bonita caligrafia. Mas também os individuais caderninhos de uma ou duas linhas... e poucas folhas. Ainda daqui poderia sair o dinheiro destinado à compra das vassouras e do sabão, para limpeza semanal da sala de aula. Limpeza feita pela professora e pelas alunas. Que aos rapazes estava destinada a tarefa de carregar com os jarros de água da fonte.Mas sobre a Caixa Escolar há ainda a referir que, mensalmente, a professora reunia com os órgãos sociais da mesma, eleitos pelos companheiros, dentre os que eles entendiam ser os mais capazes. Para se fazerem as contas ao dinheiro recebido e gasto, assim como ao saldo guardado numa caixinha de cartão pelo tesoureiro, sob a supervisão do presidente. No fim, o secretário lavrava uma ata. Talvez o primeiro contacto das crianças com a responsabilidade do fenómeno comunitário da partilha e da contabilidade organizada. Talvez um rudimentar exemplo de conceitos como honestidade, poupança, justiça social, impostos, ou burocracia.*A escola abria, obrigatória e diariamente, às 9 horas, embora para os alunos da quarta classe abrisse mais cedo. E fechava legalmente às 15,20 horas, embora para os mesmos fechasse bem mais tarde. Além do tempo para o almoço (que na minha terra se chamava jantar), havia um pequeno intervalo de dez minutos, a meio da manhã. Para uma ida ao monte e comer a côdea de pão. Isto, porque ali se trabalhava em horário normal, com uma única turma mista. Mas havia lugares, onde funcionavam uma ou mais turmas masculinas e outras tantas femininas, conforme a sua população. Nesses casos, os chamados horários de curso duplo funcionavam repartidos pela manhã mais prolongada, e pela tarde do mesmo modo.Ao contrário desses meios mais populosos, que poderiam usufruir da Cantina Escolar, onde era servida uma boa sopa aos alunos mais carenciados e que funcionava nos moldes da Caixa Escolar, na minha aldeia, as crianças iam todas comer a casa. Mais ou menos perto, mais ou menos distante. O que não ficava era nenhuma sem a sua dose diária (uma colher de sopa) de óleo de fígado de bacalhau, suplemento alimentar oferecido gratuitamente a todas as crianças portuguesas com dificuldades económicas e em idade escolar, pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura). Tinha um sabor desagradável, mas todos o tomavam, com ou sem caretas.
Alguns dos símbolos da escola primária portuguesa, ainda durante parte da segunda metade do século XX ( imagem google)
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A vida era muito dura, para os pequenos estudantes. Além das pesadas matérias curriculares (Língua Portuguesa, Aritmética, História de Portugal, Geografia, Ciências da Natureza, Desenho, Religião e Moral) com todas as minúcias e pormenores, havia que enfrentar uma escola onde se impunha ordem, respeito e disciplina. Muitas vezes, a custo de castigos corporais. Que as famílias aceitavam e mesmo aconselhavam, para bem do crescimento dos filhos, segundo o seu entendimento.Nunca obriguei ninguém a ajoelhar sobre grãos de milho. Nem usei as humilhantes orelhas de burro. Ou a clássica palmatória, também chamada "menina de cinco olhos". Com buraquinhos que ficavam marcados na palma da mão. Não possuí nenhuma, ao longo de toda a minha carreira profissional. Isto não quer dizer que nunca tenha aplicado umas boas reguadas ou palmadas nos pequenitos. O que hoje me faz doer a alma. E uns puxões de orelhas valentes, também os dei. Quanto mais não fosse, para me livrar de ser eu a levar. Recordo que tinha, ao começar, dezoito anos, e os meus alunos mais velhos tinham doze. E que, nestes assuntos de dar e apanhar tareia, tinham eles muito mais prática do que eu.A exigência era, de facto, muita. As disciplinas de estudo aprendiam-se pela repetição e memorização, muitas vezes pela noite fora, à luz do candeeiro de petróleo. A Aritmética era difícil, sim, embora uma vez compreendida, se chegasse lá. Pois que o cálculo seguia um certo número de problemas-tipo, cujo raciocínio era quase sempre o mesmo. Sabidos esses, sabiam-se todos os outros. Já as célebres contas eram um horror de desperdício. De tempo e de interesse. Com números de muitos dígitos, a complicarem desnecessariamente. Com vírgulas, prova dos nove e provas reais, para não haver enganos.A primeira classe era penosamente sobrecarregada. Além de terem de aprender a escrever com uma caligrafia regular (que se aperfeiçoava nos cadernos de duas linhas, primeiro a lápis e depois a caneta, cujo aparo se ia molhando no tinteiro, só depois de bem treinada nas lousas ou ardósias com o ponteiro ou lápis de pedra), os pequenitos tinham de aprender a fazer cópiase ditados, pequenas redações, responder por escrito a perguntas de interpretação de um texto e a ler com o mínimo de hesitações. Embora o que ainda hoje mais me confunda, fosse a difícil exigência que obrigava a trabalhar com as quatro operações matemáticas, incluindo a divisão. Complicada, para os sete ou oito anos de qualquer mortal. E a decorar toda a tabuada, seguida e salteada, que as crianças aprendiam em coro, cantando-a repetidamente.*A quarta classe era uma epopeia. Para aquelas crianças e suas famílias, um sonho e uma conquista apaixonante. Ter, em meados do século XX, o diploma de exame do segundo grau, era subir uns bons lanços na escala social daquele mundo rural e, muitas vezes, um salto para a grande cidade ou para um bom emprego no estrangeiro.As matérias curriculares eram vastíssimas. Saber, por exemplo, o nome das linhas de caminho de ferro e dos ramais a seguir, na viagem de um ponto a outro à escolha da professora, perante o mapa de Portugal, era tarefa que hoje nos parece abusiva para uma criança que nem sequer sabia o que era um comboio.Saber, por exemplo, o nome das produções agrícolas nas várias províncias de Angola e Moçambique e o nome de cada rio que banhava essas mesmas regiões, era conhecimento que hoje nos parece absurdo para uma criança que nem sequer fazia ideia da lonjura dessas enormes metrópoles, nem das razões de tanto interesse por elas.Saber, por exemplo, os nomes e respetivos cognomes de todos os reis da Monarquia e de todos os presidentes da República de Portugal em sequência, assim como o de todas as cortes, batalhas, tratados e invasões com respetivas datas, heróis e traidores da nossa História, era esforço de memória que hoje não se justificaria exigir-se a uma criança de dez anos. Talvez cheia de fome e de frio, sem outros heróis conhecidos e respeitados que não fossem os anciãos do seu mundo que, por experiência de vida, sabiam responder a todas as perguntas.Saber, por exemplo, o nome de todos os órgãos, aparelhos, funções, sistemas e seus mecanismos de funcionamento no corpo humano, as classes dos outros animais e das plantas, assim como a sua formação e reprodução, com pormenores a diversos níveis, e ainda os tipos de terreno, rochas e minérios, era obra de grande monta e esforço gigante. Para meninos habituados à naturalidade de verem parir os animais que com eles conviviam diariamente em casa e pelas ruas da aldeia. A participarem na sementeira, rega e colheita dos cereais e renovos, nos campos espalhados pelas encostas da sua terra. A darem pontapés descalços nas pedras, pelos caminhos acidentados que lhes oferecia o chão onde tinham nascido.Saber, enfim, por exemplo, na segunda classe, portanto aos oito ou nove anos, obrigatoriamente executar as quatro operações matemáticas, cada uma com a sua prova dos nove e as respetivas duas provas reais (pela mesma operação e pela operação inversa), a escrita de frações e - pasme-se - todo o sistema da numeração romana é, no mínimo, mais que convite ao saber, um atentado à resistência das capacidades na infância.*
Foto 1 - Escola masculina de Vila Seca, a funcionar em casa particular, desde inícios do século XXTudo isto e muito mais era exigido aos pequenos da escola primária, num ensino marcadamente revestido de profunda orientação cristã, ao abrigo da Concordata entre o Estado e a Igreja.Mas o certo é que as crianças sabiam. Só não atingiam as metas aquelas que, por qualquer problema de saúde física ou mental, de todo não conseguissem aprender. Ou quem muito faltasse. Porque, apesar da obrigatoriedade à frequência escolar, já nessa altura de quatro anos também para o sexo feminino, alguns eram ainda os gazeteiros. Por necessidades familiares que os empurravam para os trabalhos do campo, do monte, ou guarda dos irmãos mais novos. Ou então, não raras vezes, por necessidades de evasão física ou mental. Principalmente no tempo dos ninhos ou nas horas de maior calor, quando o corpo pedia uma banhoca nas águas frescas de alguma poça ou ribeira a jeito.O certo é que, repito, as crianças sabiam. E os exames provavam-no, sem equívocos, na sede do concelho, perante júri oficialmente nomeado. Para, com todo o rigor, espremer os pequenitos até ao tutano da sua esperteza, da sua inteligência, do seu saber e da sua sorte. Alguns membros desses júris eram mesmo conhecidos pela antipatia, exigência, ou implacabilidade.Mas as crianças sabiam, isso posso garantir. Algumas iam nesse dia, pela primeira vez, a Castro Daire. Acompanhadas pelas famílias e vestidas com traje de festa. A maioria, calçando sapatos, coisa que nunca haviam experimentado.As duas provas, a oral e a escrita, tinham lugar normalmente em dias seguidos. Mas para que não fosse o diabo tecê-las e a camioneta atrasar por qualquer motivo e não chegar a tempo dos horários previstos para os exames, pernoitávamos todos numa pensão da vila. Enorme surpresa para aqueles meninos que nunca tinham saído da sua aldeia, nem conheciam outra cama que não fosse o colchão de palha coberto de mantas de tiras, onde repousavam dos seus dias cansados. Um luxo!Ainda agora, ao recordar essas alturas de enorme tumulto emocional, continuo a sentir aquela azáfama, responsabilidade e preocupação, a fervilharem-me na lembrança.Era comum, em tempo de exames, um ou outro aluno sofrer uma reprovação. A pressão era muita e nem todos a suportavam. Mas nunca isso aconteceu a nenhum dos meus. Um orgulho para a professora e para as famílias que, em absoluto silêncio e com o máximo respeito, assistiam às orais de seus filhos. Seus filhos, que assim davam um grande passo, na afirmação como cidadãos honrados e prestigiados.*Acabada esta primeira grande prova de avaliação fora de portas, tão exigente quanto credível, o regresso a casa era marcado por uma descarga de foguetes, à chegada da camioneta que nos transportava à paragem da nossa terra. Eram risos, gargalhadas, cantigas, alegria a rodos, uma ou outra lágrima a rolar na emoção do rosto de miúdos e graúdos. Todos tinham passado no exame. E a estrada estava cheia, para nos receber.Havia, pois, segundo o entender daquela boa gente, que recompensar a professora, pelo seu trabalho e dedicação. As melhores peças de linho corado, cobertores de lã de ovelha, toalhas e jogos de cama, paninhos bordados a empenho, rendas feitas com carinho, colchas de puxados tecidas nos teares da aldeia. Os melhores frangos e coelhos, os melhores cabritos, o melhor fumeiro, uma ou outra prenda comprada nas lojas da vila. Para os mais pobres, um grande esforço de equilíbrio nos gastos domésticos, que não permitia ir além da meia dúzia de ovos, hortaliças frescas ou um ramo de flores cultivadas com amor. E que a mestra não se lembrasse de recusar alguma destas ofertas, pois ninguém perdoaria essa arrogância. Obrigatório e natural compensá-la, com a eterna gratidão e o incondicional respeito de todos.Devo referir que estes modos de agir, tanto por parte dos professores, dentro ou fora da escola, como dos alunos e suas famílias, eram comportamentos comumente enraizados em todo o Montemuro e beira- Paiva. E as práticas pedagógico-didáticas estendiam-se, mais ou menos uniformes, a todo o país.*Com a aprovação no exame, tinha terminado para aquele grupo a frequência escolar. Raríssima era a criança que continuaria estudos. Permaneceriam as saudades, manifestadas pelas visitas à professora, ao longo da vida de cada um. Estivesse ele onde estivesse, por esse mundo de Deus. Ficaria para sempre a lembrança de meninos a correrem descalços, pelos caminhos rugosos de uma aldeia perdida no Montemuro. De saca de serapilheira com alça a tiracolo. Leve de material, mas carregadinha de sonhos e de vontades.À mestra, restava-lhe a satisfação do dever cumprido. E poder rever, no Caderno da Classe, com orgulho, o que cada um deles ali fora registando durante o ano, diariamente e na sua vez. Exercícios sobre todas as disciplinas, separados uns dos outros por ilustrações pintadas a lápis de cor, de pequeninos motivos repetidos entre duas linhas. Muitas vezes representando bananas, ananases, palmeiras ou elefantes, numa clara alusão aos territórios de além-mar. Como lhes fora incutido, sob orientação de programas marcadamente ideológicos, como já foi referido. Exercícios elaborados com a melhor caligrafia e alguns suores, perante a " ameaça" de estarem a contribuir para o espelho de uma escola, com trabalho que bem poderia correr o risco de ir parar às mãos e às apreciações de qualquer diretor ou inspetor escolar que nos visitasse. O que aconteceu por diversas vezes, nos anos em que ali lecionei. Que a vantagem de se trabalhar junto a uma estrada, também tinha as suas surpresas.*Claro que o enorme prestígio do professor derivava muito da cultura impregnada de valores, arreigados a uma sociedade hermética e acomodada a tradições seculares. Ao acentuado grau de analfabetismo de toda esta região. E à esperança depositada numa escolaridade que, mesmo não indo além da obrigatória quarta classe, constituía, ainda assim, uma fase muito marcante na vida de uma geração, que começava a ter acesso a níveis de instrução a que tinham sido alheios seus pais e seus avós.A frequência da escola primária era de tal modo importante que, em diversos lugares do Montemuro, quando o Estado se furtava à obrigação de oferecer igualdade de meios a todas as crianças, o Povo construía as próprias escolas. A expensas suas.
Na freguesia da Ermida, por exemplo, os meninos da chamada " Ribeira", isto é, que habitavam mais perto do rio, frequentavam, desde inícios do século XX, a escola de Vila Seca, que funcionava em duas casas particulares, uma para cada sexo, e a que chegavam calcorreando por vezes grandes distâncias, debaixo de pesados sóis e assustadoras tempestades. Só em meados do mesmo século, na década de 1950, ali foi construído um novo edifício. Era uma escola do Plano dos Centenários, que recebia alunos de muitos quilómetros ao redor. Muitas vezes com fome, quase sempre descalços e mal agasalhados, mas com uma vontade férrea a ditar o cumprimento de um dever e de um sonho.
Já o lugar de Sobradinho, pertencente à mesma freguesia, temendo as intempéries da natureza e ainda os lobos pelo caminho até Cetos, construiu a sua própria escola. A braços dos seus homens e mulheres. A esforços da poupança de suas famílias. Num investimento de empenho, pela valorização dos seus filhos.
Foto 3 - Escola do Plano dos Centenários, construída em Vila Seca, na década de 1950 e hoje transformada em Centro de Convívio
Com as exigências internacionais sobre Portugal, o Governo altera toda a política de educação, nos seus diversos patamares. Começava a tão ansiada e justa "DEMOCRATIZAÇÃO DO ENSINO". Que só viria a funcionar em pleno, após o 25 de abril de 1974, e que rapidamente se alargaria a todo o país, com uma ampla mobilização e participação social.E mais acima, a aldeia de Picão, desde sempre bastante populosa, ainda na primeira metade do século XX levou a cabo, por sua iniciativa, a construção de uma casa com duas salas, onde funcionou, durante muito tempo, a escola. A que não faltava o terreiro, de apoio aos tempos livres nos recreios da criançada. E mesmo uns miniaposentos para habitação dos professores, que vinham sempre de longe.Mais tarde, na segunda metade do mesmo século, a terra foi beneficiada com um edifício do famoso Plano dos Centenários, aqui várias vezes mencionado. Baluarte de um Estado Novo que começara, lentamente, a empenhar-se na instrução do seu Povo rural. Que criara cursos profissionais, a educação de adultos, a telescola, a sexta classe obrigatória para ambos os sexos. Ainda que com rigorosas diretrizes, na continuação dos omnipresentes valores da trilogia "DEUS, PÁTRIA E FAMÍLIA".*Estávamos já nos finais do Estado Novo. Como Ministro da Educação, fora nomeado, em 1970, Veiga Simão. Sentindo a urgência de medidas que ajudassem a superar a baixa instrução dos portugueses que, na sua grande maioria, ficariam pela escolaridade obrigatória, desfasando-se cada vez mais das práticas europeias, o Ministro encetou uma grande reforma - a denominada "REFORMA VEIGA SIMÃO". E generalizou-se a ideia de que todas as crianças e jovens portugueses,independentemente do seu estatuto social ou económico, deveriam usufruir de mais estudos.
Uma rede de novas estradas municipais passou a cruzar a nossa serra em todas as direções,*Todo o sistema educativo é reestruturado com novos programas. São construídos modernos edifícios e equipados para funcionamento de novos ciclos de escolarização, desde o básico ao secundário. Toda esta mudança requer diferente preparação aos professores. Alguns, em especial os mais velhos, resistem. Mas, gradualmente, vão-se adaptando, com ações de formação quase constantes. As Escolas do Magistério dão lugar às Escolas Superiores de Educação, com o objetivo de oferecerem aos novos professores e educadores de infância uma formação de nível superior. As universidades criam novos cursos e abrem as portas a um número cada vez mais alargado de estudantes.O cumprimento da escolaridade obrigatória, progressivamente aumentada em número de anos e beneficiada em várias reformas curriculares, passa a ser complementada com diversas medidas de apoio às famílias. O transporte escolar, a criação de cantinas, o suplemento alimentar, o alojamento e a alimentação dos estudantes são realidades novas, num Portugal apostado na modernização das suas práticas pedagógicas e na elevação do nível cultural dos seus jovens. Apesar de todas as ambiguidades e contradições.Mesmo com os efeitos perversos que, sem dúvida, poderiam vir a refletir-se na qualidade do ensino e, em certa medida, no grau de exigência a que estavam habituadas as anteriores gerações, o certo é que esta igualdade de oportunidades de acesso ao saber seria sempre bem mais justa. Para trás iam ficando imensas situações de famílias que, sem possibilidades económicas que facilitassem mais estudos aos filhos, os encaminhavam para os seminários. Onde, na condição de pessoas sem recursos, poderiam crescer em educação e instrução, quase sem custos financeiros. E assim, abrir portas a um futuro seguro e feliz, segundo o seu entendimento. Quer ele fosse ou não na carreira sacerdotal, que muitas vezes não estava, de resto, nas suas ambições.*Com as mudanças de abril, grandes e diversas foram as reformas estruturais no País e as obras que estas exigiram.
acabando com o seu crónico isolamento. Ao mesmo tempo que beneficiava da eletrificação,
onde pouco antes isso era quase impensável, a rede de saneamento básico começava a estender-
se a algumas aldeias. A televisão e o telefone entravam na maioria das casas e, alguns
anos depois, primeiro o telemóvel e mais tarde a internet chegavam a todo o lado e passavam a
fazer parte do quotidiano das gentes. O Montemuro estava agora mais culto e mais perto de
tudo.
Costumes e tradições, impulsionadores de práticas de vida ancestrais, foram dando vez a hábitos de modernidade. Para o bem e para o mal, as nossas crianças e os nossos jovens eram agora mais semelhantes aos do resto do país e do mundo. Com toda a segurança, partiam do seu pequeno meio, alargando horizontes de crescimento e valorização pela cultura.*Mas, como parece acontecer ciclicamente, as crises económicas chegam e instalam-se. A par de políticas desajustadas da nossa realidade. Alheadas do apoio ao pequeno agricultor e ao pequeno comerciante tradicional. Indiferentes no apoio à célula primeira de qualquer sociedade, que é a família. Arrastando tudo e todos na grande crise social que parece não ter fim à vista.Os jovens, mais cultos, mas criados num meio rural de mentalidades impreparadas para aceitar e valorizar como normal o seu novo estatuto cultural, não se conformam com o destino de um trabalho agrícola, artesanal ou de pequeno comércio. Legitimamente, sentem o direito de procurar, fora de portas, a sua realização pessoal e profissional.
A partir de finais do século XX, inúmeras escolas começam a fechar portas. Mas a grandeE partem. Consigo, levam o diploma das habilitações literárias. Muitos, o canudo de uma licenciatura que, bem vistas as coisas, aqui não lhes serve para nada. Alguns rumam às grandes cidades do litoral onde, com o problema do desemprego que grassa por todo o país, não encontram resposta para a enorme angústia da falta de trabalho. E, cada vez mais, aumenta o número de jovens licenciados que emigram, principalmente para a Suíça, França e hoje em dia,em número crescente, para o novo destino do Luxemburgo. Oferecendo aos países de acolhimento o seu entusiasmo e o seu talento, em áreas que quase nunca têm a ver com os cursos que tiraram. Grande parte deles, para servirem à mesa, em hotéis. Por lá constituem família, por lá dão filhos ao mundo, por lá vivem saudades que os fazem regressar uma ou duas vezes por ano. Para, acabadas as férias, de novo voltarem ao trabalho. Enquanto o há, seja no que for, desde que digno.*O Montemuro, cada vez mais desertificado, vive agora o drama da falta de crianças, que se estende a outras regiões. A juntar-se às demais crises, instala-se a grave situação demográfica. Não nascem meninos, os jovens e os adultos mais capazes partem, os idosos passam a ser a força sem força das nossas aldeias praticamente abandonadas.
sangria teria lugar em 2006. Em setembro desse ano, as crianças da Carvalhosa, de Codeçais,
de Sobradinho, de Cetos, da Pereira, são apenas alguns exemplos de meninos que perderam o
direito a poderem crescer junto dos seus. Edifícios onde, até há pouco mais de duas décadas, se
ouvia o alegre bulício da criançada em busca do saber, são agora lugares fantasma, no silêncio
de espaços que já não sabem sorrir. E isto, por toda a serra, por todo o vale, por todo o lado.
O que foi criado, na base da democracia que deve levantar-se e consolidar-se na escola,Os últimos governos tomam medidas. Há quem entenda serem as possíveis. Medidas economicistas, que não têm em conta uma pedagogia de proximidade para as poucas crianças que restaram, as suas famílias e a classe dos professores que, apanhados de surpresa, reagem, sem sucesso, ao que consideram um dos grandes desastres do sistema educativo português.*Ao virar do novo milénio, cria-se um novíssimo modelo de gestão escolar. Surge a filosofia dos Agrupamentos Escolares, que junta alunos de diferentes ciclos, das diversas escolas com menos frequência. Contra a vontade das famílias, muitas vezes contra a opinião das autarquias.Mas o pior estaria ainda para chegar. A partir de 2010, e tendo apenas em conta a poupança que nos é imposta de fora para dentro, surgem os Mega-Agrupamentos. Numa verdadeira massificação do ensino, impessoalizando as linhas de conduta desde sempre unificadoras da relação aluno-professor-família. Sofrem na pele, mais agudamente, as crianças com menos recursos económicos.*Os últimos ministros, de diferentes partidos do chamado arco da governação, defendem o sistema. Não só com a tese da socialização mais equilibrada entre estatutos socioeconómicos diferentes, mas também como a possibilidade de acesso e partilha de instalações especializadas. O reforço de unidades orgânicas pertencentes a um novo projeto educativo, através da articulação dos vários níveis de ensino.No entanto, a descentralização do Ministério da Educação, que tenta dar lugar à municipalização do ensino, com o esquema de um Mega-Agrupamento por concelho, está longe de ser consensual.
acabará por retirar-lhe competências. Cada vez é maior o abandono escolar. Cada vez mais
difícil o apoio aos alunos com maiores dificuldades. Cada vez mais complicada a gestão de
recursos. Cada vez mais sentida a desmobilização dos professores, quebrada que foi a
confiança com o Ministério. Sendo que este é apenas um dos pontos de litígio.
As atividades de uma gestão pedagógica de proximidade, que é afinal a maior responsabilidade das escolas, são muitas vezes preteridas em favor da concentração da burocracia.*Perante este estado de coisas, em 2015, o Montemuro, como sempre, obedece. Mas sofre.Dizia-me, com voz amargurada, a D. Adília, professora aposentada e avó de crianças em idade escolar, numa entrevista por telefone, a partir de Picão:- Só até aos três anos, os nossos filhos são verdadeiramente nossos. A partir daí, o Estado toma conta deles, quer seja ou não de nossa vontade.E eu, com os meus botões, vou pensando em voz alta:- Onde e quando foi que eu já ouvi criticar este conceito, pelos que agora o põem em prática?
Na verdade, assim é. Por enquanto, na aldeia de Picão existe ainda um jardim de infância e uma turma do primeiro ciclo. Com serviço de cantina, aulas de Educação Física, Inglês, e todos os requisitos exigidos ao atual ensino. Aqui chegam, diariamente, os pequenitos a partir dos três anos. Em veículos adaptados, e entregues a pessoal disponibilizado pelo município ou pela empresa vencedora do concurso para transportar as crianças. Nas condições de segurança exigidas por lei. Vêm de toda esta zona ao derredor, logo pela manhã. A partir dos mais diversos lugares das antigas freguesias da Ermida e de Picão, e mesmo de fora delas.O Engenheiro Saúl Balceiro, do Mega-Agrupamento de Castro Daire, confirma-me todos os dados. Este ano letivo de 2014/2015, frequentaram o jardim de infância de Picão crianças de Picão, Carvalhosa, Pereira, Campo Benfeito e Ribas.
E a turma do primeiro ciclo contou com alunos de Picão, Pereira, Vilar, Ribas, Póvoa do Montemuro e Campo Benfeito. Mas aqui chegarão também meninos de Sobradinho, Codeçais, Vila Seca ou Cetos, no caso de aí os haver, e quando chegarem à idade adequada. Até que os deixem. Porque, disseram-mo e repetiram-mo, pelo menos a escola continua, ano após ano, mais perto do fim. Com a respetiva certidão de óbito, à espera de ser assinada. Simplesmente, porque deixou de atingir a frequência dos vinte alunos exigidos.
Foto 5 - Atual Escola de Picão, a funcionarcom uma turma do primeiro ciclo
E, quando tal acontecer, mais um grupo de meninos deslocados engordará o Mega-
Agrupamento de Castro Daire, frequentado há já alguns anos pela grande maioria das crianças
do concelho. Dificultando, ainda mais, o trabalho e o sucesso a todos os intervenientes deste
complexo processo.
*As nossas crianças estão a ser, neste século XXI, que se estimava de maiores facilidades na vida de cada um, sacrificadas à situação daquilo a que alguns chamam de " lógica da prática possível". Ou será que o estão à incoerência e à insensibilidade de políticos, que não têm minimamente em conta a psicologia infantil, nem as necessidades básicas da infância?O certo é que estamos a criar novas gerações de crianças que o não são, porque lhes roubaram o tempo, o espaço e o direito de o serem, em plenitude. Algumas vezes, infeliz e inadvertidamente, também pelo bairrismo doentio das famílias. Que preferem colocar os seus filhos a grandes distâncias, porque a aldeia vizinha sempre foi rival da sua. Lacunas dramáticas que um dia, inevitavelmente, hão de refletir-se numa sociedade adulta em convulsão.A antiga trilogia "Deus, Pátria e Família", do Estado Novo de Salazar, deu lugar à moderna trilogia "Austeridade, Poupança e Conformismo", do Estado Democrático da Falência. Certamente que ninguém duvidará de qual delas é a mais nefasta para as crianças, primeiro e último sentido de qualquer escola.Se é bem verdade que a Educação sempre determinará o futuro de qualquer Povo, a razão e a prudência impõem que nela nos empenhemos por inteiro e lhe demos a mais urgente, correta, primordial e assumida prioridade.
***
A título de testemunho real daquilo que aqui partilho sobre a importância da Escola no
Montemuro e beira-Paiva, deixo aos leitores desta Obra um pequeno e simples poema, que
escrevi para os meus primeiros alunos e lhes ofereci, numa das duas grandes e sentidas
homenagens com que me presentearam. Desta feita em 2010, quando perfaziam 50 anos sobre
o inesquecível primeiro encontro, na nossa querida escola.
«Uma vez... em 1960Sessenta e tal passaritosna sala escura todos os dias vinham pousar.E a mãe dos passaritoscontava coisas bonitas e ensinou-os a voar.Primeiro devagarinhodepois mais alto... e mais alto...Da sala escura saíram em passos titubeantes.Ensaiando a vez primeira o sonho em realidadeaprenderam a maneira de fazer da vida inteirauma vida de Verdade.Aprenderam voos rasos, aprenderam a subirtentaram a espiral até o cume atingire partiram à aventura... e partiram à procurade rumos que tinham lidoe que tinham aprendido, um dia na sala escura.
Por céus estranhos voaram
e nas nuvens que encontraram, viveram o aprender
que, andem por onde andarem, é doloroso crescer.
Foto 6 - Com alguns dos meus primeiros alunos, passados 50 anosMesmo assim, muitos seguiram por distâncias que atingiramo sonho e a fantasia que a mãe lhes tinha ensinado.Em espaços sem limites de vidas feitas Verdadeganharam a confiança, ganharam a segurança.Mas sobreveio a saudade.Outros, uma minoria, preferiram a magiaduma vida singular perto do calor do ninhoonde até o respirar se sente com devoçãoe o bater do coração marca o compasso da vida.Da vida feita Verdade. Mas sobreveio a saudade.A saudade dos que ficam, a saudade dos que vãoé a saudade num grito que aprenderam na liçãoda sala escura de outrora.Sala escura e tanta luz! Tanto sol, tanto saber!Tanto amor para aprender!O mundo todo na mão, e eles no meu coraçãoSua mãe... e professora.»
* Aurora Simões de Matos
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