terça-feira, 29 de maio de 2012



Apresentação do Livro "Contos de Xisto", na Biblioteca Municipal Dom Miguel da Silva, em Viseu

Por: Dra. Maria Irene Cardoso

Contos de xisto: aqui está o livro, na beleza expressiva da sua apresentação gráfica.

E começo com uma citação:
«Um dia, quis fazer um poema à beira do silêncio de um giestal em flor. Sentei-me aos pés do silêncio, escorreguei o corpo, devagarinho (…) sorvi com prazer o aroma da brisa que passava, sorri na plenitude daquele estado de graça.»(In Contos de xisto).

E é neste «estado de graça» que Aurora Simões de Matos depõe nas nossas mãos o seu novo livro.

«No tempo azul da minha terra, ouvi o cuco a querer dizer-me que o tempo verde estava aí, à espera das emoções de quem quisesse abraçar aquele mundo em festa, beijar aquele raio de sol fagueiro a querer inundar de vida cada ser, sorrir àquela esperança do amor a renovar-se.» (In Contos de xisto).
Nestas frases, em prosa poética, estão algumas das coordenadas desta obra: a sensação física vivida em plenitude e as emoções de um coração intenso, na vibração máxima e sagrada de um amor sem medida pela terra, a sua terra, a beira-Paiva, no concelho de Castro Daire. É Meã, a aldeia natal da distinta Autora, a terra que, nesta obra, vamos visitar. Mas somos convidados a visitar, também, a fiada de pérolas das aldeias circundantes de Meã, que bordam as margens das águas cristalinas, as mais cristalinas de todas as águas da velha Europa: o rio Paiva. “A Paiva”, como, carinhosa e familiarmente, os habitantes desta zona chamam ao rio que é seiva e alegria e vida da sua terra.
«No tempo azul da minha terra…»
Este possessivo com valor afectivo, bem como a notação cromática, o “azul”, a significar a plenitude, / o infinito, remetem-nos para uma totalidade. Uma totalidade anímica, física e transcendental, de que Aurora Simões de Matos é a voz, de que Aurora Simões de Matos é a alma, mas também o corpo e o húmus, numa identificação telúrica, que só tem paralelo em Miguel Torga: «Regresso às fragas de onde me roubaram/Ah! Minha serra, minha dura infância!» - diz o Poeta. Mas aqui, com Aurora Simões de Matos, na beira-Paiva, as “fragas” são xisto, a rocha metamórfica, laminada, geralmente escura ou mesmo negra, que tão bem conhecemos. É o xisto que serve de moldura, mas é também elemento constitutivo e suporte deste pequeno mundo serrano, que salta da vida para as páginas de um livro, pela pena «ágil e grácil» de uma filha da beira-Paiva.

Em Aurora Simões de Matos, nesta identificação com a terra e com a serra, encontramos uma espécie de “saudade”, a “saudade” um tanto à maneira de Teixeira de Pascoaes. A saber: «…o sincretismo sentimental entre dois contrários - a lembrança presa ao passado e a esperança projectada no futuro» - segundo Fernandes da Fonseca.
Efectivamente, em CONTOS DE XISTO, encontramos a memória ancestral de uma comunidade, nas suas diversas vertentes: no “modus vivendi” do quotidiano, marcado pelo ritmo do tempo. [...]

Contudo, nesta obra, encontramos também uma actualidade pujante, nas personagens mais jovens, com o seu modo de viver já modernizado por uma nova visão da vida, um novo modo de estar, e o recurso às novas tecnologias. É a esperança que abre caminho ao futuro…

A saudade! Ela encontra expressão ao longo de toda a obra. [...]
«Quanto ao poema que quis fazer, sentada aos pés do silêncio do giestal em flor, dele aqui fica um esboço. (…) Que o meu poema não é mais que uma saudade.»

E é na saudade, nascida do passado e do presente, por paradoxal que pareça, que Aurora Simões de Matos se exprime como a voz da terra e da gente da sua beira-Paiva.
Recordo, a propósito, as palavras de Manuel Alegre, num dos seus mais belos poemas:

«Canto as armas e os homens,
Porque a Tribo me disse:
tu guardarás o fogo.
E por armas me deu
o bronze das palavras.»
E permito-me parafrasear estes versos, em atenção à Autora de CONTOS DE XISTO:

«Canto a terra e a gente,
Porque a Tribo me disse:
Tu guardarás o fogo.
E por armas me deu
O ouro, o mel e o linho das palavras.»

Assim, investida da sua missão de «guardar o fogo», é com palavras “de ouro, de mel e de linho” que a voz de Aurora Simões de Matos se ergue, inebriada, para celebrar a Vida na sua beira-Paiva, com toda a riqueza da simplicidade e da ancestralidade que lhe são próprias.
«O ouro, o mel e o linho das palavras.»

O ouro, encontramo-lo na expressão viva concisa e precisa de muitas destas narrativas.

A linguagem é versátil, plástica, por vezes poética, sugestiva, apta a desposar a realidade no seu ritmo do quotidiano, do insólito, quando ele surge. [...]
Em “Luta de bois na feira do Fojo”, o leitor quase “assiste”, empolgado, à cena como realmente se passou. O vocabulário criteriosamente seleccionado e a feliz combinação das sonoridades, com vogais abertas e fechadas, alternando-se, as consoantes mudas e sonoras, as sibilantes e as líquidas, dão-nos a visão ampla e do combate esforçado entre os animais:
«A luta começa. O boi finca as patas no chão e, usando a força da sua corpulência, empurra o adversário com a testa. Chifres contra chifres, músculos retesados, baba a escorrer de raiva, olhos desvirados pelo cansaço (…). Bravura à flor da pele, num jogo de força e resistência.»
Em CONTOS DE XISTO, sentimos um mundo de aconchego e amor que nos lembra a doçura intensa e maviosa do mel, no dia-a-dia rural, percepcionado pelo olhar feminino de uma Pessoa com uma alma a transbordar de humanismo. «Sobre a nudez crua da Verdade, o véu diáfano da fantasia» - poderíamos dizer, citando Eça de Queirós. Contudo, em Aurora Simões de Matos, esse “véu de fantasia” não atraiçoa a realidade. Pelo contrário: dá-lhe outro relevo, apontando, sem enfadonhos moralismos, para a construção de um mundo melhor: com calor humano feito de solidariedade e de partilha. Com afectos. Sempre numa atitude de total respeito: pelos humanos, pelos animais, pela Natureza inteira. Há também uma atitude de respeito pela Transcendência, nas várias referências à religiosidade popular e ao modo como o Povo se relaciona com o Sagrado. A celebração jubilosa das festas de São Bartolomeu, de São Jerónimo, de São Macário ou de Santa Bárbara Virgem, ocupa, nesta obra, lugar de relevo. [...]

Tal como em Teixeira de Pascoaes, «a religiosidade e a Transcendência estão sempre presentes, como uma inerência ao sentido da vida», segundo Fernandes da Fonseca. Assim também nas narrativas de CONTOS DE XISTO: «Deus super omnia»; ou, por outras palavras, e usando o registo popular: «Deus é grande e está no mesmo sítio».

Finalmente, «o linho das palavras», na atitude de «…marcar (…) a diferença e a qualidade dos bens de cada família». Mas não só. A alvura esplendorosa, no esmero do trabalhado do linho, é simbólica da pureza e da inocência das gentes, dos ares lavados da serra, e das águas claras da Paiva. E passo a citar Aurora Simões de Matos:

«A toalha branca de linho corado, bordada a bainha aberta e debruada a bicos de renda, envaidecia o cabaz da merenda que, à cabeça das romeiras, assumia um dos mais fortes protagonismos da festa.»
«Porque a Tribo me disse
                                                                             Tu guardarás o fogo.»

Um dos maiores méritos da escrita de Aurora Simões de Matos é a missão de “guardar o fogo”: preservação de um mundo que está a acabar. [...] «Com ela acabaram os sons batidos do tear. Na Bouça, já não se fia, nem doba, nem urde, nem tece.» Fica «o carreiro (…) em direcção à fonte, a mesma fonte de sempre». Ficam as casas de xisto: molduras, agora mudas e vazias, de um bulício que era vida, que era gente,/ e gente de valor. [...]
Na louvável tentativa de preservar o passado, surgem-nos, em CONTOS DE XISTO, (como, aliás, já foi dito) os nomes de muitos utensílios do quotidiano. Desde os nomes relativos à arte da tecelagem (o tear, a dobadoira, a roca, o fuso, o caneleiro, o pente, a lançadeira…) até aos nomes de utensílios de alfaiataria, por exemplo. [...] Mas, singular, é a narrativa “Marcada pelo dia em que nasceu”. Aqui, aparece-nos, mesmo, “para memória futura”, um diálogo muito especial. Trata-se das palavras “ipsis verbis” de uma parteira de aldeia, sem preparação científica alguma – a mãe-velha, também chamada “comadre” noutras terras – no acto supremo do nascimento de uma criança – a Mindinha. O que aqui lemos é um conjunto de palavras e de frases de incitamento à parturiente… «tolhida de dores nas cruzes».
Em CONTOS DE XISTO, temos a beira-Paiva do Portugal de antanho. Como anjo tutelar, Aurora Simões de Matos guarda, preserva, esse “fogo” antigo, como outrora, na pré-História, em sociedades tribais, as mulheres guardavam o fogo do lar primitivo – a caverna. [...]

Nesta obra, a ficção pura cede quase sempre lugar à evocação de variadas acções que se enraízam no real, no quotidiano vivido na beira-Paiva. Os protagonistas, os “heróis” (como a Autora lhes chama), são pessoas reais, algumas já falecidas, outras ainda vivas. São estas pessoas que a Autora transforma em personagens de uma obra atenta à vida e às suas circunstâncias. Pelo prazer de criar mundos com palavras, pelo prazer de rever a sua terra natal, / pela necessidade de se rever a si mesma, numa catártica e muito pessoal identificação com as suas origens, com o seu torrão natal. Nas suas recordações, como filha que é dessa mesma terra, Aurora Simões de Matos acaba por cumprir um outro desígnio: o de dar a conhecer e preservar este mundo que, em muitos aspectos, está em risco de acabar.
Ocorre-me que José Saramago dizia que os seus livros deveriam ter, sempre, na capa, uma fita, avisando o leitor: «Atenção, este livro leva uma pessoa dentro.» E agora digo eu: atenção, CONTOS DE XISTO leva dentro uma comunidade inteira: o povo da beira-Paiva, das aldeias de Meã, Parada de Ester, Corgo de Água, Ilha, Sobrado, Laboncinho, Pena, Canelas, Fojo, Vila, Baldios, Fujaco… Uma comunidade inteira, nas pessoas das personagens ou actores,/ já que é em acção que os sentimos. A acção é, assim, cheia de movimento. Todos na luta pela vida. [...]

O narrador, a voz que fala, situa-se, quase sempre, fora da acção, como quem observa. Diríamos, academicamente, que de trata de um narrador heterodiegético. Mesmo na narrativa que tem como título “Marcada pelo dia em que nasceu” e cuja protagonista, na vida real, é a própria irmã da Autora aqui presente./ Mindinha é «…toda ela agitação e travessura…», nas palavras do texto, vivacidade e rebeldia, em consonância com a trovoada do dia em que nasceu, 22 de Maio, dia de Santa Rita de Cássia, advogada de todos os impossíveis, segundo a religiosidade popular. Estes elementos são, pois, já indícios da índole desta personagem, toda ela dinamismo e originalidade, capaz mesmo de atitudes insólitas, cheias de exuberância, mas onde avulta a sua inata «força de alegria» bem como a bondade manifestada na generosa partilha, sempre no sentido de construir a felicidade dos seus e (passo a citar): «…tentando fazer de cada instante um momento único de diversão.» Determinada e optimista, Mindinha tem como lema a sentença popular: «Candeia que vai à frente, alumia duas vezes…» [...]
A palavra “xisto” é recorrente. Aqui o xisto é a base, a terra, o chão, a realidade concreta, de onde parte a humanidade, e a espiritualidade alada das personagens/ que são gente de coração generoso e de alma aberta ao Infinito… [...]

Em “Aldeia da Pena, um mundo quase irreal” a própria linguagem se faz irreal em leveza, beleza, e propriedade: pela sua significação e sonoridades sugestivas.
«Subir ao São Macário é já uma festa. Descer aquela estrada estreita, de quase três quilómetros, em constante confronto com o abismo (…) para além de ser um acto de coragem em jogo de subtilezas (…) é também um percurso de migração em que a nossa identidade dá o salto para um mundo quase irreal.»

As mulheres da Pena – heroísmo no feminino” – este título remete para algumas narrativas em que se destacam as mulheres: pela sua tenacidade, trabalho intenso, capacidade de resiliência, de doçura e de imaginação criativa, no confronto com o quotidiano. É “o eterno feminino”, na construção do mundo, no acto continuado de tecer a paz, de tecer o aconchego familiar. Tal como outrora, Penélope, a grega, tecendo e desfazendo a sua teia, num ritual de silenciosa sabedoria, para manter, indefectível, a sagrada fidelidade a Ulisses, seu marido. [...]

Com “A casa assombrada” e “Bruxas e assombrações, temos o fantástico em CONTOS DE XISTO. Ele aí está pelas vozes das personagens “Ti Belmiro” e “Maria”, a parteira da aldeia de Meã, a mãe-velha, como é chamada.

Em ambas as narrativas nos aparece,/ nítida,/ a ambiguidade ou hesitação entre duas explicações: a racional e a meta-empírica (ou supra-real). [...]
Assim, no domínio do fantástico, produz-se um acontecimento que a razão não explica. O “mistério”, o inexplicável” o “inadmissível”, introduz-se na vida real, ou no mundo real - de acordo com as citações feitas. Em “A casa assombrada”, às certezas do “Ti Belmiro” opõe-se a dúvida, a vacilação de dois entrevistadores. É que o “Ti Belmiro” “viu”, ele afirma que “viu” o Diabo, o “Rabudo”, que esconjura com um “Abernúcia!” de arrepiada rejeição. Finalmente a ordem do mundo real sobrepõe-se quando se descobre que se trata apenas da cabra preta da Ti Zulmira a qual, numa atitude muito pragmática, completamente avessa ao fantástico, ou a qualquer outra especulação, pergunta aflitivamente:
-«E agora? Quem é que me vai pagar a minha cabra preta?»
Em “Bruxas assombrações”, a vacilação, a descrença do fantástico, por parte da Senhora Professora (personagem secundária, deuteragonista que se identifica com a Autora desta obra) não encontra eco na consciência da “Maria, a mãe-velha” que, invariável e peremptoriamente, responde:
- «Não senhora, aquilo era o Diabo!»

- «Não senhora, aquilo era uma alma penada!»
- «Não senhora, aquilo eram as bruxas!»

[...]

Da intimidade calorosa e pulcra de um conjunto de “aldeias de xisto” nasceu esta obra, que é um contributo notável para a cultura e para uma civilização que se quer repassada de humanismo, zelosa guardiã do passado. Esse passado que é berço do presente e que é imprescindível conhecer como matriz do futuro; esse passado que é alicerce, estruturante de um agir que será, sempre, no futuro, pautado pelos mais altos valores do Espírito, da Cultura e da Ética.

2 comentários:

Anónimo disse...

Tenho lido na nossa imprensa muitos e interessantes depoimentos sobre a obra da admirável de Aurora Simões de Matos.
Este texto é o melhor que li, até hoje.
Não só analisa - e muito bem - o livro Contos de Xisto como também alarga a análise, com uma dimensão profunda, às particularidades literárias da autora.
Os meus parabéns à Dra. Irene Cardoso por mais este contributo substancial que nos deixa para a compreensão da obra da Amiga Aurora.
Fernando Luís

raiz de xisto disse...

Ao meu grande Amigo Fernando Luís,agradeço as palavras de apoio e a divulgação da minha obra,através da nossa RÁDIO LAFÕES no programa "O Som da Gente".Sempre atento e pertinente.Transmitirei à Dra. Maria Irene a mensagem de felicitações,que naturalmente a deixará sensibilizada e grata.Aceita o meu abraço.
Aurora Simões de Matos