A Casa
Assombrada
Conto
Não
havia volta a dar. A casa estava assombrada e ninguém se atrevia a
passar-lhe por perto, a partir do lusco-fusco que cobria a Terra com seu manto de dúvidas e temores.
Não
havia volta a dar. Apesar de ainda habitável e senhora de certo
conforto que outras ao redor não possuíam, ninguém conseguia
dormir nela nem que fosse um curto sono, comer nela nem que fosse um
moado de caldo, acender na tosca lareira uma rápida fogueira de
pinhas. Rezar nela um padre nosso pequenino.
Vasculhando
nas memórias de uma vida, Ti Belmiro Penata, que na infância vivera
muito perto da Casa
Assombrada, lembrava,
para a equipa de uma estação de rádio que o entrevistava, as
peripécias insólitas que sempre fizera por esquecer.
Mesmo quando a força das lembranças o incomodava, assobiava para o lado, rezava o Credo em Cruz e fazia-se de forte. E quando os sonhos lhe povoavam a noite de visões macacas, levantava-se mais cedo, ia à fonte lavar a cara com água fresca e munia-se de sachola, como quem se arma contra o Rabudo, com vontade de lhe cortar o rabo. E os chifres. Que os tinha o bicho, afiançava ele. Bem lhos tinha visto uma noite, ao vir do talhadoiro do Senhor dos Caídos, carreiro acima, à luz da lua cheia.
Mesmo quando a força das lembranças o incomodava, assobiava para o lado, rezava o Credo em Cruz e fazia-se de forte. E quando os sonhos lhe povoavam a noite de visões macacas, levantava-se mais cedo, ia à fonte lavar a cara com água fresca e munia-se de sachola, como quem se arma contra o Rabudo, com vontade de lhe cortar o rabo. E os chifres. Que os tinha o bicho, afiançava ele. Bem lhos tinha visto uma noite, ao vir do talhadoiro do Senhor dos Caídos, carreiro acima, à luz da lua cheia.
―
Então, conte lá, Ti Belmiro. Alguma vez, como vizinho que foi desta
casa, viu ou sentiu aqui alguma coisa estranha?
―
Pois então não vi? Vi eu e viu quem quis ver... Aquilo eram festas
e mais festas, barulho de concertinas, passos de grandes bailações.
Pelas janelas abertas, viam-se luzes a passar, embora a casa
estivesse vazia. As velas acesas cruzavam-se no ar, como se alguém
as levasse na mão!
―
Mas não havia mãos; só havia velas...
―
Exatamente. Ainda me arrepio, só de falar nisso. Credo em Cruz,
Santo Nome de Jesus! Abernúncia!
E
Ti Belmiro, homem dos seus setenta e tais, passava as costas da mão
pela testa, como que a limpar os suores frios que lhe causavam tais
lembranças.
―
Mas agora já não se vê nada disso... ―
continuava o entrevistador.
―
Pois não! Mas para isso tiveram que vir aí três padres benzer a
casa. Estiveram ali metidos durante três dias e três noites e
ninguém sabe o que lá se passou.
―
E de quem é esta casa?
―
A Casa Assombrada
dantes chamava-se Casa
das Rolhas, porque os
donos tinham aqui família, mas viviam há muito lá para perto de
Lisboa, onde negociavam em rolhas de cortiça. Era gente de teres e
poucas vezes estavam por cá. Só durante algum tempo de verão. E nem sempre. Até que acabaram as visitas e deixaram isto tudo ao
abandono.
―
Mas agora está tudo em paz!
―
É o estás! Acabaram-se as festas e as luzes, mas ficou o Rabudo.
Ele há noites, quando a lua cheia deixa tudo iluminado, em que
muitos já viram aí à porta, ou à janela, ou mesmo em cima do
telhado, um macaco de grande rabo e dois chifres. Como se fosse um
chibo, mas com cara de macaco. Chamam-lhe o Rabudo.
É o diabo que ficou a guardar a casa. Ninguém se atreve a chegar-se
perto. Mesmo os animais, quando passam ali à porta, na encruzilhada
dos quatro caminhos, ficam mudos e começam a andar de lado, virando
o focinho, como que a desviarem-se. Vê-se que os bichinhos ficam
contrariados.
―
Mas isto acontece em algum outro lugar, aqui nas redondezas?
―
Não senhor! O que eu sempre ouvi dizer foi que esta casa, há
muitos, muitos anos, funcionou como cadeia. Eram tempos de guerra e
por aqui passou um grupo de soldados inimigos, que entraram na aldeia
e fizeram pouco de todas as mulheres que encontraram. Abusaram delas
e mataram-lhes os filhos pequenos. Mas os homens da terra
juntaram-se, apanharam-nos e meteram-nos na tal casa, deixando-os
morrer à fome. Mais tarde, a casa foi comprada pelos tais das
rolhas. Mas nunca ali houve sossego. Também há quem tenha ouvido
gritos vindos do forno da cozinha. Por acaso, eu nunca ouvi nada
disso. Agora as danças das velas e o Rabudo
em cima do telhado, isso eu vi, sim senhor.
―
Ó Ti Belmiro, e aquelas Alminhas mesmo na encruzilhada, também já
têm muitos anos?
―
Há umas Alminhas e três cruzes de pedra. É que, por via destas
coisas, já ali morreram três pessoas, em alturas diferentes e de
maneiras diferentes.
Um rapaz morreu de desastre, quando a motorizada se despistou e foi cair no barroco, a uma altura de trinta metros. Outro morreu com duas facadas, quando um vizinho deu com ele a roubar-lhe a água da rega no talhadoiro. E a terceira, uma rapariga ainda jovem, caiu ali morta, engasgada com uma côdea de pão. Tudo mortes macacas. Por isso é que lá foram postas as cruzes. E as Alminhas são para se rezar e recolher esmolas para as almas do purgatório.
Um rapaz morreu de desastre, quando a motorizada se despistou e foi cair no barroco, a uma altura de trinta metros. Outro morreu com duas facadas, quando um vizinho deu com ele a roubar-lhe a água da rega no talhadoiro. E a terceira, uma rapariga ainda jovem, caiu ali morta, engasgada com uma côdea de pão. Tudo mortes macacas. Por isso é que lá foram postas as cruzes. E as Alminhas são para se rezar e recolher esmolas para as almas do purgatório.
Enquanto
dura a conversa entre o aldeão e os dois entrevistadores, vai-se
juntando gente curiosa, cada qual comentando o assunto à sua
maneira, mas nunca olhando de frente para a Casa
Assombrada.
Nisto,
um rapazito, na inocência da sua traquinice, observou aos berros:
―
Ó avô, está uma cabra em cima do telhado! É a cabra preta da Ti
Zulmira!
Aproveitando
o ajuntamento e fazendo-se de forte, o senhor Mendonça foi a casa
buscar a caçadeira e, indiferente aos avisos e receios do pessoal
presente, atirou a matar. Dois tiros de espingarda, bem certeiros, na
barriga daquela cabra chifruda.
―
Cuidado, que é a cabra preta da Ti Zulmira!
―
Cuidado, que é o macaco Rabudo!
―
Cuidado, que é o diabo a vigiar-nos! Credo em Cruz, Santo Nome de
Jesus! Abernúncia!
T'arrenego, Satanás!
―
Ai a minha rica cabra preta! ―
vociferava Ti Zulmira.
Mas
já o cheiro de pólvora queimada invadia os ares, enquanto o animal,
resvalando pelas lousas do telhado da Casa
Assombrada, caía no
chão com grande estrondo, uma nuvem de fumo escurecia os ares e os
vidros do carro dos jornalistas, inexplicavelmente, se rachavam de
alto a baixo.
―
Será que matámos o diabo?
―
Não há dúvida! Ele vai aparecer por aí outra vez! ―
comentavam os mais desconfiados.
―
Credo em Cruz! Isto é um espelho nunca visto!
A
notícia correu veloz por toda a freguesia e o sineiro da igreja
paroquial tomou a iniciativa de tocar os sinos a rebate, em sinal de
alvoroço.
―
Tontice! ―
rematou o senhor Abade. Sempre haverá Deus e sempre haverá o Diabo
a querer fazer-Lhe frente.
Mas
já a voz aflita e revoltada de Ti Zulmira reagia aos acontecimentos,
exigindo justiça.
―
E agora, quem me vai pagar a minha cabra preta?
Aurora Simões de Matos
Do livro "Contos de Xisto"
Editora Edições Esgotadas
(Também à venda na Net)
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