Caprichos
da noite
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Paula Rego - The Night Crow |
"O corvo era muito mais negro
Do que a sombra da lua.
Tinha estrelas."
Ted Hughes, excerto de "Crowcolour",
in Crow, 1973
Mansa, silenciosa e
simples, a noite caía sobre a minha aldeia. Caíam sempre assim as
noites da minha aldeia. Mansamente. Silenciosamente. Simplesmente
caíam. Caíam com a naturalidade de quem cumpria a rotina de
desdobrar o manto do sossego sobre a Terra.
Era assim há muitos
anos, no tempo dos sorrisos da minha meninice. Que a minha meninice
já não sorri há uns bons anos.
Só o assobio do pai,
chamando a casa algum filho mais atrasado, cortava aquela brandura da
noite dispersa por caminhos soltos de águas soltas em pedras macias,
onde o luar reflectia sombras de duendes que povoavam lendas e
historietas que meu avô sabia e salpicava de segredos e misteriosas
encruzilhadas.
Pairava sobre a Terra
uma intimidade aveludada, desde a hora a que o crepúsculo,
transformando as coisas em vultos que a penumbra cobria de discrição,
prenunciava o caminho à noite habitada de escuridões e de
silêncios.
A brisa nocturna
acordava rumores nos soutos e tapadas e despenteava com dormentes
carícias as finas barbas das maçarocas nos milheirais, em cântico
mítico apenas violado pelo agoiro do uivar de um lobo ou do piar de
um mocho solitário.
E foi assim, sentindo a
leveza do crepúsculo, a ambiguidade dos vultos, os cambiantes da
escuridão e a fantasia que meu avô enchia de cumplicidades, que
pela primeira vez me apercebi do fascínio, do mistério, das
fragilidades e das forças da noite. Com os seus conformismos e os
seus inconformismos. Com as suas tolerâncias e as suas
implacabilidades. Com os seus torpores e preguiças, sonolências e
quietudes. Com os seus romantismos e apelos ao sonho. Com as suas
obscuridades e gestos demenciais.
A noite é a hora da
solidão do pensamento, da solidão das palavras, dos corpos e dos
espíritos, do despojamento dos atavios diurnos. E também das
ratoeiras, dos precipícios e das obliquidades, da morbidez do
lusco-fusco a coberto de forças ocultas nas horas mortas.
A noite é a hora a que,
quando libertos das pressões do dia, nos remetemos à degustação
demorada dos nossos triunfos ou ao remorso surdo das nossas
incapacidades. Os sentidos refinam amores e ódios, conferindo novas
dimensões aos sentimentos.
Pomo-nos em causa ao avaliarmos e reavaliarmos os nossos actos à luz de emoções com uma identidade tão especial, que nos faz parecer tudo mais belo e romântico, misteriosamente espiritual. Ou então mais pesado, irremediável e redutor. Tudo dependendo da leveza da sombra ou da carga de negritude que em cada dia desenvolvermos no nosso ser.
Segundo as escolhas ou as circunstâncias do viver de cada um, o ritmo biológico de cada vez mais gente é alterado, em função daquilo que se entende por progressão social, profissional, económica, política.
Cada vez mais, a noite é a opção assumida para palco de interesses conscientes da supervalorização das coisas vistas de uma qualquer perspectiva, desde que focalizadas pelas luzes da ribalta. Então, reinventam-se os tais atavios, que atingem os limites da hipersofisticação, na selecção do que cada qual pensa ser a qualidade e o bom gosto.
A noite permite-nos a abertura do pensamento e da imaginação a estas e outras cogitações, que me levam a concluir que, nela, nada tem voz neutra.
E embora sendo por excelência a inspiradora do poeta, possa ser também a inspiradora do crime, nunca, pessoalmente, desisti de me deixar seduzir por aquele crepúsculo que oferece aos seres uma penumbra de discrição e me permite mergulhar no mundo dos mistérios, das solidões, dos misticismos, dos silêncios, dos sonhos, das fantasias e dos duendes de que meu avô falava e salpicava de segredos e saborosas encruzilhadas.
Continuo sobretudo a fazer o apologismo da noite como o manto de sossego que, no tempo em que sorria a minha meninice, se desdobrava e caía sobre a aldeia. Mansamente. Silenciosamente. Simplesmente caía, num convite ao retemperar de forças, através das várias fases do sono. Que, segundo dizem os entendidos, é ainda e sempre o grande momento dos sonhos.
Pomo-nos em causa ao avaliarmos e reavaliarmos os nossos actos à luz de emoções com uma identidade tão especial, que nos faz parecer tudo mais belo e romântico, misteriosamente espiritual. Ou então mais pesado, irremediável e redutor. Tudo dependendo da leveza da sombra ou da carga de negritude que em cada dia desenvolvermos no nosso ser.
Segundo as escolhas ou as circunstâncias do viver de cada um, o ritmo biológico de cada vez mais gente é alterado, em função daquilo que se entende por progressão social, profissional, económica, política.
Cada vez mais, a noite é a opção assumida para palco de interesses conscientes da supervalorização das coisas vistas de uma qualquer perspectiva, desde que focalizadas pelas luzes da ribalta. Então, reinventam-se os tais atavios, que atingem os limites da hipersofisticação, na selecção do que cada qual pensa ser a qualidade e o bom gosto.
A noite permite-nos a abertura do pensamento e da imaginação a estas e outras cogitações, que me levam a concluir que, nela, nada tem voz neutra.
E embora sendo por excelência a inspiradora do poeta, possa ser também a inspiradora do crime, nunca, pessoalmente, desisti de me deixar seduzir por aquele crepúsculo que oferece aos seres uma penumbra de discrição e me permite mergulhar no mundo dos mistérios, das solidões, dos misticismos, dos silêncios, dos sonhos, das fantasias e dos duendes de que meu avô falava e salpicava de segredos e saborosas encruzilhadas.
Continuo sobretudo a fazer o apologismo da noite como o manto de sossego que, no tempo em que sorria a minha meninice, se desdobrava e caía sobre a aldeia. Mansamente. Silenciosamente. Simplesmente caía, num convite ao retemperar de forças, através das várias fases do sono. Que, segundo dizem os entendidos, é ainda e sempre o grande momento dos sonhos.
A noite é, claramente,
espaço de contradições. Saber aceitar ou contornar os seus
caprichos é, como sempre foi, exercício para adultos.
Aurora Simões de Matos
2 comentários:
Muitas coisas, a noite. E também pode estar em nós. Mesmo que até seja dia.
Lê-la fez-me bem. As palavras têm ressonâncias incontroláveis. São significados. Significativas. Significantes. Disseram-me muito, as palavras do seu texto. Obrigada por isso. Por si.
E sim, "exercício para adultos". Saber aceitar. Contornar.
Um beijo para si, Aurora.
Mar Queirós Araújo
Querida Mar
"As palavras têm ressonâncias incontroláveis".Também exercício para
adultos.Cada vez mais.Urgente controlar as palavras.Para que as suas ressonâncias não fiquem como arma letal.Delas próprias.Das palavras.
Um bj pelas suas,sempre mto ricas.
Aurora
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