ARTISTAS DA TEIA E DO TEAR
A madrugada desatava-se naquela casa de xisto, por sobre a arribada, ao lado do carreiro que, sempre a descer, ia dar à fonte.O carreiro a rasgar a arribada, íngreme e muito acidentado, pedregulhos de lousa espetados no chão à flor da terra, misturados com torgas velhas.
Desatada a madrugada, rompia o amanhecer e já Ti Maria Zeladora descia o carreiro e a arribada, os ossos tortos dos cansaços da vida. Enchia o jarro na fonte e regressava a subir, sempre a subir, até à casa de xisto, ao lado do carreiro.
Já tinha acendido as pinhas,o lume estava pegado, eram horas de ir fazendo o café.
A figura esguia, os cabelos brancos. Os dias já não lhe prometiam mais nada que as dores nos ossos alquebrados, as mãos deformadas ao peso daquela vida apenas reconfortada pelas maroteiras dos pequenitos. E o tear, sempre o tear, com aqueles sons batidos e estranhos que, no entanto, lhe eram tão familiares.
Na escrita à distância deste reviver, talvez já um pouco distorcido, que vai enfraquecendo uma realidade longínqua, quero hoje sorrir de ternura por Ti Maria Zeladora, o seu esforço humilde, os olhos na criançada, os pés a controlar os batimentos do tear. Por entre o fumo da lenha verde, entre intervalos de sombra e de luz do sol a entrar na cozinha pela porta escancarada.
A um canto, desviado da lareira e dos tropeços da garotada, erguia-se o tear, com todo o seu aparato. E a dobadoira, a roca e o fuso. Nomes do seu dia-a-dia, como o caneleiro, o pente, a peanha, a queixa, a andorinha, o liço, o linhol.
Além de zeladora da nossa capela e catequista durante muitos anos, Ti Maria, que nunca casara e vivia agora com a sobrinha Rosa que tinha um numeroso rancho de filhos, era uma das tecedeiras de Meã de Baixo.Naquele canto da cozinha, agarrada aos vários apetrechos da tecelagem do linho, da lã, ou das tiras de trapos, passava o dia a fiar, a dobar, a urdir, a tecer.
Conhecida pela extrema bondade e paciência, aos sobrinhos-netos dedicava todo o carinho, as suas preocupações, o seu tempo sem tempo. E eram tantos e todos tão pequeninos!
Deles se encarregava enquanto os pais trabalhavam na lavoura. Por eles haveria de tecer dias a fio, noites adentro, ao som daquele matraquear ritmado, tantas vezes à luz do candeeiro de petróleo ou do gasómetro.
A urdidura era sempre feita de linho, mais tarde também de algodão. Só a teia variava, conforme o tipo de trabalho.
Da teia de linho se teciam ramos de três metros, separados uns dos outros por marcações a ervinhas tintureiras.
Com esse linho haveriam de fazer-se lençóis, almofadas, toalhas de mesa, de rosto, de baptismo ou de altar, sudários para as mortalhas.Mas também camisas e outras roupas. E o enxoval de noiva, que condensava todo este conjunto de peças.
Do linho mais grosseiro, teciam-se os tomentos ou bordascos, para fazer os sacos que transportavam os cereais para o moinho, colchões, enxergões e travesseiros, panos de cozinha e outros acessórios do dia-a-dia.
Da teia de lã faziam-se os cobertores para aquecer a cama nas longas noites de Inverno e as colchas com repuxados de várias cores, utilizando lãs brancas tingidas com anilinas, onde se desenhavam padrões mais ou menos artísticos, segundo a habilidade e o gosto da tecedeira.
As mantas de tiras, feitas a partir de roupas usadas, eram utilizadas nas camas, sobre o cobertor de lã rente ao corpo.
A tecelagem, como outras actividades ligadas à agricultura e à pastorícia, entrou há alguns anos em ampla recessão, sendo hoje os trajes de linho ou de lã de ovelha apenas usados na exibição de agrupamentos folclóricos ou para exposição em museus etnogáficos.
Há apenas algumas décadas, não havia povoação nas redondezas que não tivesse vários teares em laboração, sempre a custo do esforço da mulher, que assim supria necessidades da casa, tecendo peças essenciais ao quotidiano e, ao trabalhar para fora, contribuía monetariamente para o equilíbrio da economia familiar.
Mas nem todos esses teares foram desmantelados. Ainda hoje há quem continue a tecer passadeiras de tiras no tear tradicional, guardado como relíquia de tempos irrepetíveis.
Como outras tecedeiras, Ti Maria Zeladora faleceu há muito.
O carreiro a rasgar a arribada, íngreme e acidentado, lá continua em direcção à fonte, a mesma fonte de sempre.
A casa de xisto, ao lado de carreiro, pouco mudou também. Mas já não se ouvem os choros e as travessuras da pequenada, nem se vislumbra o sorriso paciente de sua tia-avó. Com ela, acabaram os sons batidos do tear. Na Bouça, já não se fia, nem doba, nem urde, nem tece.
Como outras tecedeiras, Ti Maria Zeladora faleceu há muito.
O carreiro a rasgar a arribada, íngreme e acidentado, lá continua em direcção à fonte, a mesma fonte de sempre.
A casa de xisto, ao lado de carreiro, pouco mudou também. Mas já não se ouvem os choros e as travessuras da pequenada, nem se vislumbra o sorriso paciente de sua tia-avó. Com ela, acabaram os sons batidos do tear. Na Bouça, já não se fia, nem doba, nem urde, nem tece.
Guardadas em grandes arcas de madeira, as toalhas de linho antigo continuam a marcar, nos dias de hoje, a diferença e a qualidade dos bens de cada família. As colchas de lã repuxada continuam a ser usadas por gente de bom gosto sobre as camas, sobre os sofás, como carpetes, ou penduradas na parede.
São verdadeiros luxos saídos das mãos de tecedeiras que, como Ti Maria Zeladora, usaram o engenho, o carinho, a arte e a fantasia, atributos desde sempre reconhecidos às mulheres da beira-Paiva.
Aurora Simões de Matos
Do livro " Contos de Xisto" - Edições Esgotadas, 2012
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