A
Casa dos Mirandas
Relíquia de arquitetura e de afetos
A Casa dos Mirandas, em primeiro plano, ao centro
Rio Paiva, que banha os campos de Parada de Ester
Trecho de Parada antiga
Estamos bem perto do rio, aqui onde a correnteza da Paiva amansa e se
espraia, ora em quietudes benfazejas, ora em brando saltitar, como
quem brinca em leito de preguiças.
Estamos em Parada de Ester, aqui onde os campos deveriam verdejar de
fartas águas e aloirar de fartas espigas de milho. Aqui, onde há
bem poucas décadas, grupos de vacas pastavam em lameiros tranquilos
de erva fresca e os rebanhos saíam para o monte, na mansa pacatez de
um quotidiano rotineiro, mas sempre cheio de vida. Aqui, onde o
alvoroço da Feira dos Doze fazia a história mensal das atividades
económicas de uma região em que a agricultura e a pastorícia, o
artesanato e o pequeno comércio não deixavam ninguém sem trabalho.
Aqui, onde crianças e adultos fervilhavam de vida pelas ruas
empedradas ou de terra batida, que se cruzavam em todas as direções
e sinuosos declives. Aqui, onde não havia casas desabitadas e as
gentes se tinham acomodado a um viver parco de outras perspetivas que
não fossem as da sua tradição, e ainda assim iam construindo
alegremente a felicidade possível.
Mas o caso mudaria de figura quando, a partir das facilidades
trazidas pelo alargamento das redes de estradas e de transportes, a
eletrificação de toda esta região, a chegada de novas tecnologias
de comunicação e a obrigatoriedade de mais amplos estudos para os
jovens, se iniciou a debandada migratória, em busca de melhores
condições de vida e novos acessos a patamares de cultura mais
elevados.
Toda esta situação agravada por políticas governamentais
devastadoras para os agricultores.
À semelhança do que aconteceu noutras regiões, muita gente partiu
para as grandes cidades portuguesas ou estrangeiras, deixando Parada
sem braços suficientes para o cultivo das suas terras que, pouco a
pouco, foram ficando a monte, num abandono que poucos tinham
previsto
As construções de "Parada antiga", em primeiro plano,
contrastam com as de "Parada moderna", em segundo plano
Em contrapartida, a construção de novas casas espalha-se por todo o
lado, obrigando ao alargamento da área urbana e impondo novas
mentalidades e novos estilos de vida.
Parada não parece a aldeia da minha juventude. Completamente
descaracterizada, resta-lhe a compensação de um novo tipo de
conforto e bem-estar, que lhe são garantidos pelos novos
equipamentos das modernas habitações. Cada uma maior e melhor, mais
bonita e mais bem apetrechada que a outra, ostentando o resultado do
trabalho árduo e da pequena poupança, às vezes penosa, dos seus
emigrantes.
Indiferente à euforia de todo este aparato desenfreado, uma Casa que
marca toda a diferença. Pela natureza da sua arquitetura, pela
qualidade da sua construção, pelo charme da sua presença,
pela força de uma economia que tão bem representou, pela dignidade
de vidas que acolheu. Pelo respeito com que se impôs na comunidade
em que foi símbolo de abastança e boa organização, mas também de
práticas de vida exemplares.
Situada bem ao fundo e um pouco separada da povoação, a Casa dos
Mirandas lá continua, há bem mais de um século, a representar a
grandeza de uma história familiar das elites rurais que marcaram o
século XX, na freguesia de Parada de Ester.
Os habitantes da aldeia chamam-lhe mais propriamente “A Casa das
Senhoras Mirandas”, numa prova de deferência pelas cinco irmãs
contemporâneas das gerações mais idosas.
Quando D. Maria dos Anjos, D. Virgínia, D. Angelina, D. Arminda ou
D. Cândida subiam a íngreme calçada de pedra, desde o fundo do
Povo onde tinham a sua casa, até ao cimo onde ficava a Igreja, para
assistirem à Missa, sempre em cadeiras próprias, nos melhores
lugares da frente, toda a gente lhes dirigia um cumprimento especial,
marcado pelo respeito e uma certa distância.
Tinham um irmão, Alfredo Miranda, mas a administração da Casa
estava a cargo de D. Virgínia. Não seria tarefa fácil, devido ao
tamanho da residência e dos vastos terrenos que lhe pertenciam, como
à quantidade de criados e caseiros que ali trabalhavam, apoiados por
duas juntas de vacas.
Campos de milho em Parada de Ester
Como nota invulgar desta família, é de referir que D. Arminda e D.
Cândida, sendo irmãs gémeas, nasceram obviamente no mesmo dia.
Foram também batizadas ao mesmo tempo. Curiosamente, casaram na
mesma cerimónia. E fizeram-no ambas com irmãos de bispos. D.
Arminda casou com um irmão do Bispo de Eiriz, Senhor D. João
Crisóstomo Gomes de Almeida. D. Cândida casou com um irmão do
Bispo de Reriz, Senhor D. José de Noronha. Ele há coincidências
bem interessantes!
A Igreja Paroquial de Parada de Ester
A Casa dos Mirandas, ao contrário de praticamente todas as outras,
numa zona xistosa, foi totalmente construída em granito vindo de
fora da freguesia. O que, no século XIX, não seria tarefa fácil,
devido às dificuldades de transporte, já que a estrada só seria
construída na década de 40 do século XX.
Desde sempre pertenceu à família Miranda que, em 1904, a beneficiou
com grandes obras de restauro e aumento. As suas janelas e varandas,
dotadas de ornamentos em ferro pintado, são bem típicas dessa
viragem do século.
Passados cerca de cem anos, a Casa sofreu recentemente novas e
grandes obras, mantendo embora intacta a traça inicial.
Pelos seus três andares, distribuem-se agora vários espaços
modernizados e adaptados ao conforto que hoje se exige de uma casa de
férias. Quem pode exigi-lo, evidentemente. No lugar da adega, há
uma sala de jogos. Várias salas e vários quartos, numa reinvenção
prática dos conceitos atuais de bem-estar.
No terreno circundante, de que grande parte foi vendida a
particulares, as hortas da quintazinha foram substituídas por relva
e árvores de fruto.
A Casa nunca saiu da família. Num negócio entre vários irmãos e
sobrinhos, o imóvel foi comprado por um deles e pertence agora ao
Dr. Luís Cardoso Rocha, advogado na cidade do Porto e a sua esposa,
Dra. Susana Castro Guimarães, magistrada na mesma cidade.
Situada num lugar de excelência, a Casa dos Mirandas continuará,
por muitos anos ainda, a marcar uma paisagem impressiva de rústica
naturalidade e de forte presença arquitetónica. Relíquia de
afetos, entre os verdes e férteis campos de Parada de Ester.
Aurora Simões de Matos
(No livro Contos de Xisto -- 2012
Editora Edições Esgotadas)