No limite da margem, frente à Foz, testemunho emocionada o encontro entre os gigantes.
Mas a minha emoção não é apenas este encontro. Ela vem já de cima, presa noutras águas que a este Douro afluem. Mergulhada noutras frescuras que a este Douro dão corpo, vida e identidade. Pressentida no desassossego que neste ponto desagua, forma reticente do alarme que, nos labirintos do tempo, abre caminhos à saudade.
A minha emoção vem da intimidade com o leito de franjas bordadas a verdes tons, nos milheirais da minha terra. Está na voz das águas em cantilenas límpidas, nas manhãs claras de luz e nos queixumes rumorejados em profundezas de vales sombrios. Vive na pureza das cascatas, desfazendo-se em espuma branca de volúpia e no serpentear preguiçoso que orla as tardes silenciosas da minha aldeia.
Com o meu Paiva, esta emoção percorreu caminhos feitos de claridade e tempos feitos de bruma. Deslizou por veredas estreitas de chão apagado, terra rendada de urze e de giesta nascidas do xisto negro... e alargou-se em planuras de fertilidade. Saltitou travessuras em seixos macios de granito acomodado à prova dos anos e quedou-se, em tranquilidades lascivas, à borda das hortas, presa aos gestos lânguidos dos salgueirais. Venceu os percalços das levadas e das represas, brincou nos alcatruzes das noras e no romantismo de moinhos à espera de pintores e de poetas.
Olhando este Douro prisioneiro da sua tradição e da sua lenda, soberbo de grandeza e de orgulho, ensalivo de ternura palavras urdidas na voz dos sentidos e dou comigo a segredar-lhe perguntas sem resposta.
E que respostas sem mágoa poderia ele dar-me sobre a limpidez das águas que o meu Paiva, inocente e generosamente, lhe ofereceu?
Segredo-lhe queixumes, sufocados em suspiros rendidos à evidência:
- Onde está o rosto do corpo no rio da minha aldeia?
- Que ânsias alterosas lhe abafaram a voz?
- Que enredos imprevistos tentam afogar-lhe a história?
- Em que caminhos esqueceu os vestígios, para se perder nesta viagem para um destino sem contemplações?
- Que prenúncios são os que pairam na densa atmosfera que envolve este momento?
Vejo bandos de gaivotas, varando o céu com silvos agudos de conquista e oiço ainda, muito ténue, o medo do meu Paiva, tão longe já do rouxinol e da cotovia, do pisco e do tentilhão.
Em breve se afogará no mar. Levará consigo os murmúrios e os tumultos deste instante e deixará, desprendidas das águas já salgadas, lágrimas suspensas na bruma da despedida.
E eu aqui, no limite da margem, frente à Foz, testemunha emocionada do encontro entre os gigantes, ignorando o que possa estar para além desta paisagem...
Porque - recordando Fernando Pessoa - é evidente que muitas águas correrão...« para além do rio da minha aldeia»...
Aurora Simões de Matos
(no livro "Imagens da beira-Paiva"--- 2010, Palimage)
(fotos da net, de Miguel Batalha e Pedro Figueiredo)
Sem comentários:
Enviar um comentário