quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

O NATAL DA ( IN)DIFERENÇA - Aurora Simões de Matos - TESTEMUNHO REAL


 



O  NATAL  DA  (IN) DIFERENÇA

Era para ter sido um Natal igual a tantos outros, com as recordações que a distância do tempo nunca apagara. A inocência do meu sapatinho de criança ao lado da lareira, por onde haveria de descer o Menino Jesus, mais tarde transformado em Pai Natal, a trazer-me rebuçados e brinquedos de latão. A mãe e a Cordália à volta do fogão de lenha, nos preparativos da consoada. O cheirinho a canela com açúcar das rabanadas, das filhós, da sopa-seca, da aletria.







 A travessa do bacalhau com couve-troncha a fumegar. O mostra -esconde dos pinhões, no jogo do " par ou pernão". A permissão de que eu e minha irmã gozávamos, para um golinho de vinho fino.  
Mais tarde, na minha própria casa, o presépio feito com musgo da Serra das Meadas. A curiosidade de minhas filhas pelos embrulhos que iam engrossando o monte, ao canto da sala de jantar. A mesa grande, exibindo as louças apenas usadas em dias festivos, sobre toalhas alusivas. A mesa das sobremesas, onde havia um pouco de tudo o que qualquer família tradicional se oferecia naquela noite. As passas, os pinhões, as nozes, as avelãs, as frutas cristalizadas, os fritos doces e salgados, bolinhos variados, as romãs ao lado do ananás e, em lugar de honra, o tronco de Natal e o bolo-rei. A chegada dos que, de longe, vinham partilhar connosco a Festa da Família. A saudade dos ausentes. A animação de uma consoada intencionalmente prolongada pela noite adentro. 




A entrada do Pai Natal, com um grande saco de prendas às costas. A música de fundo que, desde manhã e durante todo o dia, até à hora em que os corpos cansados pediam um cacau quente, oferecia o ambiente místico de mais um Natal feliz.

Era para ter sido um Natal igual a tantos outros. E enquanto me dirigia ao comboio, a caminho do aconchego dos meus, relembrava, com a placidez, o desvelo, a ternura e a tolerância que a tradição impunha, alguns dos referentes que, alheada da realidade, imaginava eu pertencerem, com maior ou menor abundância, aos Natais de toda a gente.




Apressando o andar por entre o formigueiro de Santa Catarina em véspera de Natal, olhava de relance as montras aturdidas de apelos e recordava noites de emocionadas intenções de sentimentos, que desaguavam sempre na alegria, em propósitos sublimes, alguns pudores e, cada vez mais, numa doce nostalgia.
Clássicos musicais enchiam os ares. A gente buliçosa daquele Porto redobrava de irrequietude, na azáfama das últimas compras dos últimos dias. Arcos de luz e cor coroavam de festa o sorriso dos rostos do casario e a euforia dos rostos da gente. Cada porta deixava adivinhar um ambiente de especialíssima brandura, cada janela uma luminosidade coada pela devoção dos pinheirinhos, ao lado de ícones românticos a perpetuarem a linguagem da ternura.
Tudo em consonância com a época, tudo muito igual a sempre, muito certo e perfeito... até ao momento em que, ao cabo daquela rua, me preparava para descer à estação de S. Bento. Num repente, toda a paisagem emudeceu.

Nem o pasmo das lágrimas assustadas ou a impotência das lágrimas mudas, nem a amargura salgada das lágrimas inconformadas ou o grito alucinante das lágrimas em revolta nos rostos que a surpresa daquele instante metamorfoseasse até ao extremo da dor, conseguiriam traduzir o tormento da cena que, escandalosamente objectiva, se oferecia ao olhar de quem passava.



Num quadro de martírio emoldurado por uma auréola de nevoeiro, na pedra fria do chão despojado do passeio, na mais injusta e inquietante orfandade de amor, um bebé deitado, inocentemente alheio ao mundo, aparentemente alheio à vida, perturbadoramente alheio ao frio cortante de Dezembro e à chuva miudinha que entretanto começara a cair.
Metros abaixo, outro bebé tão quedo, mudo e alheio como o primeiro. E outro. E mais outro. Estariam adormecidos ou anestesiados?

Em vão procurei com o olhar a figura de um pai, de uma mãe, de um qualquer farrapo humano que, nas fímbrias de uma sociedade em desamor, no avesso de uma sorte em desesperança ou na transgressão de uma maldade proscrita, justificasse a imolação daqueles inocentes.
Em vão procurei uma autoridade que repusesse a dignidade e o decoro naquela rua, que protegesse aquelas crianças indefesas, que castigasse aquele crime revoltante.
Em vão procurei os que se tinham cobardemente escondido. Por única companhia visível, a frigidez de uma caixa de cartão com algumas moedas.

Com os olhos da alma estendidos pela descida daquele passeio, presa ao pensamento dos horizontes mais escuros, presa na interrogação de mil porquês, senti o gelo do sangue que parou nas veias da cidade.
Escondida dentro de mim, desviei os passos atónitos e cambaleantes por outro caminho e deixei cair o corpo no assento de uma viagem de comboio que nunca antes me tinha sabido a fuga.

Alguns dias depois, em casa, aninhada a um canto do sofá, ainda no desconforto daquelas imagens, lia, num jornal diário da cidade do Porto, o grito de revolta de alguém, numa denúncia que, aturdida e atormentada, não tivera eu a coragem de fazer.



Tinha passado o Natal de toda a gente. O daquelas vítimas inocentes e frágeis que não sei se sobreviveram ao drama. O daqueles pais que não quero, porque não sei, julgar. O dos derrotados e o dos triunfantes da vida.
O meu também. Sem sorrisos condescendentes, sem abraços tolerantes, sem gestos solidários. Porque, exigente no plural da minha mágoa, acabei por estragar a Festa da Família.



Hoje, marcada para sempre pela visão daquela manhã, volvidos já uns bons vinte anos,reencontro os mesmos dramas. E vasculhando nos escombros do que foi a poesia de Natais sem retorno, encontro uma difusa auréola de nevoeiro, a emoldurar um   quadro onde se lê a palavra SAUDADE.





Aurora Simões de Matos

Colectânea " NATAL RENASCIDO" - 2006
Colectânea " LUGARES E PALAVRAS DE NATAL" - 2014

( imagens da net)

 

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