sábado, 9 de dezembro de 2017

CONTO DE NATAL


A CAMINHO DO PRESÉPIO - Aurora Simões de Matos

CONTO DE NATAL
Autora - Aurora Simões de Matos
A caminho do Presépio


Por tapadas e quebradas, vales, ladeiras e altos cabeços, soutos, pinheirais e milheirais, carreirinhos de chão pisado entre carquejas e sargaços, urzes e giestais, ouvia-se, qual hino de boas-vindas, o cântico solene de um coro universal.

― Parece que toda a Terra está em festa! – murmurou o cordeirinho tresmalhado, de olhar meigo voltado para o Céu.


― Eu estava à tua espera, cordeirinho! – respondeu a estrela cadente, irmã de milhões de outras estrelinhas espalhadas pelo escuro da abóbada celeste. Para te dizer que tens irmãos e que, de olhos postos no horizonte, te esperam ansiosos. Vai, cordeirinho, corre, não os faças esperar mais. Eu ensino-te o caminho.


― E quem está a cantar esta música tão linda?


― São os anjos do Céu. É Natal, nasceu um Menino no coração de cada homem e esta noite todos param para festejar o grande acontecimento. Mas tu és pequeno demais para compreenderes estas coisas. Agora só tens que te apressar, cordeirinho. Eu ouvi no espaço a oração do jovem pegureiro aflito, pedindo a Maria a graça do teu regresso.


― É muito longe a casa dos meus irmãos, linda estrelinha?

― Duas léguas e meia, por tapadas e quebradas, vales, ladeiras e altos cabeços, soutos, pinheirais e milheirais, carreirinhos de chão pisado entre carquejas e sargaços, urzes e giestais. Estão todos à tua espera, a tua ausência uniu-os numa corrente de fé, grande é a esperança em tempo de Natal. O Presépio da Igreja está pronto e o teu lugar lá está reservado. Até à última hora e para além dela, ninguém poderá nunca ocupar o teu espaço. Se não te atrasares, chegarás a tempo, cordeirinho.


Pelos caminhos da serra, a sós com estes pensamentos, seguia ele o trilho das estrelas, iluminado pela mais brilhante de todas. Perto de um povoado, agigantou-se no silêncio da noite o cantar misterioso do galo emproado, de grande crista vermelha. A seu lado, a galinha poedeira abriu um olho e, ciente de galinácea sabedoria, cacarejou:


― Já pouco falta para a meia-noite. São quase horas da Missa do Galo e eu não quero deixar de representar a classe, como respeitada poedeira que sou.






E, atrás do galo todo emproado, em duas corridas alcançou o pequeno cordeirinho, à luz da fascinante estrela e ao som de um coro de vozes que não se sabia de onde vinham.


Os três, felizes, mas em silêncio, como se todo aquele ambiente e suas personagens fizessem parte da mesma oração, seguiram carreiro fora, à flor da terra batida e escura, fendida por pedaços de lousa macia e cortante.







À passagem dos devotos peregrinos, o cão de guarda da pequena casa isolada, à beira do Souto da Pedreira, ergueu-se nas patas traseiras, encostado à cancela de pinho e, espreitando com ar de interrogação, ladrou alto e bom som:


― Quem vem lá, por caminhos fora de horas?


Como ninguém lhe respondeu, rosnou, com ares de quem tudo percebia:


― Por aqui, alta noite estrelada, só quem vá festejar o Natal!


E, apoiando-se numa trave da cancela com as patas dianteiras, abalançou-se com as de trás e, de um salto, estava já a caminho do Presépio, na fila atrás do cordeirinho, do galo emproado e da galinha poedeira.


Cada vez mais perto dos irmãos, o jovem cordeiro, já cansado da longa caminhada, parou um pouco para beber na pequena poça que as chuvas do inverno haviam transformado em bebedouro de água transparente e em cujo espelho viu, nos ares, a estrela cadente que os guiara até ali.





















― Estamos quase a chegar. Segue-me, que eu vou à frente, a riscar com marcos de luz os caminhos que o Menino te destinou. Onde eu parar, entrarás e lá encontrarás os teus irmãos.


Cada vez mais perto, podiam ouvir-se agora, com bastante nitidez, sons de tambor e cânticos de crianças, a ensaiar a grande representação da chegada dos pastores ao Presépio.


Habituado a dar conta e sinal de pessoas estranhas, o cão de guarda apercebeu-se, através duma nesga entre dois telhados, da presença de uma estranha Figura de barbas brancas, vestida de vermelho, com um grande saco às costas.


Ladrou, espavorido, quase a despropósito.




― É o Pai Natal, que anda a distribuir prendinhas pelas crianças da freguesia! Quando chegarem da Missa do Galo, todos irão a correr ao canto da lareira buscar os presentes: rebuçados e chocolates, brinquedos ou livros. O Pai Natal sabe bem como distribuir.


Era a voz da estrela cadente que está, agora, a chegar à torre da Igreja Matriz, onde vai celebrar-se a Eucaristia da mais linda noite do ano.


Como quem toma a melodia do mais belo cântico de amor e boas-vindas e com ela consegue musicar um novo Hino da Alegria, o coro de anjos celestes, voando nas asas da sua voz, entoa por toda a Terra a frase da boa-nova:


- Nasceu Jesus! Nasceu Jesus! Nasceu Jesus!


A Igreja está repleta de fiéis, à espera da hora para o beijo ao Menino, deitado nas palhinhas da manjedoura, no grandioso Presépio Vivo. De súbito, como se o quadro não estivesse completo…


O galo emproado e a galinha poedeira entram de mansinho pela porta principal e, obedecendo ao instinto, vão agachar-se dentro do cesto vazio da pastorinha mais pobre.


O cordeirinho, exausto da longa viagem, nem dá pelos sorrisos doces dos seus irmãos e, sem cerimónia, alcança o bondoso S. José, deita-se a seus pés e adormece tranquilo.

O cão de guarda não entrou. Ele sabe que o seu lugar é à porta. Atento a todos os movimentos, faz um uivo de pasmo à passagem meteórica da estrela cadente que, da torre da Igreja, se lança pelo espaço em vertiginosa correria.


― Não te assustes, cãozinho! Tenho pressa, tenho pressa! Vou agora noutra missão. Lá longe, muito longe, os Reis Magos esperam a minha luz...






                                                    
               Aurora Simões de Matos


quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

PORTUGAL RURAL ( 5 )

                                                             O CANASTRO

Foto de  Armando Jorge
Texto de Aurora Simões de Matos

                          BELO CANASTRO - CAPELA PEQUENINA

Plantada junto à eira, na colina
erguia-se a CAPELA PEQUENINA
bela, robusta, altiva, sobranceira
na sua postura e autenticidade
herdadas do tempo e da rusticidade
da terra-mãe
que lhe oferecera a força e o poder
arrancados à verdade do monte
O granito de seu pés fazendo ponte
e corpo lhe dera
arrancado à verdade do chão
o colmo corrido a cobrir-lhe o ser
e telhado  oferecera
de alma e coração

Belo canastro a relembrar farturas
Trabalhos e canseiras, as mais duras!

O ventre feito de vísceras douradas
na aridez do sol, na aridez do vento
que corria, livre, por suas janelas
à vontade do tempo
e lhe atravessava os ossos
lhe retesava as veias
na generosa intenção de oferecer
a dádiva do amadurecer
o pão, fruto de meses de canseira
do lavrador, até chegar à eira

Belo canastro a relembrar farturas
Trabalhos e canseiras, as mais duras!

Ainda hoje, singelo monumento
à ruralidade que é de todo o tempo
podemos vê-lo no seu lugar plantado
mesmo que das entranhas despojado
belo, humilde, saudoso, na colina
lembrando-nos CAPELA PEQUENINA

Portugal Rural - (4)

                                              DIA DE FEIRA

Fotos de Armando Jorge

Texto de Aurora Simões de Matos





                                 Feira de Barcelos


Na Feira de Barcelos
comprei uns chinelos
de pano, e a chita
pró meu avental.
Dois metros de renda
e três de espiguilha
e uma rodilha.
Pró meu enxoval
um jogo de cama
bordado à mão
que parece igual
ao da Conceição
do Zé do Quintal.

E comprei também
lenço de merino
e umas arrecadas
que levo guardadas
junto ao coração
presas ao corpete
não vá o diabo
por aí tecê-las
e vir a perdê-las
nesta confusão.

Por lá passeei
quase a tarde inteira
que o meu maior gosto
é andar na feira
e apreciar
as louças, os panos
calçado, chapéus
os cestos, o ouro
e as miudezas
que das redondezas
o povo vai ver
comprar ou vender.



Mas o que mais gosto
é passar à beira
da bela hortaliça
toda ela verdura.
Legumes e fruta
plantas e flores
que agora na feira
já há com fartura.
E mais adiante
a feira do gado
Vacas e bezerros
burros, jumentinhas
cavalos e porcos
cabras, cabritinhas
coelhos, galinhas
e outros animais
ao lado do dono
que, a regatear
passará o dia
a tentar vender
aquilo que outros
ali vão comprar.

Ou então... como eu
 só apreciar!





sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

PORTUGAL RURAL (3)

MULHER RURAL - SÍMBOLO DE UM TEMPO

Texto de Aurora Simões de Matos

Imagens de Armando Jorge


 ~~~ MULHER - SÍMBOLO  ~~~
A rezar as memórias de uma longa vida, feita de pequenas coisas. Que, todas juntas, fazem dela a protagonista de uma grande história. 
A história de cada mulher rural, nascida e criada na aridez, pelos rigores da natureza e da vida. 
Companheira do homem, âncora da família, escrava de valores que por tanto tempo a humilharam na sua dignidade. 
A quem tudo, durante séculos, se exigiu, sem o direito de recusa.
E, ainda assim, mulher conformada e sorridente na sua condição feminina.

Mulher guerreira, mulher valente. Mulher trabalhadora, lealmente apaixonada pelos seus, coerentemente apaixonada pela vida.
Mulher-símbolo de um tempo, sem tempo nem condições para dele se desprender.