sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

POEMA 



Ausência







Quando a morte vier travar-me os passos
e o meu corpo inerte for enfim
a inocência da terra adormecida,
a sombra do cipreste
guardará para sempre o meu segredo
e o silêncio não será mais grito,
nem o meu grito será mais silêncio.


Tudo será estranho,
porque a vida que vivi
foi toda silêncio e grito.

Mas a sombra do cipreste

guardará para sempre
a inocência da minha dimensão
e a efemeridade do meu destino.

Onde a inocência da terra adormecida

esconder para sempre o meu segredo,
a noite e a madrugada já não farão sentido,
e o silêncio da minha voz
será a distância sem angústia
entre a ausência do presente
e o mundo que já foi... e já não é...


Aurora Simões de Matos







domingo, 23 de dezembro de 2012

Trovoada na Serra


Trovoada na Serra


POEMA






                                      TROVOADA NA SERRA






Fim de tarde de Maio…
O ar quase sufoca...
Nem pontinha de vento
e o céu ficou cinzento…

Há troca de queixumes,
que isto de alguns astros
mexerem com a gente
não é conversa apenas...
e a cabeça dói,
e custa a respirar,
o esqueleto mói,
os seres todos se agitam:
as vacas se inquietam,
os gatos saltam muros,
as aves emudecem,
bichos procuram toca,
as moscas enlouquecem,
parece que o ar sufoca...


Tão escuro o horizonte
e o gado anda no monte!





O céu mudou de cor,
parece desabar
e, ameaçador,
começa a faiscar.
São serpentes de luz
que à terra vão cair:
dois raios que o maninho
já teve de engolir...

Os olhos não aguentam
e fecham pra não ver...
as mãos vão por instinto
nos ouvidos mexer,

mais para não ouvir
que para proteger.





E nesse mesmo instante

ouve-se, atroador,

o trovão que ribomba

em tom assustador,

e logo outro clarão

e logo outra oração:

« S. Jerónimo

e Santa Bárbara Virgem!»


São duas trovoadas,

parece que andam cruzadas:

uma no Côto, além,

outra na Fonte Fria

rasgam o horizonte,

já não há luz do dia...

e o gado anda no monte!


De pé, no Côto, além,

o pegureiro reza;

o Povo ora com ele

e o gado silencioso

parece orar também.

Diz a mãe para o filho:
«Vês Jesus a ralhar ?»

O medo paralisa

O pobre pequenito

e impede-o de chorar.


«Valha-me Santa Bárbara,

é mesmo ali defronte;

o teu pai na vigia

e o gado anda no monte!»


Em cima dos telhados,

uma só protecção:

vasos com santas bárbaras

postas com devoção

na aldeia que,num ai,

toda se ensimesmou.



Mas já a chuva cai...

grossos, gordos salpicos...


Cheira a terra molhada,

cheira a terra queimada.

Bendito S.Jerónimo,

Santa Bárbara bendita…

abranda a trovoada,

o susto já passou.


Ouvem-se agora ao longe

os últimos trovões;

os chocalhos do gado

tocam nos corações:

Já lá vem a vigia,

Virgem Santa Maria!”


No olhar do pegureiro

há lampejos de sorte.

Bendita Santa Bárbara...

Bendita Santa Bárbara...


O gado está na corte !!!...




Aurora Simões de Matos











 Aurora Simões de Matos                           

(imagens da net )                                  
         



quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Boas Festas


BOAS FESTAS






Para a minha Família, Amigos e Leitores, a quem agradeço todo o carinho e apoio,

Votos de Santo Natal e um Ano Novo pleno de realizações...
Aurora Simões de Matos


terça-feira, 18 de dezembro de 2012

FEIRA DOS DOZE EM PARADA DE ESTER


Parada de Ester, Feira dos Doze



As ruas já não cheiram a velhos caminhos, aos caminhos de uma infância em que tudo ia dar à Feira dos Doze.

Revisitar hoje o local da feira onde, há cerca de meio século, mensalmente satisfiz minha curiosidade, dei largas à imaginação, dialoguei com a vida, no convívio com o de mais genuíno possui a gente da minha terra, é sempre uma romagem de ternura e de saudade a um tempo e a um espaço em que se alicerçou boa parte da minha identidade.
 Andar por lugares onde nada existe já que no terreno testemunhe a vivência e o fervilhar das gentes e das emoções de outros tempos é, no mínimo, uma estranhíssima sensação de perda. Os sons, os cheiros e os paladares, que durante ainda muitos anos sobreviveram nos meus sentidos, terão sofrido o desgaste de uma ausência à intimidade com aquele largo de terra batida circundado por algumas oliveiras que, no dia doze de cada mês, se transformava no ponto de encontro quase obrigatório do povo de Parada e arredores.






Do largo da feira não existe praticamente nada. O aglomerado habitacional da aldeia, em crescente alargamento, não se compadeceu com o quase mítico terreiro, onde hoje se erguem algumas moradias cuja arquitectura e aparcamento acompanharam naturalmente o evoluir dos tempos.

Por estranho que pareça, sinto melhor aquele espaço à distância, porque o sinto incólume, nas memórias duma vida onde, em cada retrospectiva, há sempre momentos ímpares que se vão redescobrindo. O saudosismo, que assumo sem preconceitos, traduz-se assim no carinho pelas raízes de que todos os Paradenses se orgulham.

Embora por curto período, vivi algum tempo da minha meninice em Parada, bem concretamente no sítio que, pelo óbvio, se chamava de Feira. Tive, assim, o privilégio de viver e de sentir a feira bem por dentro, embora com o sentido de observação e de análise de uma criança.



A festa era anunciada três dias antes, com a chegada do Fafe, vendedor ambulante, talvez o mais conhecido dos feirantes da região. Outros tendeiros vinham de véspera para demarcarem os seus lugares e armarem as tendas para exposição dos seus artigos. Ou logo pela madrugada do dia doze. Ao longo da manhã, de todo o lado iam chegando os feirantes para mercar ou vender, ou simplesmente acorrer a um encontro ou a um dia de lazer.
A feira ia engrossando de gente, de azáfama, de barulho, de alegria e de negócios. Com produtos ligados às actividades económicas da região: animais de criação, sementes e hortaliças, ferramentas e utensílios; vestuário e calçado; louça branca e de barro negro ou vermelho vidrado; tecidos de fazenda, burel, riscado, chita, popelina, gorgorina ou organza, a metro. Mas também ouro: cordões e voltas de vários tamanhos e grossuras, anéis, brincos e arrecadas, broches e pulseiras para todos os preços. Tudo bem regateado entre o povo que mercava e os intermediários na mira do maior lucro, os agricultores com os produtos da terra, ou os artesãos que ofereciam a sua arte de tamanqueiros, ferreiros, cesteiros, albardeiros, correeiros ou latoeiros.




Na esquina, um ceguinho tocava concertina enquanto a mulher, com voz de fadista, cantava dramas passionais, as tragédias mais incríveis e os sentimentos mais inconfessáveis para, de seguida, guardar as moedinhas de tostão ou dois tostões que iam caindo num chapéu velho no chão, a seu lado. Logo adiante, as mazelas à vista de um jovem sem braços, de um velho com a perna gangrenada, da pobre mãe com o filho paralítico nos braços. Que os pedintes faziam também parte deste alvoroço.

Em surdina, ouviam-se vozes de mulher a oferecer molhadas de cebolo ou de couve-galega "sem raça de potra".

Em grande alarido, ao altifalante vendiam-se as cobiçadas carradas de roupa de cama e atoalhados a quem, acotovelando-se, conseguisse brandir primeiro a nota de conto. Nota que pagava uma carrada (rima de peças), contra o direito de se ficar com duas. Só visto!




Todavia, os negociantes de vacas e cavalos eram, sem dúvida, os grandes senhores das mais caras transacções, exibindo despudoradamente os grossos maços de notas para pronto pagamento, logo ali, em dinheiro à vista. Que o uso de cheques estava longe de ser prática corrente e o Serviço Multibanco seria uma longínqua utopia.



Mas o meu fascínio começava nas tendas de miudezas impecavelmente distribuídas por pequenas divisões num enorme tabuleiro de madeira, passava pelos brinquedos de latão, madeira, barro ou papelão, e acabava nas doceiras rodeadas de grandes cabazes de pão-leve e rosquilhos e de açafates de beijinhos cobertos com toalhas de linho alvíssimo de brancura e de limpeza.






Muitos revezavam-se nas casas de pasto para o almoço que experientes cozinheiras preparavam logo desde manhãzinha com o temperar das carnes e o acender dos fornos. Eram afamados os pratos de arroz acabado de sair em grandes caçoilas, as batatas e a carne assada em alguidares de barro vidrado, nas casas da Herondina, da Maria ou da Anitas do Bem Bô, da Ti  Ermelinda do Alhões, do Veríssimo, do João do Bernardo. Sabores inesquecíveis.

A azáfama e o burburinho duravam até à noite. Tinham-se feito compras e vendas, encontrado amigos e inimigos, começado e acabado namoros, uns copos bem bebidos, um ou outro ajuste de contas. Mas só no dia seguinte a festa acabaria, com a criançada a vasculhar os sítios das tendas já desmontadas, na mira de alguma moeda perdida na ocasião dos trocos. Só depois tudo findava, para regressar à pacatez do quotidiano.











Hoje, a feira deixou de ser o que era. Mudou de lugar, deslocando-se umas centenas de metros, e mudou de estilo. Ainda se negoceiam, embora em muito menor escala, produtos agrícolas, animais e utensílios. Mas os tecidos a metro deram a vez ao pronto-a-vestir; os tamancos aos ténis; o burel à ganga; a madeira e o cabedal ao plástico; as cantigas ao desafio às cassetes pirata; os dom- robertos às pistas de carrinhos de corrida; os pirolitos à coca-cola; os rosquilhos aos croissants; a ourivesaria à marroquinaria; as bonecas de papelão, gordinhas e coradas, com vestidinhos sempre em dois tecidos diferentes para o peito e para a saia, deram lugar às barbies magricelas de roupas standardizadas.

Hoje, a feira deixou de ser o que era. Mudam-se os tempos, mudam-se os gostos e as necessidades. Mudam-se os nomes às grandes superfícies onde se praticam novas formas de mercado.



No entanto, embora as ruas já não cheirem a velhos caminhos, aos caminhos da minha infância, todas elas, as de Parada e as das redondezas vão, uma vez por mês, dar à Feira dos Doze. Numa saudável convivência entre o tradicional e o moderno, a economia da região, saída há muito tempo da quase auto-suficiência dos seus agricultores e dos seus artesãos, vai tentando encontrar novas formas de se revigorar. Rendida à força das novas tecnologias que, mercê da facilidade de transporte, invadiram o mundo rural com a oferta de pequenos luxos, a Feira dos Doze tenta ainda afirmar-se como satisfação à subsistência, progresso, divertimento e convívio de uma boa parte das gentes da beira – Paiva.


                           Aurora Simões de Matos


( no livro Imagens da beira-Paiva, Editora Palimage,2011)

Nota:----Estas eram as realidades da feira, até ao ano de 2011




domingo, 16 de dezembro de 2012

Sobremesa de Natal

Sopa seca à moda da beira-Paiva
Freguesia de Parada de Ester (Castro Daire)

  
Esta é, como desde sempre foi, a mais tradicional receita de sobremesa para os dias de festa na minha região de origem. Barata, fácil e apetitosa...
Corta-se pão de trigo, já um pouco seco, às fatias.
Embebe-se cada fatia em água abundante, previamente fervida com um pau de canela e açucarada, a que se juntou também um bom bocado de manteiga ou,melhor ainda,de banha (que na minha terra se chama manteiga de porco).
Vão-se dispondo as fatias em camadas, num tabuleiro ou alguidar de barro. Cada camada é polvilhada com açúcar e canela.
É só levar ao forno, de preferência forno de lenha, e deixar alourar. As fatias de cima ficam tostadinhas. As de baixo ficam húmidas.
Se forem comidas no dia seguinte, continuam a ser deliciosas.




Nota:-----Ao longo do tempo,houve quem fosse introduzindo alterações a esta receita,certamente com a intenção de a enriquecer,já que era chamada "a sobremesa dos pobres".Esta é,no entanto,a receita tradicional,que nunca falta na minha mesa da Consoada.Boas Festas...e...



                                                           BOM APETITE!!!

sábado, 15 de dezembro de 2012


Tia Céu da Seara

Uma história com mais de um século






(Biografia romanceada de Maria do Céu Trindade, que residiu 25 anos no Lar da Santa Casa da Misericórdia de Castro Daire e que, no dia 5 de Dezembro de 2012, completaria a bonita idade de... 110 anos. Faleceu no dia 10 de Novembro do mesmo ano)




(continuação)

Capítulo III



Maria do Céu tinha pouco mais de vinte anos. Estatura mediana, a carne não lhe pesava. O cabelo escuro e forte, comprido até à cintura, apanhava-o atrás num puxo, depois de o entrançar. Outras vezes, deixava a trança solta pelas costas abaixo. Sempre vestida de escuro, embora gostasse mais de cores claras. Mas ela não mandava. Diziam-lhe que, no trabalho das terras e dos montes, não merecia a pena vestir-se de outra maneira. E uma rapariga não podia andar por aí a dar nas vistas, exibindo garridices. Para ir com o gado, ao moinho e à fonte, andava muito bem assim.

- Ó Céu, hoje quero ir contigo guardar as vacas!

Quem assim falava era o irmão mais novo, o António, de seis anos apenas.

- Está bem, anda lá, que para o ano já não tens tempo para isso. Vais para Vila Seca, que te consolas!

- Eu não quero ir para a escola, que é tão longe! - choramingou o pequenito.

- Pois não, mas tu não mandas. Quem manda é o senhor pai. Os outros também lá andaram, não vês?

- Tu é que tens sorte, que nunca foste à escola...

- Não digas assim. Quem me dera a mim ir. Aprender para saber ler. Gostava de saber ler
uma carta. Se eu arranjasse um namorado, não era preciso dar as cartas a ler a ninguém! - gargalhou a rapariga, cheia de malícia na voz.

- Quem foi que falou aqui em namorados? Eu por acaso ouvi bem? Vê lá se queres que eu diga ao pai ou ao Zé! - interrompeu um dos irmãos, mais novo do que ela, mas já com estatuto assegurado para lhe chamar a atenção.

- Ninguém aqui falou em namorados, pois não, Antonho? - dirigiu-se ao mais novo, para convidar a seguir:

- Vai lá então calçar os tamancos, que na Devesa há muito tojo. E mete umas côdeas na saca, que a minha merenda não dá para os dois. Espera aí, que tenho que levar a cesta da costura. Tenho ali um colete para casear e umas calças para chulear.

- Hoje também me contas um conto, Céuzita?

- Conto, pois! Mas é se me ajudares e não fores para lá dar-me cabo do juízo. Era só o que me faltava. Anda Galante! Anda Cabana! - chamou Maria do Céu pelas vacas, abrindo-lhes a porta do curral, para de seguida ir pelas cabras e pelo carneiro.

Era já meia manhã e a neblina sobre a Paiva fazia adivinhar um dia incerto de sol, apesar da Primavera adiantada.

- Anda, Toninho, bota pra cá as pernas! Olha aí a Bonita, que quer saltar. Bonita, anda cá, cabra espertalhona! - assim chamava com firmeza, usando a vergasta para guiar os animais caminho adiante e depois abaixo e outra vez acima, até alcançar a Devesa, o maninho onde costumava, como outros, apascentar o gado, intercalando com a erva do lameiro, em dias alternados.

- Ó Toninho, cal é coisa, cal é ela, que ainda agora falei nela?

- Essa já tu me ensinaste. É a cal. O que é a cal, Céuzita?

- É uma coisa que se bota na água para pintar as casas. Olha, a casa do vizinho senhor Carneiro é branca, não é? Pois é, porque foi pintada com cal. Agora as outras casas todas da Seara são de pedra. Acho que aquelas pedras das casas e dos currais e dos muros se chamam granitos e xistos. Olha, esta aqui, que parece mais dura e cinzenta, vês, é granito. E aquela ali, que parece mais lisa e acastanhada e menos dura, é o xisto. E as casas são cobertas com lousas, para lá não entrar a chuva nem o frio.

- Nem o vento, nem os bichos! - rematou o pequenito.

E, bem dispostos, lá continuaram a caminhada, um à frente e outro atrás dos animais.

Maria do Céu gostava de andar com o irmão António. Bem mais novo do que ela, era o único dos rapazes que, na sua opinião, a ouvia com atenção e respeitava os seus ensinamentos. Que, se fosse preciso, sabia já protegê-la.




Bem perto da Devesa, encontraram um rapaz de Sobradinho que, disfarçadamente, olhava a jovem moça, com vontade de meter conversa. O que, em boa verdade, agradava à rapariga. Mas que temendo algum castigo do pai, fazia por evitar.

- Bom dia, Maria do Céu!

- Bom dia, Augusto.

E, sem mais palavras, adiantou o passo, comentando para o irmãozito:

- Nem conheço este moço que me salvou! E também não é preciso ires contar a ninguém que passámos por ele no caminho.

- Está bem, está bem... Ó Céu, tu querias namorar com ele? - indagou o pequenito, olhando para trás e ficando por momentos a observar Augusto que, de longe, assobiava uma modinha, certamente como prenda para a jovem.

- Eu não queria nem quero namorar com ninguém. Já me basta os homens chatos que tenho em casa. Mas também se quisesse, de pouco me adiantava. Nem o senhor pai me deixa,
nem os irmãos mo consentiam. Eles todos acham que é feio e pecado namorar. Que é uma vergonha uma rapariga olhar para um rapaz, sabes, Toninho? Mas eu acho que nem é vergonha nenhuma. Olha o nosso Zé que já se casou e o nosso Joaquim que também já namora! Então, nesse caso, as namoradas deles também andavam a proceder mal!!!

E, pegando na mão do pequeno confidente, puxou-o para si, abraçando-o de encontro ao peito, enquanto as lágrimas lhe cantavam pelo rosto queimado do sol.

- Não chores, Céuzita! Dói-te alguma coisa?

- Pois choro, choro, que a barriga começa a dar horas. E tirando uma cebola rachada com sal e um pedaço de broa da saquita de trapos, repartiu-a com o irmão. Como se aquela partilha selasse um perfeito entendimento entre os dois.


(Continua)

Aurora Simões de Matos


quarta-feira, 12 de dezembro de 2012


NA VOZ DO TEMPO



«É Natal! É Natal! É Natal!»

A notícia vinha das alturas da Fonte-Fria, lá de onde a neve e o nevoeiro anunciavam a chegada do Inverno.

«Nevoeiro na Fonte-Fria… chuva ao outro dia».

«É Natal! É Natal! É Natal!»

A notícia vinha pela brisa cortante que a neve soprava ao cair mansinha nos cimos do monte, na voz do cieiro a gretar a pele do tempo no corpo; atravessara matos e fraguedos, soutos e pinhais; espalhara-se por encostas e outeiros, névoas e neblinas; e inundava de paz os caminhos e os carreiros até chegar à Ribeira, diluída em oração.



- Mais um Natal! - rezou Maria Júlia num murmúrio, um raiozinho de luz a brilhar-lhe no olhar cansado duma vida entregue ao trabalho e à família, à saudade e tantas vezes à solidão. E, enquanto bafejava as mãos enregeladas no codo e ajoelhava sobre o toldo crivado de azeitona, olhou orgulhosa a grande abóbora-menina a um canto da horta, atrás da casa.

- Fritas de abóbora, o melhor da consoada para o meu filho, que Deus mo traga com saúde….

E, chamando para dentro da porta do quinteiro: - Ana Marta, vê se te despachas com esses trabalhos da escola, para me ajudares nas limpezas. Não tarda que cheguem os teus pais e quero adiantar os fritos para amanhã.

- Mais um Natal! - rezou de novo num murmúrio, relembrando mentalmente alguns dos dias que lhe marcaram a vida, esses Natais que ficaram como horizontes mitificados a que remete quanto de mais importante guarda nas suas memórias:








O Natal de há cinquenta anos, o primeiro que, enquanto criança, lhe soube a festa verdadeira, risos e fartura como nunca vira à mesa da consoada, o dia em que uma descarga de foguetes lhe anunciou, à porta de casa, a chegada do pai, desde sempre ausente no Brasil. A surpresa de o conhecer, a surpresa da alegria na voz e no olhar da mãe, a surpresa da linda bonecrinha que ainda hoje guarda sobre o roupeiro.

O Natal seguinte, quando no mesmo dia, se calhar à mesma hora, a mãe deu à luz um menino igualzinho ao da Nossa Senhora. E foi assim e por isso que o irmão, ao encher a casa de risos e de fartura, mereceu o nome de José Maria. E foi assim e por isso que, quando nesse Dezembro lhe pegou ao colo pela primeira vez e durante mais uns poucos de Dezembros, lhe segredou ao ouvido que um dia o pai haveria de chegar para lhe trazer uma bola ou um pião.

O Natal em que a mãe, doente e já sem forças, não conseguiu levantar-se da cama e foi ela quem, pela primeira vez, assumiu aos quinze anos as lides e o governo da casa, os cuidados com o irmãozito, o amanho dos animais. Nada lhe custou fazer a ceia da consoada, a troncha a fumegar ao lado do bacalhau, as rabanadas, as filhós com mel, a aletria polvilhada de canela. Nada faltou, como se desde sempre estivesse pronta para isso e para tudo. E foi nesse dia que aprendeu a controlar os medos e as dores, a tomar decisões e a enfrentar a vida com coragem.



O Natal em que, já casada e mãe de um filho, ouviu pela rádio o seu Quintino falar-lhe de Angola, prometendo valentia «na defesa da integridade Pátria» e prometendo regressar «na volta do dever cumprido».

Mas não regressou. Restou-lhe o filho, a perpetuar o amor do único namoro que conhecera. O seu Jaimito, a riqueza maior que a vida lhe deu. Custou-lhe muito a criar, mas hoje sente-se uma mulher feliz.

O filho deixara-lhe a neta que era agora a sua companhia. A vida em Lisboa não era fácil, ambos a trabalhar longe de casa, a falta de tempo e espaço para a criança. Não queria que a mãe fizesse mais nada. Que lhe tratasse da menina. A casa farta, a arca frigorífica cheia do bom e do melhor, a visita uma vez por mês com o carro cheio de prendas. E a casa nova do seu rapaz, mesmo ao lado da que o vira nascer. Nunca vivera tão bem.



O Natal em que deu conta que é este o tempo certo que põe Deus em diálogo com os homens e a vida em diálogo com as consciências e assim aprendeu a ideia de o viver sustentado em coordenadas de fé, de esperança e de milagre.

E, consciente da influência que este tempo desde sempre sobre si exerceu como estímulo que lhe afeiçoou a maneira de ser e como resposta a que foi afeiçoando muitos dos seus sonhos e ideais, ajoelhada sobre o toldo crivado de azeitona, rezou ainda num murmúrio:

- Que Deus mo traga com saúde….

Da Fonte -Fria soprava a voz do cieiro a gretar a pele do tempo no corpo e a lembrar cânticos de paz que, atravessando soutos e pinhais, matos e fraguedos, névoas e neblinas, inundaram encostas e outeiros, caminhos e carreiros até chegarem, diluídos em oração, ao coração da Ribeira, que é como quem diz, às terras da beira- Paiva.


Aurora Simões de Matos

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

A MATANÇA DO PORCO


A MATANÇA DO PORCO


segundo a tradição da beira-Paiva








Chega o Inverno. O tempo envelheceu e, nas rugas das suas noites geladas, traz o codo e o frio agreste que trespassa as serras e os ossos.


A lareira consome as melhores torgas da pilheira, os caturnos e as grossas camisolas de lã de ovelha emprestam ao corpo a quentura suficiente para se lidar com a vida sem se enregelar.


O tempo envelheceu e, na pungência do seu desconforto, espera-se um dia de frio seco para a matança do porco.


O cevado foi comprado, ainda de leite, na Feira dos Doze. Ou na ninhada de leitões de algum vizinho.


Durante um ano, com restos de comida, batatas, hortaliças, abóbora com rama, milho, farinha, farelo, rama de feijão ou de longumeiro, leitugas, boletra, grainha seca dos lagares, foi o porco tratado com grandes desvelos, pois sabe-se que da qualidade da sua alimentação dependerá a qualidade e o sabor das suas carnes.


Depois de cevado como manda a tradição, escolhe-se um dia frio de Novembro ou Dezembro para a matança, uma tarefa de grande peso e enorme azáfama. É a economia familiar que está em jogo e nela se empenham vários pares de braços, muita força, alguma coragem, bastante saber e experiência, gula que baste.


De véspera, fazem-se os preparativos. Arranjam-se três homens para segurar o animal, um matador treinado, uma mulher que mexerá o sangue com sal, vinho e alhos. Prepara-se um carro de vacas, sobre o qual o porco há-de ser preso e sacrificado. Ajeita-se um balde ou bacia para aparar o sangue, o barreleiro (pano de linho) para aparar as tripas. E os alhos, os cominhos, o sal, a cebola, a salsa.






Já se ouve, por toda a aldeia, mesmo nos campos ao redor, o cuinhar do animal. Arredam-se as crianças e os de mais frágeis emoções. Que a violência da cena não é para qualquer um.


Enquanto o sangue escorre, a jorros, do pescoço para o balde no chão, a mulher mexe, mexe sempre com uma enorme colher de pau, para que não talhe.




Apoiados no carro de vacas, os três homens dificilmente aguentam o estrebuchar desesperado do bicho que, finalmente, vai perdendo as forças e acaba por sucumbir à grande hemorragia. O cuinhar vai abrandando e desaparecendo por entre a vozearia dos homens. O cevado está morto. Há que chamuscar-lhe o pêlo com carqueja ou palha em chama, ou mais recentemente com chamuscador a gás. Lava-se com mangueira de água. Esfrega-se com sacholas, para que saia a pele queimada. Barbeia-se com facas e navalhas.




No dependuradoiro, é colocado de cabeça para baixo, para escorrer todo o sangue e ser aberto no mesmo dia.


Esse trabalho é feito pelo matador, que a seguir lhe extrai as tripas para o barreleiro e a fressura que pendura numa das pernas, para melhor escorrer.




As tripas são desenriçadas para se lhes tirar o redanho e o lencinho, dois tipos de gordura para fins diferentes. Vão a lavar num barroco com água corrente e a seguir a temperar com devinha d’alhos, não sem que, entretanto, mãos de mulheres experientes as tenham separado, conforme aquilo a que se destinam. Pois que são diferentes as tripas dos chouriços, dos salpicões ou dos chouriços de sangue.







As primeiras a serem enchidas são as que se destinam aos chouriços de sangue. Com uma enchedeira, nelas é introduzido o sangue temperado com sal, salsa, muita cebola, alho e as gorduras do lencinho. Fazem-se os chouriços, apertados nas pontas com fio do norte. Quando estão prontos, são enfiados num vime ou num cordel e cozidos aos molhos, em grande panela de ferro, à lareira. Penduram-se ao fumo, no chambaril, durante dois dias. São os primeiros enchidos a serem consumidos e constituem uma especialidade nos sabores desta região.




Ao outro dia, desmancha-se o porco. São separadas as partes por quem souber talhar as peças: os presuntos, as pás, as bandas, a suã, os lombos, os coelhos, a cabeça, os pés, o rabo.

Mulheres habituadas a esta lida esfolam as peças de carnes para o fumeiro, que são preparadas, cortadas e separadas, conforme se destinam às chouriças ou aos salpicões. Os bocados são de seguida espalhados sobre uma mesa, onde passe o frio.






Os presuntos e as pás, as duas metades da cabeça e as bandas são estendidas em cima do telhado da casa ou do canastro, a fim de que apanhem o gelo da noite. Se chover, recorre-se ao alpendre.


No dia seguinte, de madrugada, metem-se as peças em sal, na salgadeira, arca de madeira colocada em lugar fresco, na loja térrea da habitação. A última coisa a ser guardada, no cimo desta «arca do tesouro», são os untos, depois de 24h em pratos com sal e enformados como broas. Servirão durante o ano, para tempero de sopas e caldos e ainda para a água de unto, feita com água em que vai a ferver um pouco dessa gordura, adoçada com açúcar ou mel e que se junta a um ovo batido, para ser tomada ao pequeno- almoço em substituição do café, bem como pelas parturientes em controlada busca de forças.


Assim ficará a carne debaixo do sal, durante um mês. Só depois desse período de tempo, deve começar a ser consumida.


As bandas são retiradas em pedaços, conforme as necessidades, bem repartidas pelo tempo, para serem cozidas com batatas, feijão e (ou) hortaliça.


A suã salgada põe-se de molho, antes de ser comida crua ou frita, acompanhada de batatas e grelos.




Os presuntos e as pás, após um mês de salga, são retirados, lavados, muito bem enxutos e colocados de novo na salgadeira, agora sobre carquejas. Assim ficarão à mão da dona de casa, que os saberá tentear pelo ano fora.


Ainda no dia da desmancha, são feitos os torresmos, outro petisco da nossa terra. Em panela de ferro ou tacho de cobre, são fritos ao lume de brasas, com um pouco de água ou azeite no fundo, e tendo como tempero apenas sal, alho e cominhos, as gorduras da calubra (cachaço) e do suventre (entremeada da barriga), o redanho e bocados de fígado.





São os torresmos fritos na própria banha largada durante a fritura e nela se conservarão envolvidos, por vários meses, em panela de barro vidrado. De vez em quando, em alternativa a outras delícias, saboreiam-se aquecidos na frigideira, sobre batatas cozidas, temperadas com a respectiva manteiga de porco.


Se as diversas peças de carne, preparadas, temperadas, conservadas e cozinhadas tão à nossa maneira, emprestam à gastronomia ribeirinha sabores tão próprios e inconfundíveis, o fumeiro constitui, sem dúvida, o mais apreciado mimo dos exigentes paladares que nos procuram.


Antes de serem feitos os salpicões e as chouriças, a sua carne marina durante quatro dias em devinha d’alhos, preparada por mãos experimentadas nestes temperos. A seguir, enchem-se as respectivas tripas previamente limpas e destinadas a este fim. Poêm-se todas as peças ao fumo, penduradas no chambaril, suspenso numa trave por sobre a lareira.


Quando secar o fumeiro, lava-se em água morna, peça por peça, depois em água fria. Enxuga-se bem e mete-se em azeite, numa barranha (panela de barro vermelho vidrado), já que o barro não vidrado pode melar o azeite. Na barranha, ficará assim o governo de chouriças e salpicões para todo o ano.




Mas há datas especiais em que, por tradição, as famílias consomem algumas peças de carne muito específicas.

O palaio, salpicão enorme feito com a língua inteira e várias postas de lombo, é comido no Dia de Entrudo.


Também no Domingo de Serrabulho, o primeiro de Dezembro, a ementa é igual em todas as casas. O peito salgado é cozido com feijão branco, hortaliça e chouriço de sangue. Com as costelas, faz-se um arroz malandrinho.


Actualmente, a matança do porco não se reveste da importância de outros tempos, em que comer uma refeição de carne não era privilégio de todos os dias nem de todas as bocas.


Apesar do muito peso que ainda detém na economia familiar, as pessoas têm hoje acesso a outros tipos de carne e a uma alimentação muita mais diversificada, mercê das novas formas de mercado e sobretudo da electrificação de toda esta região, bem como da facilidade na circulação de dinheiro proveniente de negócios, ordenados e reformas.






No entanto, o certo é que cevar um ou dois porcos por ano, de acordo com uma alimentação natural e tradicional, cumprir os rituais da matança, da preparação e da conserva das carnes, assim como controlar o seu consumo, continua a ser, como sempre foi, prática corrente de quem não desiste de, contra todos os esforços, guardar e preservar o que de melhor há nos sabores da beira- Paiva.



                                                   Aurora Simões de Matos




Nota: texto com emprego de regionalismos da beira-Paiva.

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