sexta-feira, 29 de junho de 2012

CONTOS DE XISTO


Apresentação no Porto
pelo Professor Doutor Rui Lage








Capa de Francisco Henriques




Ilustrações de Carlos Miguel Batalha



 

"Tinham sido criados entre sóis abertos e as neblinas do rio em manhãs de cetim, brisas frescas e ventos desassossegados, à solta pelos requebros dos montes, frios e calores de rachar a pele no curtimento autêntico da vida, chuvas a descer do céu como cordas que as nuvens lançassem à Terra.
Tinham crescido na inocência da sua aldeia xistosa, companheiros de outros meninos quase todos seus primos que, como eles tinham adormecido ao gosto de chuchas de trapo passadas por açucar, jogado o pião nas lajes macias da eira grande, feito camiões de lata puxados por um cordel, usado tamanquinhos de madeira ferrada, comprados na Feira dos Doze."

Do Conto "As Casas Gémeas" 




 "Ti Casimiro prepara-se agora para a última fase daquele trabalho rotineiro.
Em cima da jangada de cortiça e armado de grande vara com argola no fundo, vai enxotando o peixe. Com a ajuda das filhas a puxarem o cabeção para fazer o rodo, varre o poço com a rede de montante.
- São para aí trinta quilos bem pesados! - orgulha-se o velho pescador. E traz mais bogas que barbiscos. Amanhã vamos furtar o Poço da Frieira, o mais fundo de todos.
- Ó senhor pai, nem é preciso o travessilho!"

Do Conto "Entre bogas e alvitanas"




"A luta começa. O boi finca as patas no chão e, usando a força da sua corpulência, empurra o adversário com a testa. Chifres contra chifres, músculos retesados, baba a escorrer de raiva, olhos desvirados de nervos, rabos a enxotar pachorrências que ali não têm lugar. Bravura à flor da pele, num jogo de força e resistência."

Do Conto "Luta de bois na Feira do Fojo"






"Alfredo mandou rezar um responso a Santo António, advogado das coisas perdidas e, pela burra, ofereceu uma vela para a festa da Santa Padroeira.
E não é que a Santa Padroeira ouviu as suas orações, aceitou a vela e fez o milagre?
No dia da festa, no fim da Eucaristia, o povo, atrás do andor da Santa, organizou-se em procissão até ao Cruzeiro, rezando e entoando cânticos.
A fechar o cortejo, o Tonho das Cancelas, com ar solene, montado na burra manca, ia respondendo às palavras do Senhor Abade:
Arre Mulata... cheia de graça... Arre Mulata... entre as mulheres... Arre Mulata... rogai por nós... Arre Mulata... agora e na hora da nossa morte. Amem."

Do Conto "Burra escondida... com o corpo de fora" 




O Antropólogo e Historiador, Dr. Alberto Correia, faz a sua análise do livro
Contos de Xisto


    
As avós antigas contavam habitualmente os seus contos à lareira para entretém de netos, e as narrações estavam sempre situadas num tempo longínquo – Era uma vez… começavam sempre assim e mesmo quando as histórias tivessem ocorrido em seu tempo elas eram trazidas como se viessem de um longínquo chão de memórias.
Aurora Simões de Matos, a autora de Contos de Xisto, jamais começa as suas narrações pela expressão – Era uma vez… - porque as histórias que ela conta são histórias de verdade, por mais que aureoladas por um tempo de memória, histórias vividas por ela mesma, por ela participadas, ou acompanhadas de tão perto que ela as interiorizou como se a ela lhe pertencessem e agora no-las entrega, como se estivesse em sua terra e nos trouxesse uma cestinha breza com cerejas, se tempo fosse de estarem já maduras.
De uma pequena pátria nos falam as histórias, contidas as fronteiras desta pátria por uma estreita geografia de pitorescas aldeias que marginam o Rio Paiva quando, ainda de longe, se apressa para a foz. A Paiva como antes ela lhe chama, como lhe chamam os naturais daqueles lugares, como se o rio permanecesse ali criança, como se fosse ali ainda ribeira. [...]
Pequena pátria, essa de que a autora fala, construída por homens, construída por mulheres, que os deuses ali pouco fizeram para além de oferecerem o xisto, que ofereceram, construída a partir de um chão original, desse xisto esboroado e fecundo amparado pelos longos muros dos socalcos, desse xisto de que nasceram as habitações dos homens e dos gados, esse sublime desenho da paisagem quando, ao findar das chuvas, as coberturas das casas da gente, os abrigos do gado, as abas que recobrem os canastros nos mostram na pureza da luz do sol, lavadas, o brilho da lousa original.
Pequena pátria, que ali também foi solto Adão, ali cumpriu seu fado, o suor do rosto para inventar uma terra que de algum modo lhe lembrasse o paraíso. Camponeses e pastores, que sempre foram isso, os filhos de Adão, até tempos muito próximos, modelaram uma civilização, como diz o autor do prefácio deste livro, modelaram uma cultura que permaneceu, surpreendentemente, quase intocável até tempo que não vai mais longe que a memória de nossos mais velhos avós. [...]
De outro modo se enriqueceu no tempo essa cultura com esse fácies que lhe foi acrescentado, aquilo que hoje designamos como património no sentido imaterial, e que tanto pode ser a devoção familiar entre os seus membros, o sentimento da honra de um chefe de família, a solidariedade cumprida num quadro de vizinhança, a vigia do gado da partilha comunal, a chega dos bois na Feira do Fojo, a queima de ervas benzidas numa tarde de trovoada, as rezas de quebranto, da erizipela, do mau olhado, e esse outro quadro de religiosidade ortodoxa onde, de tão forte subsiste a tradição festiva de homenagem aos santos, e também esses resquícios de religiosidade ancestral que na era cristã se aproveitou e cuja leitura podemos fazer na fogueira do Natal ou do S. João, na ludicidade do Carnaval, no assombro de uma casa guardada pelo diabo transfigurado de caprídio.
Aurora Simões de Matos conheceu este pequeno mundo e é nele que ancora toda a trama dos contos, assim ela lhe chama, verdadeiramente desses pedaços de histórias de vida que ela nos traz.
Ela sabe que esse mundo se perdeu, é arqueologia, podemos nós dizer, como Saramago chamou ao mundo que Aquilino descrevera nessa geografia das Terras do Demo, terra de pastores e camponeses, como esta, só que mais crestada do sol, só que mais exigente de suor.
A autora de Contos de Xisto incarnou essa laboriosa e sedutora missão de salvar, através da memória, a sua terra. Já o intentara antes com as Imagens da beira-Paiva.
Histórias exemplares, é o que ela nos traz. Mais de trinta, mas muitas mais poderia contar.
Dentro delas está sempre aquele chão que ela pisou nas brincadeiras da infância, nos caminhos da Escola, os trajectos familiares da travessia dos campos, das hortas, dos pastos do gado, da ida ao moinho, dos festivos caminhos da feira ou da romaria. Dentro deste chão corre, remansosa ou turbulenta, a água da Paiva, a água das pequenas levadas que regavam os milheirais, dentro dele desce a água da chuvinha mansa propícia à sementeira do nabal, as águas demoradas das invernias antigas, a água em catadupa das trovoadas, e os trovões que as arrastam e os raios que às vezes davam em tragédia como aquele que esgalhou um castanheiro e matou a Carmita e uma parte do rebanho que a pastorita guardava. Dentro dos contos há o cheiro das giestas que abrem no mês de Maio, há cerejeiras em flor, pereiras com a fruta já madura pronta para o assalto dos rapazes, renques de oliveiras como essas a cuja sombra Mindinha adormeceu. E os carreiros à beira Paiva por onde corria a irrequieta Maria Augusta desafiando as águas, a brincar, sob os olhos vigilantes do avô entretido a pescar, e os carreiros que levavam ao moinho e que levaram aquela mãe montada na burrica, aquela mãe que perdeu no caminho o seu menino porque não pôde chegar em tempo ao doutor.
Há também, nos seus contos, a alegre convivialidade das romarias, as madrugadas dos ranchos que partem cantando, descalços às vezes por todo o caminho ou tão só no passar nas poldras ou no vau da ribeira, as promessas pagas aos santos, S. Macário ou S. Bartolomeu, tanto faz, o cordão de oiro oferecido como ex-voto para salvar o filho doente, a figurinha de cera deposta num altar, os joelhos doendo no duro trajecto entre as duas capelas no S. Macário. E o farnel feito a gosto em cesto ou cabaz com alvos linhos e levado à cabeça, depois aberto na toalha comum.
Só depois destas paisagens construídas, das terras desbravadas, dos caminhos feitos, vêm os homens. Os homens, como costumamos dizer, apesar de o nome integrar os dois géneros, homem e mulher. Só depois vêm os homens, toda a gente, por mais que a autora diga que gosta de falar no feminino. Daí que sejam mulheres, me parece, a maior parte das suas heroínas.
Quem são então estes heróis, estas heroínas, que a escrita da autora assim os eleva?
Mais não são que homens ou mulheres iguais a nós. Viveram num tempo concreto, diferente do nosso. Sofreram os dramas da existência que nós sofremos e tiveram para eles, às vezes, respostas semelhantes às dos remédios de agora.
Para alguns a terra não bastou, ou foi madrasta. Ou os seus sonhos simplesmente não couberam nela. E tiveram como destino a emigração, Lisboa, a França, ou o Brasil num tempo mais distante. Como hoje temos. Alguns tiveram sorte. Cumpriram seus sonhos. A árvore das patacas foi achada. Como aconteceu com os irmãos gémeos do primeiro conto, o sol e a lua, que a estes astros se assemelhava o carácter de ambos, irmãos e amigos, as mesmas lutas e as casas gémeas construídas na aldeia, ufanas na sua arquitectura e na felicidade de seus habitantes. Outros não regressaram. Não se soube deles. Alguns voltaram pobres. Aparecem bastas vezes, ponteando os contos. No meio destes há mulheres, passageiras para Lisboa ou para o Brasil. Nenhuma foi feliz. Uma delas foi, quase ao findar dos dias, chamava-se Ana Marta, casara com um brasileiro mais velho que, depois de lua-de-mel demorada retoma o caminho do Brasil, Ana Marta não adivinhara a razão. Uma espera sofrida, e do jeito de um novo amor nasce Maria Leonor que a mãe abandona ainda menina, ao cuidado da irmã mais velha e madrinha enquanto ela, respondendo à impossível carta do seu homem se decide a partir, os dois perdoados da escolha incerta dos caminhos. [...]
Aurora Simões de Matos fala muitas vezes da fé em seus contos. A fé, a sua, que radica numa formação ou catequese antiga, e o chão sagrado da sua terra, a força do céu que observou em menina, e os seus heróis que seguiam descalços ao redor do andor da Virgem da Fátima peregrina, que cantavam ao lado do andor entre Cabril e Parada, era ela menina, e a festa de arromba ao padroeiro, S. Bartolomeu, pagadores de promessas, léguas de caminho até S. Macário. E a crença no diabo. Basta ver o que dele dizia Ti Belmiro Penata que o sentiu nas estranhas festas da abandonada Casa das Rolhas, luzes caminhando sozinhas, cantares de que coro não via e, mais tarde, quando isso passou, a presença de um bode com focinho de macaco que vagueava entre a ruina da casa que acontecera há muito. [...]
A autora, mulher de fé ou simplesmente mulher, coloca também, bastas vezes, nos seus contos, o perdão, a compaixão, dos mais puros sentimentos humanos que a gente do mundo rural cultivava, porque do leite o aprendia. [...]
A autora dos Contos de Xisto traz-nos inúmeros retratos desta gente sofredora, quase sempre resignada e se o desespero alguma vez chegou, sempre se ouve uma voz compassiva para atenuar a dor. [...]
Muitos dos contos que falam de mulheres recebem, às vezes, um título triste. É o caso de O destino de Carmita, a pastorita que morre, ferida por um raio quando intenta salvar, num parto demorado, a cabra que trazia em pastoreio. É o caso de As Mulheres da Pena, de que ela salienta a heroicidade, particularmente daquela que enterra à boca do cemitério a filha que parecia ir ter vida tão promissora. Nas Histórias de Amor e Dor, Maria do Moisés não encontra sorte, como em Isolamento e Dor a mãe que vê desfalecer o seu menino morre um pouco em seu coração. No Conto O Amor Magoado, Rosalina bem cativa de mimos o marido mineiro em Regoufe. Dá-lhe doze filhos. Ficaram sete. Os outros morreram, parece, como anjinhos. E esse amor todo do mundo que lhe deu não resiste aos maus tratos do seu homem. No fim bebe para esquecer o homem, o mundo e as dores. Tem apenas a compaixão da gente que vive ao lado dela.
São estes dramas humanos, de ontem e de hoje, que a autora do livro traz. Dramas de amores não correspondidos, de mães adolescentes salvas pelo amor de uma madrinha, de adultérios que parece nem terem sido pecado, da doença que não encontrou remédio.
Mas em Aurora Simões de Matos, apesar deste lado lunar da vida, cultiva-se a esperança. Quase sempre, no fim dos dramas, houve um abraço, ou a paz chegou. E ela celebra então a alacridade da festa, o tempo solar e benfazejo, e celebra a euforia da feira, esse outro festivo encontro dos homens. E celebra os sonhos da gente e fica feliz quando os irmãos gémeos constroem as casas novas, quando o menino que quer ser tocador de trompete tem a promessa do mestre que o vai ensinar a tocar e evoca, tocada pelo sentimentos que as quadras despertam o tempo propício da Páscoa das Flores, do familiar e mágico Natal, esse tempo em que uma Estrela ilumina os passos de um pequeno cordeiro, de um galaroz façanhudo e de galinhas poedeiras que sobem misticamente ao presépio da igreja e se aninham ao pé do Menino e a Estrela que parte outra vez e vai buscar os reis Magos e eis o seu coração bondoso revelando-se, e a generosidade cultivada num quadro de família e o sabor redivivo de uma infância feliz, de uma vida guiada por caminhos de trabalho, de honra, generosa, grata e solidária.
Uma pátria antiga, revelada, uma pátria que ela ainda quer restaurar com o álacre colorido das casas gémeas, a abundância do pão e do saber, a estrada que traga o retorno da gente, a Escola cheia de crianças que possam aprender ali, com as tecnologias novas, o velho falar de seus avós, que entendam os significados do sarge e da merugem, que entendam, isso sim, que o trabalho é redentor e que o amor só vale a pena se for compassivo e solidário.
Alberto Correia







segunda-feira, 25 de junho de 2012

O Verão Chegou

  

NOVAS VIDAS ROMPERAM


Mãos erguidas ao céu, sentido de vitória
no tempo prolongado em tempo de milagre. 




                                                                                          
O Verão chegou sem sequer dar por isso                     
como o sol que se espraia pelo dia                               
como a água que se espalha pela margem                     
como o delírio que corre pelo corpo.                            
                                                                                       
                                                                                      
O Verão cresceu de dentro para fora
e inundou de chama a terra prometida                          
do sangue que escaldava em febre libertada                  
escorreu o suor, as veias latejaram.                                
                                                                                      
O olhar ficou por ele todo ele mais quente                   
que a luz intensa no fogo de viver                                 
e do braseiro que ateou deslumbramentos                    
novas vidas romperam no desdobrar daquela.              
                                                                                       
Mãos erguidas ao céu, sentido de vitória                      
no tempo prolongado em tempo de milagre.





 
A MAGIA DO TEMPO
Entrou pela cancela de um dia aberto
de Primavera ao longe.
Mirou-se em espelho de água
linda de transparência.                                                               
Bebeu a luz sôfrega na magia do tempo
enfeitado de arco-íris a unir dois destinos.
Sonhou. Seu sonho azul de céu.
Seu acordar de mar.
Sonhou ainda mulher pele de menina.
Seu acordar de mar.

Construiu sentimentos e soltou-os ao vento
pela borda de um dia aberto
de Verão tão perto.
Atreveu-se a transformar histórias sem espaço
no espaço de uma história.

Deu de caras com a urgência.
Inventou a sorte e fez-se ao caminho.
Mesmo no centro da Vida, olhou ao redor
e descobriu que os seus mundos
eram sempre circulares.


                                                                               
 CORPO DE LUZ

E as árvores escoando o sol quente
pelos ramos de Verão.
E os frutos maduros num convite
lábios carnudos de prazer contido.
E um corpo de luz dolente
tombando sobre a tarde.
Ouvidos alerta, os olhos num clarão.
Contornos gravados pela mão
o braço caído ao longo
da pele de fogo.
Mesmo defronte, um vulto:
um deus de pedra nu
elevando-se das águas.
Quase um sopro, quase um grito
quase gente.



               

Todos estes poemas,
in "Uma Palavra"
de Aurora Simões de Matos, 2001
Edições Sagesse - Palimage






sexta-feira, 22 de junho de 2012

AMIGOS E AMIZADES

AMIZADES

"Um Amigo faz-se rapidamente; já a Amizade é um fruto que amadurece lentamente."
                             Aristóteles

"Pode ser que um dia nos afastemos... mas, se formos amigos de verdade, a amizade nos reaproximará."
                             Albert Einstein


"Para conhecermos os amigos, é necessário passar pelo sucesso e pela desgraça. No sucesso, verificamos a quantidade  e, na desgraça, a qualidade."
                                                                                                                         Confúcio

HOMENAGEM AOS MEUS AMIGOS

Sem dúvida que um dos sentimentos mais sublimes que o ser humano pode gerar é a Amizade por outro ser humano.
Amizade!
Para muitos (para mim também) um bálsamo que não se dispensa. Lugar de regozijo pelos êxitos da vida. Refúgio acolhedor nas tensões mais dramáticas. Espaço de partilha. Sempre... um cruzar de emoções.
Quem é capaz de viver sem aquele abraço largo ou apertado em que se soltam alegrias e raivas? Aquela troca de olhares que dispensam palavras? Aquela mensagem de cumplicidade sem margens? Aquele ombro em que se choram as dores? Aquele sorriso sereno onde se depositam segredos? Aquela leitura de sinais que ninguém mais sabe entender? Aquele coração sempre aberto às nossas vitórias e aos nossos fracassos? Aquela gargalhada ou aquela lágrima partilhadas no intimismo de um sentimento?
Não é fácil conquistar uma Amizade que valha a pena. Pela disponibilidade. Pela compreensão. Pela tolerância. Pela aceitação do outro, com a carga de contradições que inevitavelmente existe em cada ser. Por esse laço superior que se chama lealdade.
Depois de conquistar-se uma Amizade, não é fácil mantê-la com saúde. É como o Amor. Necessário alimentá-la. Principalmente com a tal lealdade. Que se faz de presença. Que se faz de interesses em que não entra (não pode entrar) a intenção do lucro. De interesses alicerçados no desinteresse. Que se faz de palavras. E muitas vezes de silêncios. Mas sempre, sempre, de presença. Muitas vezes, pela presença subtil de um pensamento. Muitas vezes, pela presença subtil de uma intenção. Que pensamento e intenção podem ser forte presença. Como todos sabemos. É uma questão de confiança.
Pessoalmente, tenho a sorte de, ao longo dos anos, ter conquistado boas e fortes Amizades. Todas diferentes. Todas iguais. Dispersas pelo tempo e pelo espaço. Sempre presentes. Cada uma à sua maneira. Não seria eu a mesma pessoa, sem os alicerces de vida que elas me ajudaram a consolidar. Não seria eu a mesma pessoa, sem o espaço que cada uma me abre no seu coração. Muito. Eu sei. Eu sinto-o. Por isso, hoje, e desta forma também, uma Homenagem aos meus Amigos.


Apenas alguns dentre os melhores  ( 2012)




Quando a Amizade se confunde com o Amor de (a) meus irmãos


              Confidências

Vieste na bruma da manhã tranquila
cheirava a maresia na praia deserta
cada ser um ser, mistério insondável
pobreza e riqueza incomensurável
dum livro a ler, em página aberta...

Vieste na bruma da névoa perdida
cheirava a maresia na praia molhada
marcaras encontro com imagens vividas
fizeste leituras de folhas já lidas
"Confidências" - Alves Cardoso
em recordações de outra madrugada...

Vieste da aragem perdida no tempo
na praia molhada cheirava a maresia
trazias saudades de muitas lonjuras
retratos de vida em lindas molduras
presentes com laços feitos de poesia...

Cheirava a maresia na praia molhada
vieste do tempo perdido na aragem
trazias notícias longínquas de mundos
onde deambulam sonhos vagabundos
peregrina errante, constante viagem...

Vieste na bruma da manhã tranquila
frente ao mar deserto, na imensidade
gotícula de água na aragem perdida
foi o teu segredo pedindo guarida
na busca da minha cumplicidade...

Voragem das horas no tempo encontrado
na praia deserta cheirava a maresia
encontraste o eco da tua mensagem
num outro segredo, em outra linguagem
e nossa Amizade dobrou nesse dia...

Aurora Simões de Matos
(in Poentes de mar e serra)



Nota: Este e outros poemas sobre a Amizade podem ser ouvidos no programa 24 de "Quando o verso se desfolha" - Momento de Poesia, de que sou autora e apresentadora, na Rádio Clube de Lamego - emissão online, também em homenagem aos meus amigos. Pesquise no Google em Aurora Simões de Matos.


segunda-feira, 18 de junho de 2012

D. ANTÓNIA FERREIRA, UMA DAS VOZES MAIS FASCINANTES DE SEMPRE, NESTE DOURO VINHATEIRO


FERREIRINHA - A VOZ DE UMA LENDA”

                                                           

A VOZ DE UMA LENDA

Desde sempre me senti fascinada por uma das Vozes maiores deste Douro, que lhe ofereceu e a quem ofereceu a razão e o sentir de uma vida ímpar, perpetuada na intemporalidade de forças, convicções, ideais e sensibilidades que a transformaram na Figura quase lendária em que o mito, de mãos dadas com a História, paira ainda nas águas e nas margens deste rio que a viu nascer, assistindo ao crescer e ao pulsar de um percurso impetuoso, com rasgos de heróico desassombro. Deste rio que a viu morrer.

Do Douro e para o Douro, a Voz da “Ferreirinha” emerge em fragilidades e forças misteriosas, a repercutirem a fidalguia e a ruralidade de uma região em que a Mulher, por força de todas as circunstâncias, pode ainda e sempre rever-se na coragem, na persistência e na generosidade desta grande senhora. Na humilde altivez de quem, vencendo pequenas e grandes barreiras, se impôs ao respeito, à admiração e ao carinho dos grandes nomes e das gentes mais ignoradas. Na independência de quem, desafiando todos os preconceitos, se impôs pela agudez da inteligência, pelo desassombro de atitudes, pela audácia de actos que marcaram uma época. Na defesa de valores ancestrais, como a multiplicação do património, a solidariedade para com os desprotegidos, a coesão da família, a delicadeza de sentimentos. Mas também a coerência de um carácter moldado ao arrepio de todas as convenções.



Antónia Adelaide Ferreira nasceu em 1811. Descendente de abastados proprietários do Douro, foi muito devido à sua iniciativa empreendedora que esta região se cobriu de cepas em vastíssimas extensões e que o vinho do Porto levou a todo o mundo o nome de Portugal, em sabores e aromas inconfundíveis. Nas suas vinte e cinco quintas, desde Barqueiros até Barca de Alva, desbravou terrenos até aí incultos, ajardinou a paisagem de opulenta riqueza, abriu caminhos e estradas, construiu casas sólidas e luxuosas. Edifícios modelares, apoiados por grandes armazéns.
 Empregou mais de mil trabalhadores ao mesmo tempo. Nas suas quintas do Vesúvio, Travassos, Monte Meão, Mileu, Nogueiras, Granja, Valado, Boavista, Aciprestes, Vila Maior, etc., chegou a colher por ano 4000 pipas de vinho. Resultado da multiplicação dos bens que havia herdado da família. Resultado de colossais plantações e replantações quando, cerca de 1870, a filoxera trouxe a devastação e a tragédia às vinhas do Douro.

Casa da Quinta do Vesúvio (Olhares.pt)
Seu avô, José Bernardo Ferreira, era já homem de muitos haveres. Morreu fuzilado por soldados franceses durante uma patrulha, na terceira invasão, porque estes o tomaram por um seu desertor, devido ao primor com que falava a língua de Napoleão. Deixou três filhos: José Bernardo, pai de D. Antónia, António Bernardo e Francisco.

Dos três descendentes deste avô azarado, herdou a “Ferreirinha” o que cada um tinha de melhor. Se do tio mais velho, António, lhe veio o rasgo de génio e a enorme perícia para grandes golpes comerciais, que a transformariam num dos maiores vultos do mundo empresarial português, ao tio Francisco foi buscar a originalidade, a irreverência, o desapego a certos padrões vigentes. Mas foi o pai, José Bernardo, quem lhe legou a excepcional bondade.
Continuando a obra social que o seu progenitor vinha desenvolvendo no Douro, empenhou-se em actos de generosidade que lhe valeram a veneração do povo e o nome carinhoso de “Ferreirinha”. A sua acção está presente na construção dos hospitais da Régua, Lamego, Vila Real, Moncorvo, Misericórdias do Porto. E as Caldas do Moledo são obra sua. O balneário, as piscinas, o parque que compõem as termas tiveram a presença dos reis e da alta roda de Lisboa e Porto. O Palácio do Moledo foi construído, para D. Antónia receber El-Rei D. Luís.
Nas suas casas, espalhadas pelos quatro cantos do Douro, recebeu ilustres personalidades, figuras de Estado, altos dignitários da Corte, portugueses e estrangeiros da mais alta estirpe.


                                                            Barão de Forrester

Dentre eles, destaque para um britânico, o barão de Forrester, grande defensor da qualidade do vinho do Porto, a quem a Câmara do Peso da Régua declarou “Protector do Douro”. Mas o rio que ele tanto visitara, medira, desenhara, fotografara, estudara e amara, onde tanta vez navegara, causando, com o seu luxuoso rabelo, o deslumbramento e o espanto das gentes, matou-o tragicamente, durante um naufrágio, junto ao Cachão da Valeira. Assistiu ao desastre D. Antónia, que naufragou também, mas acabou por salvar-se.
A “Ferreirinha” e o barão de Forrester são duas das figuras mais importantes de sempre na região duriense. Pela força das suas personalidades, pelo rasgo dos seus génios, pelas suas lendárias aventuras.

O primeiro marido de D. Antónia,  primo direito António Bernardo Ferreira, filho de seu tio António, formou com ela um casal elegantíssimo, que fazia as delícias dos salões de festas de Lisboa e do Porto. Fez grandes obras na Quinta do Vesúvio, que causaram a admiração de quantos por ali passavam. Ausentava-se por grandes temporadas ao estrangeiro, entregue a hábitos de luxo e requintados prazeres, esbanjando grande parte da sua enorme fortuna, o que muito desgostava D. Antónia. Morreu em Paris, apenas com 32 anos, deixando a jovem viúva com dois filhos menores e o encargo de administrar, sozinha, a maior casa agrícola do Douro.

O segundo marido, Francisco José da Silva Torres, fora o seu principal procurador. Homem de bem, amigo fiel, sempre estivera a seu lado nos bons e nos maus momentos. Foi par do reino e amigo íntimo do rei D. Luís e de Fontes Pereira de Melo. Incansável no apoio à mulher, conseguiu, em 1865, a liberdade de comércio dos vinhos do Alto Douro, um sonho antigo da família Ferreira. Morreu em 1880.

Vinhas do Douro (Dourofotos)

D. Antónia, de novo viúva e só, continuou, mesmo em idade avançada, a gerir as suas empresas com um dinamismo excepcional, a espalhar caridade e promoção social. O povo venerava-a. Quando passava a sua carruagem, mesmo vazia, os camponeses, em sinal de respeito, tiravam o chapéu.
Morreu em 1896, aos 85 anos, na sua Casa das Nogueiras, rodeada pela família, a quem fora tão dedicada. A sua perda foi muito sentida, não só na região, como a nível nacional.

Dela se contam muitas histórias, umas verdadeiras, outras cheias de fantasia. Atribuem-se-lhe amores e desamores, romances e aventuras, dramas e brejeirices. Tudo isso, aliado ao facto de poucos se poderem gabar de ter tido com ela familiaridade, contribui para o adensar do mistério que a tornou numa das lendas mais vivas que paira sobre o Douro, onde, segundo os crédulos do fantástico, o seu espírito continua a vaguear por entre os bardos. Do Douro e para o Douro, a Voz da “Ferreirinha”.

***
POR MARIA D'ASSUNÇÃO,
 CONTRA O DUQUE DE SALDANHA

Pelas terras durienses
Caía a noite de breu
E a noite escura caiu
Também no coração seu
***
De encontro à alma apertava
A filha, com muito amor,
E pela noite fugiam
Aterradas de pavor
***
Mosteiro das Chagas - Lamego
(igogo.pt)
De Travassos ao Mosteiro
Muita lágrima chorou
E nas Chagas, em Lamego
Umas horas pernoitou
***
Dali a Vila Real
Disfarçada de campónia
Teve o apoio da gente
Que tanto amou D. Antónia
***
Sempre abraçada à filhinha
Por Maria d'Assunção
Soluçava a Ferreirinha
E não dava a sua mão
***
Sua mão tão pequenina
Pois onze anos teria
Queria o Duque Saldanha
Com seu filho casaria
***
Àquela hora, Travassos
Estaria já cercada
Pelos homens do Marechal
Que à força a queriam casada
***
Mas as duas, em burrinhos
Já a caminho de Espanha
Mãe e filha estavam salvas
Das mãos do Duque Saldanha
***
E para Londres seguiram
Para aí permanecer
Até Saldanha cair
E perder todo o poder
E Maria d'Assunção
Ter idade de escolher


Estas quadras muito simples, ao jeito da literatura de cordel tão vulgar no século XIX, bem podiam ter sido vendidas em folhetos, contando o drama que comoveu o País, ainda hoje nos enche de ternura e ilustra bem a fibra e a sensibilidade desta insigne Mulher capaz de desafiar os mais poderosos pelas suas convicções e sobretudo de, como qualquer mãe, expor a vida por sua filha.

São feitas desta raça as Mulheres do Douro, de quem a “Ferreirinha” é certamente um emblema, a guardar com o maior respeito e com o maior orgulho.


Aurora Simões de Matos
(Do livro "Vozes do Douro
Antologia de Textos Durienses" - 2004
Edição da Câmara Municipal de Lamego)

quinta-feira, 14 de junho de 2012

"Fios de teia" - Poema de Aurora Simões de Matos


*POENTES   DE   MAR   E   SERRA*



Fios de teia


Metade do meu ser cheirava a serra
metade do meu ser sabia a mar
Na verdade das águas e da terra
os ecos duma voz e dum olhar

Metade incendiada me aquecia
a outra parte era o meu tumulto
Todo o sistema solar num só dia
todo o fantasma nocturno num só vulto

Duas metades duma lua cheia
dois tons de sangue duma mesma veia
numa árvore de tronco esbelto e forte

Quem tentou os meus destinos separar
encontrou fios de teia a enlaçar
caminhos vários duma mesma sorte

Aurora Simões de Matos
Do livro "Poentes de mar e serra", 1997

                                                  
                                                                  ***

«Serra, mar, vozes e ritmos interiores vários são força geradora de quem, sem subterfúgios ou falso pudor, domina temas e recursos estéticos diversos, numa linguagem tão desenfatuada quanto musical, movimentando-se numa dinâmica lírica que a eleva ao pedestal dos verdadeiros poetas.
Tecida em imagens e frémitos singulares, Aurora Simões de Matos tem a poesia dentro de si. E deixa-a transbordar com a harmonia que transmite ao canto e ao dizer, com a força que lhe marca o querer e o sentir, com a exigência que impõe a todos os actos da vida,»


Fernando Marado, no Prefácio de " Poentes de mar e serra" - 1997

terça-feira, 12 de junho de 2012

A NOITE, COM SEUS MISTÉRIOS E CAPRICHOS

Caprichos da noite




Paula Rego - The Night Crow
"O corvo era muito mais negro
Do que a sombra da lua.
Tinha estrelas."

Ted Hughes, excerto de "Crowcolour",
in Crow, 1973

















Mansa, silenciosa e simples, a noite caía sobre a minha aldeia. Caíam sempre assim as noites da minha aldeia. Mansamente. Silenciosamente. Simplesmente caíam. Caíam com a naturalidade de quem cumpria a rotina de desdobrar o manto do sossego sobre a Terra.
Era assim há muitos anos, no tempo dos sorrisos da minha meninice. Que a minha meninice já não sorri há uns bons anos.
Só o assobio do pai, chamando a casa algum filho mais atrasado, cortava aquela brandura da noite dispersa por caminhos soltos de águas soltas em pedras macias, onde o luar reflectia sombras de duendes que povoavam lendas e historietas que meu avô sabia e salpicava de segredos e misteriosas encruzilhadas.

Pairava sobre a Terra uma intimidade aveludada, desde a hora a que o crepúsculo, transformando as coisas em vultos que a penumbra cobria de discrição, prenunciava o caminho à noite habitada de escuridões e de silêncios.
A brisa nocturna acordava rumores nos soutos e tapadas e despenteava com dormentes carícias as finas barbas das maçarocas nos milheirais, em cântico mítico apenas violado pelo agoiro do uivar de um lobo ou do piar de um mocho solitário.

E foi assim, sentindo a leveza do crepúsculo, a ambiguidade dos vultos, os cambiantes da escuridão e a fantasia que meu avô enchia de cumplicidades, que pela primeira vez me apercebi do fascínio, do mistério, das fragilidades e das forças da noite. Com os seus conformismos e os seus inconformismos. Com as suas tolerâncias e as suas implacabilidades. Com os seus torpores e preguiças, sonolências e quietudes. Com os seus romantismos e apelos ao sonho. Com as suas obscuridades e gestos demenciais.

A noite é a hora da solidão do pensamento, da solidão das palavras, dos corpos e dos espíritos, do despojamento dos atavios diurnos. E também das ratoeiras, dos precipícios e das obliquidades, da morbidez do lusco-fusco a coberto de forças ocultas nas horas mortas.

A noite é a hora a que, quando libertos das pressões do dia, nos remetemos à degustação demorada dos nossos triunfos ou ao remorso surdo das nossas incapacidades. Os sentidos refinam amores e ódios, conferindo novas dimensões aos sentimentos.

Pomo-nos em causa ao avaliarmos e reavaliarmos os nossos actos à luz de emoções com uma identidade tão especial, que nos faz parecer tudo mais belo e romântico, misteriosamente espiritual. Ou então mais pesado, irremediável e redutor. Tudo dependendo da leveza da sombra ou da carga de negritude que em cada dia desenvolvermos no nosso ser.





Segundo as escolhas ou as circunstâncias do viver de cada um, o ritmo biológico de cada vez mais gente é alterado, em função daquilo que se entende por progressão social, profissional, económica, política.
Cada vez mais, a noite é a opção assumida para palco de interesses conscientes da supervalorização das coisas vistas de uma qualquer perspectiva, desde que focalizadas pelas luzes da ribalta. Então, reinventam-se os tais atavios, que atingem os limites da hipersofisticação, na selecção do que cada qual pensa ser a qualidade e o bom gosto.

A noite permite-nos a abertura do pensamento e da imaginação a estas e outras cogitações, que me levam a concluir que, nela, nada tem voz neutra.




E embora sendo por excelência a inspiradora do poeta, possa ser também a inspiradora do crime, nunca, pessoalmente, desisti de me deixar seduzir por aquele crepúsculo que oferece aos seres uma penumbra de discrição e me permite mergulhar no mundo dos mistérios, das solidões, dos misticismos, dos silêncios, dos sonhos, das fantasias e dos duendes de que meu avô falava e salpicava de segredos e saborosas encruzilhadas.

Continuo sobretudo a fazer o apologismo da noite como o manto de sossego que, no tempo em que sorria a minha meninice, se desdobrava e caía sobre a aldeia. Mansamente. Silenciosamente. Simplesmente caía, num convite ao retemperar de forças, através das várias fases do sono. Que, segundo dizem os entendidos, é ainda e sempre o grande momento dos sonhos.



A noite é, claramente, espaço de contradições. Saber aceitar ou contornar os seus caprichos é, como sempre foi, exercício para adultos.



                                                               Aurora Simões de Matos








sexta-feira, 8 de junho de 2012

Apresento-vos a minha terra de xisto:
Meã, à beira-Paiva, freguesia de Parada de Ester, concelho de Castro Daire


Sinto saudades de ti
ó linda aldeia serrana
onde passeei meus sonhos
a meia-encosta do rio
Parada de Ester e Meã, estendidas na falda do Montemuro


Meã - Panorâmica do Povo de Cima


Meã - Panorâmica do Povo de Baixo, onde nasci


       Terra amiga
Puros são os ares e puras são as gentes
e a água cristalina que brota do teu ventre,
Terra amiga…
Há tanto tempo te conheço assim,
presépio do meu imaginário
tornado intemporal…
É o mesmo cheiro a urze e a giesta,
a mesma a carqueja da Portela
e o som dos grilos,
ensaiando a mesma serenata.
A fonte lá está ainda,
perpetuando o murmúrio da frescura
e a canção que embalou as gerações
com amores telúricos
que as tuas entranhas
não se cansam de ofertar…
Generosa és, terra abençoada por Deus!
O espírito das coisas paira
nos teus perfumes e sonoridades,
na luz que torna mais lindas tuas cores,
no borbulhar da vida simples
que a Natureza te reserva.
Ouve meu pedido, terra amiga:
- Não deixes que adulterem tua essência
com brilhos duvidosos…
Não deixes que te disfarcem
com vestes
de estilistas que não te conhecem as medidas
nem sabem que há fibras e texturas
que não combinam com a cor do teu cabelo negro
nem com a transparência dos teus olhos verdes…
Não deixes que a erosão do artifício
violente a virgindade das tuas pedras…
Ouve meu pedido, terra amiga:
- Conserva a simplicidade
e a pureza dos teus dons
que procuro e encontro sempre,
quando estou cansada
da busca inglória da autenticidade,
em lonjuras onde a erosão do artifício
violentou a virgindade das coisas todas!

Aurora Simões de Matos
Do livro Imagens da beira-Paiva  (2010)

terça-feira, 5 de junho de 2012

CORPO DE ÁGUA

Nasci perto do rio e do rio herdei
o corpo que não domino, porque é
feito de água. Na profundidade do
meu corpo podem descobrir-se os
corpos de meus pais e meus avós.
Eles ensinaram-me a lidar com a
harmonia e a desarmonia que supreende
cada impulso do meu conhecimento e
ajudam-me a aceitar os limites do
gesto onde começam as margens da
água e das palavras que nela sepenteiam.
Há uma explicação para tudo e, quando a
não encontro, interrogo-me no rosto deles.
Sei que preciso de vencer barreiras e é
nelas que tanto me debruço. Às vezes sou
arrastada pela corrente que brota das
entranhas onde acordam forças desconhecidas.
Encontro depois novos limites, que podem
bem ser a proximidade de outro rio.

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RIO ERMO

Meu ser é um rio ermo
com margens inacessíveis
de altas escarpas.

Há tempestades
e há remansos
e remoinhos
em minhas águas.

                            Aurora Simões de Matos