quinta-feira, 31 de janeiro de 2013






Museu Maria da Fontinha




Um Museu de Sentimentos










A Casa-Museu, agora Museu Maria da Fontinha, situa-se em Além- do- Rio, Gafanhão, Castro Daire e foi fundada por Arménio Vasconcelos e inaugurada a 5 de Agosto de 1984, pelo então Presidente da República, General Ramalho Eanes, com a presença do Ministro da Cultura, Embaixadores do Brasil, da Espanha e centenas de outras individualidades.

Tem hoje uma colecção de mais de 4500 peças, distribuídas pelos campos da pintura, escultura, etnografia, alfaias agrícolas e automóveis antigos e clássicos.

Em exposição e em reserva, contam-se alguns dos mais insignes Artistas portugueses, brasileiros, espanhóis, argentinos, franceses, malawianos, alemães, italianos, etc.

Ao longo dos seus 25 anos de existência, que comemorou no dia 8 de Agosto de 2009, com a passagem a Museu, tem recebido variadíssimas condecorações e galardões de entidades brasileiras e portuguesas que exercem acções no campo da cultura, dezenas de honrarias, de onde sobressai uma Moção de Congratulação e Louvor da Câmara Municipal do Rio de Janeiro.

Ali se localiza o núcleo central do recém - criado «Museu Territorial do Vale da Paiva e Serras», que engloba cerca de 50 pólos culturais e de interesse, distribuídos pelos concelhos de Vila Nova de Paiva, Castro Daire, S. Pedro do Sul e Arouca, em espaços ligados à Paiva e às serras que a beijam de onde se destacam patrimónios paisagísticos, artísticos, arquitectónicos, históricos, religiosos, geológicos, arqueológicos, musicais, etnográficos e gastronómicos.

Pela importância, riqueza e diversidade dos« patrimónios tangíveis e intangíveis »desta região, a musealização do Vale da Paiva e Serras representará um grande passo para o reconhecimento e valorização da sua identidade, visando um maior desenvolvimento pelo turismo sustentável e a consequente melhoria nas condições de vida das populações.

O Museu foi fundado por Arménio Vasconcelos, em homenagem a sua avó, Maria do Carmo Rosário, a Maria da Fontinha, que em Além- do- Rio viveu cerca de 50 anos e que ali foi sepultada, depois de trasladada do Rio de Janeiro, onde faleceu em 1970.










No espaço envolvente ao edifício principal, podemos visitar o Parque da Fontinha, com o Chafariz Quinhentista, relíquia de Castro Daire; a Capela construída em 1982, no local onde Maria de Fontinha muitas vezes rezava ao toque das Trindades e de que é Orago Nossa Senhora do Carmo, que a mesma venerava; o Auditório Memorial José Vasconcelos, salão polivalente todo construído em xisto e carvalho, materiais nobres da região, com cerca de 300 metros quadrados, dotado de 250 cadeiras, palco e camarim, onde se realizam cerimónias, exposições, récitas, espectáculos musicais e de teatro e onde está sempre patente uma exposição temporária, renovada mensalmente; o Lago dos Peixes; a Escolinha do Professor Ricoca, em homenagem aos professores do ensino primário e decorada com mobiliário e muitos outros objectos usados nas escolas, nas décadas de 40 e 50 do século passado; o Quarto onde figuram dezenas de peças de etnografia pertencentes e usadas pela patrona do Museu; o Mausoléu de Maria da Fontinha, ricamente contruído em granito e onde, num sarcófago artístico, rodeado de várias peças assinadas por Artistas consagrados, se encontram os seus restos mortais, assim como os de seu filho, genro e neto; e muitos outros espaços de grande beleza, onde se pressente a enorme sensibilidade, a riqueza de carácter e a vastíssima cultura de Arménio Vasconcelos, que ali nasceu também.

No Auditório José Vasconcelos foi criada, no passado dia 8 de Agosto e com a presença de altas entidades ligadas à Administração e à Cultura de onde se destacava uma grande embaixada do Brasil, a Academia de Letras e Artes Lusófonas- ACLAL, com o apoio de cerca de seis centenas de membros fundadores, residentes nos oito países da Lusofonia. Foi um momento de grande solenidade e de grande significado, em que foi revelada a primeira acção da nova Academia - levar o apoio ao ensino da Língua Portuguesa à região de Margão, na longínqua Índia.

O facto de a ACLAL ter aqui a sua sede reveste-se de grande importância para a região e enche-nos de orgulho. Doravante, através desta Academia, a nossa terra será certamente mencionada vezes sem conta pelos diversos «longes» da Lusofonia e receberá a visita de grandes nomes e de grandes cargos ligados à Cultura Portuguesa espalhada pelo Mundo.

Todas as acções levadas a cabo pelo Museu Maria da Fontinha ficam a dever-se ao dinamismo, ao empenho, ao saber e à capacidade de sonhar do seu fundador e director.

Arménio dos Santos Vasconcelos nasceu em Além- do- Rio, em 1942.

Aí passou parte da infância, na companhia de sua avó, Maria da Fontinha, que sobre ele exerceu grande influência e a quem, até hoje, está ligado por fortes laços de afecto.

Ainda criança, partiu com a mãe para o Brasil, ao encontro do pai, que para aquele país tinha emigrado. Aí viveu o resto da infância e grande parte da juventude. Aí regressou e regressa por muitas vezes. Aí conserva um sem - número de amigos e admiradores. Aí deixou um nome respeitado, muito particularmente em vários domínios da Cultura.

Não admira, pois, que considere o Brasil como sua segunda Pátria e que daí lhe cheguem todos os apoios afectivos.

Não admira, pois, que o Museu Maria da Fontinha possua o maior acervo do mundo, de artistas plásticos brasileiros, fora de território do Brasil.



ARMÉNIO VASCONCELOS


Licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra, Engenheiro Técnico Agrário, Empresário, Museólogo e Autor de vários livros, Arménio Vasconcelos é, em primeiro lugar, um Humanista e um grande POETA.

Foi distinguido, em 1993, com o Galardão do Município de Leiria, cidade onde tem residência.

É Comendador Grande - Oficial da Ordem do Mérito das Belas Artes do Brasil.

Foi-lhe atribuída a Medalha Tiradentes, o mais alto Galardão concedido pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e ainda a Medalha Jorge Amado, da União Brasileira de Escritores.

Cidadão Honorário do Município do Rio de Janeiro, Membro Honorário do Instituto Brasileiro de Cultura Hispânica e da Academia Brasileira da Literatura, o Fundador e Director do Museu Maria da Fontinha é ainda Académico « Honoris Causa» da Academia Brasileira de Belas Artes e possui muitas outras distinções que o elevam à dimensão dos grandes vultos da Lusofonia.



Tem dedicado grande parte da sua vida e do seu entusiasmo às causas da Cultura e nutre um especialíssimo carinho e orgulho pelas raízes de onde provém, instituindo prémios para estímulo dos que mais se distinguem nos diversos aspectos culturais da sua região de origem.

O Museu Maria da Fontinha e Arménio Vasconcelos são, com toda a justiça, símbolos maiores das tradições de um povo que, espalhando-se pelo mundo, sempre aqui regressa, no apego e na devoção de se sentir feliz «entre o tojo e a giesta, nestes carreiros pisados por heróis», nestes caminhos bordados de alecrim e rosmaninho, perdidos na Serra que se espelha em águas onde orgulhosamente nos miramos, em elevada auto- estima, à beira-Paiva




Aurora Simões de Matos

Do Livro  "Imagens da beira-Paiva "----2010  (em 2ª edição )

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

NA LADEIRA

Em Parada de Ester


POEMA








Eu quero ser enterrada na ladeira
Onde me vejam os montes que eu amei,
Onde me chorem as pedras que chorei
Ao som das mágoas de uma vida inteira.


Perto da estrada das minhas mil passagens,
Que sinta que passei mas que fiquei
Para passar mil outras mais viagens,
Companhia de quantos não deixei.


Quero a queiró e a urze em meu redor,
Perfumando meu sono com o amor
Com que na vida vivi minha saudade.


Na ladeira virada para o rio
Onde meu corpo sossegado e frio,
Enfim em paz, goze a eternidade.


                                           Aurora Simões de Matos






Do livro POENTES DE MAR E SERRA (1997)



















quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

NEVE NO MONTEMURO
 
 
 POEMA
 
 
AMORTALHADO
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
É o Montemuro branco amortalhado
silêncio pesado que lhe cobre o corpo
no frio parado que lhe esconde o rosto
na grandeza austera do céu transbordado.
 
 
 
É a serra inerte de alma despojada
na distância em flancos cobertos de alvuras
onde o som que corta o ar das alturas
me zurze de invernos a boca gelada.
 
 
 
É a cor do frio no tempo parado
de corgos que choram murmúrios de dor
nas pedras que calam sua voz de amor
ao êxtase branco do amortalhado.
 
 
 
 
Aurora Simões de Matos

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013


Mudam-se os tempos



A crise económica internacional, que se vem acentuando nos últimos anos, tem levado a medidas restritivas nos países de destino dos nossos emigrantes, tendo afectado, de forma mais ou menos drástica, o quotidiano de todos aqueles que procuram, longe da pátria, a realização pessoal, profissional e social, que dê sentido satisfatório a um percurso de vida que ambicionam com a maior estabilidade possível.


Sendo assim, uma boa parte das gentes da beira- Paiva, em movimentos migratórios internos, facilitados por uma rede cada vez mais alargada de estradas e servidos por uma razoável rede de meios de transporte, procura, nos grandes centros urbanos portugueses, a satisfação para as legítimas necessidades de um viver mais desafogado, já que a agricultura e a pastorícia, os recursos económicos mais tradicionais da nossa terra, deixaram há muito de satisfazer as naturais ambições das novas gerações.

Todo este fenómeno, aliado à obrigatoriedade cada vez mais alargada da escolarização dos nossos jovens, pela demanda de mais saber e de um emprego economicamente mais rentável, e também ao actual baixo índice de nascimentos, tem levado ao declínio demográfico, que se traduz numa população cada vez mais envelhecida.



No entanto, o regresso às origens é sempre uma obrigação. O Natal, a Páscoa e principalmente os meses de Verão assistem ao retorno dos que partiram. Carregados de saudades, de mimos e presentes para os que aqui deixaram e dos luxos possíveis transferidos de grandes centros de consumo, vão modificando a fisionomia e os modos de viver e de sentir desta região.

Trazem novos hábitos, novas experiências, novas exigências. Aprenderam por lá a competitividade que, naturalmente, passou a fazer parte das suas preocupações e que conduz a certa ostentação, exposta principalmente nos carros que conduzem, nas casas que constroem, nos electrodomésticos que usam, nos mobiliários com que recheiam as suas habitações.

Hoje, poucas serão as casas das nossas aldeias que não exibem um bom frigorífico, arca congeladora, aquecedor eléctrico, microondas e o indispensável televisor que nos aproxima do mundo.



De facto, a televisão entrou na vida de toda a gente, invadiu os seus tempos de lazer, faz agora parte dos seus serões, apresenta-lhe novas modas e novos valores.

O convívio dos homens na taberna, à porta da venda, no cafezinho intimista ao lado do minimercado, foi sofrendo alterações, ficando cada vez mais frouxo. Quase só o futebol consegue monopolizar atenções e alargar interesses que se querem partilhados com os vizinhos e os amigos. Quase só o futebol junta um razoável grupo para a discussão dos resultados. Pelo meio, a televisão.

O convívio das mulheres na fonte, nos lavadouros das poças e dos tanques, à saída da missa, nas feiras ou nos bailes, foi ficando cada vez mais desprendido de interesses e de afectos. Quase só as novelas despertam comentários que se querem partilhados com as vizinhas e com as amigas. Pelo meio, ainda e sempre, a televisão.

Com a chegada da televisão, dos telemóveis e da internet, foram dissipadas barreiras julgadas intransponíveis. As novas tecnologias estão aí, a revolucionar o quotidiano das populações. As seculares práticas comunitárias, instaladas desde tempos imemoriais, vão dando lugar ao individualismo da modernidade.

As gerações mais velhas, embaladas neste sonho de conforto e de progresso, de boamente aceitam as mudanças que possam facilitar um pouco os seus dias, desde sempre marcados pelo esforço duro e penoso.



Na prática, quase ninguém se apercebeu dos efeitos perversos desta mudança de atitudes e mentalidades. Naturalmente, as coisas foram acontecendo devagar e, quando se deu por isso, as crianças já não cultivavam práticas e linguagens, gestos, memórias e afectos que se julgavam imorredoiros. Tinham deixado de aprender, porque ninguém lho tinha ensinado nos longes das grandes cidades, o carinhoso respeito pelos nossos velhos, a quem já não recorrem para as aprendizagens da vida, com quem já não rezam as contas ao serão, a quem já não pedem a bênção pela manhã e antes de adormecerem. As nossas crianças e os nossos jovens foram perdendo o espírito genuíno que caracterizava a sua identidade e são agora, para o bem e para o mal, em tudo parecidos com os novos portugueses de todo o resto do país e do mundo.



A abertura dos ambientes outrora isolados aos novos meios de comunicação e de transporte, só pode ser encarada numa perspectiva de enriquecimento e desenvolvimento a todos os níveis. Estas regalias, até há pouco impensáveis para uns e esperadas com impaciência por muitos outros, serão por certo résteas do progresso que, com toda a justiça, chegam a estas paragens.

Difícil é prever até que ponto poderemos ainda preservar os sinais que nos distinguem como seres únicos que, respirando uma vitalidade muito própria, são capazes de se afirmar pelo mundo, sem todavia se desprenderem das raízes que os ligarão para sempre à sua terra.


(Texto escrito em 2010,antes da grave crise económica que tanto aflige o mundo)



Aurora Simões de Matos


quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

NAS FALDAS DO MONTEMURO



"AMOR SUBLIMADO"






A minha aldeia é linda, linda, linda
rendando a falda à bela Montemuro...

É meu passado à espera do futuro
neste presente que o não é ainda...





Morena, sensual, toda verdade
insinuando-se ao Paiva, sedutora
escondendo a inocência encantadora
num jogo lindo de cumplicidade
entre férteis lameiros, milheirais
caminhos soltos onde a água corre
e o sol que a abrasa numa oferta
a que o rio não resiste mais
e em arquejos de amor como quem morre
lhe cai aos pés numa paixão aberta...





E assim vivendo, em plena doação
se complementam, na doce magia
suprema dum amor todo alegria
que não lhes cabe sequer no coração
e transbordando para além de si
inunda os montes, as pedras, os caminhos
o sol, o céu, ventos e ribeirinhos
como se o mundo fosse todo ali...

Passam as vidas para além dos tempos
passam os tempos além das ideias
e o rio... sempre na mesma pureza
de um amor sublimado em sentimentos
que oferece à mais pura das aldeias
que só nele mira sua eterna beleza...






        Aurora Simões de Matos




quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

COM MIGUEL TORGA
Tertúlia Literária do Hotel Lamego
08/12/2012




LEITURA DO POEMA "SÃO LEONARDO DE GALAFURA"




MEDALHA MIGUEL TORGA







DIPLOMA DO CENTENÁRIO DE MIGUEL TORGA,da Federação das Academias de Letras do Rio de Janeiro e da Academia de Letras e Artes Lusófonas





MEDALHA MIGUEL TORGA,que recebi com o maior orgulho





Poema escrito e lido pelo Presidente da Academia de Letras e Artes Lusófonas e Representante em Portugal da Federação das Academias de Letras do Rio de Janeiro,no momento da imposição da Medalha Miguel Torga


TAMBÉM EU
(Resposta a Miguel Torga)


Sei de um monte, sei de um rio,
sei de um barco a navegar,
sei duas margens de um corpo
onde é fatal descansar.
Sei da nuvem, sei da chuva,
sei da mágoa de esperar
por um abraço perdido
que ligou a serra ao mar.
Sei da rede e da jangada,
olhos, ventre a desflorar,
louca ânsia na corrente,
aflição de desejar
que não contarei, não digo,
porque o que sei é comigo.


                             Aurora Simões de Matos 

...........................................























Sei um ninho
[poema de Torga que me inspirou o poema Também eu]



Sei um ninho.
E o ninho tem um ovo.
E o ovo, redondinho,
Tem lá dentro um passarinho
Novo.

Mas escusam de me tentar:
Nem o tiro, nem o ensino.
Quero ser um bom menino
E guardar
Este segredo comigo.
E ter depois um amigo
Que faça o pino
A voar...


                                  Miguel Torga

sábado, 5 de janeiro de 2013


POEMA

EM JEITO DE MULHER





EM JEITO DE MULHER

De braços nus,em jeito de mulher,
a árvore estende ao céu uma oração,
ou um apelo,um grito.


Só a raiz sobreviveu à chuva,
tudo o resto foi nas bátegas do vento.

A estação fria cobre de gemidos 
os gestos dos caminhos
por onde as aves calaram seu canto.

Aurora Simões de Matos


quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Ti Ermelinda


Ti Ermelinda do Alhões, uma heroína sem nome





Parada de Ester,onde nasceu,viveu e morreu a heroína desta história verídica
Deixou-nos pelo Natal de 1984





Há pessoas que passam pelas nossas vidas e deixam para sempre a marca da sua personalidade, da sua maneira de estar e de sentir, do modo como foram capazes de se agigantar perante as dificuldades decerto intransponíveis para a maioria dos mortais.

A história que hoje quero recordar é a história de uma heroína da minha infância. Tão comum e simultaneamente tão fora de série, que ainda hoje, passadas mais de cinco décadas de a ter conhecido e com ela ter convivido, pasmo de admiração e de respeito pela força quase sobre-humana que a caracterizava, pela invulgar capacidade de gerir os recursos de que dispunha, sem temor em desafiar a resistência física, labutando arduamente, numa organização do trabalho tão bem estruturada, que o tempo lhe dava para tudo. Inexplicavelmente.

Sei que Ti Ermelinda do Alhões continua a ser recordada por todos os que a conheceram, como uma grande Mulher, grande esposa e grande mãe, dona de casa, agricultora, moleira, cozinheira, merceeira, mãe dos pobres e muito mais. Tudo em grande muito grande.



Nasceu em Parada de Ester, em 1902 e sempre aí viveu. Casada com António da Costa, o primeiro motorista de táxi da terra, não podia contar com ele para a imensa labuta do dia-a-dia.

Teve doze filhos, nove rapazes e três raparigas, que criou com fartura e em ambiente são e feliz.

Muito alegre, bem-disposta e desembaraçada, de figura meã e anafada, recordo-a quase sempre de lenço em triângulo, com as pontas dobradas no alto da cabeça, avental apertado abaixo do ventre a repuxar a saia para cima, sempre de mangas arregaçadas.

Falava alto para bem se fazer ouvir e a sua expressão mais repetida, nas mais variadas situações e intenções, era: «Ai cessa ali! Cessa ali, diabo!»

Habitava com a família numa grande casa caiada de branco, ao cabo da Feira, em Parada. Com os três criados que ali viviam também e a ajudavam na lavoura, eram dezoito pessoas à mesa, diariamente, a cada refeição. Por isso, tinha que cozer o pão no forno de lenha, dia sim, dia não. Eram sempre quinze broas. Caldo de feijão havia sempre, forte e de sustento, para os seus e para quem a procurasse para matar a fome. Que nunca deixava um pobre sem esmola ou com a barriga vazia. O Amadeu do Pobre, o Augusto da Corredoira e a Ti Maria de Covas do Monte eram visitas assíduas da sua porta e da sua generosidade.



Quando chegava a casa, exausta, dos lameiros ou dos moinhos e tinha que preparar o jantar ou a ceia para a família, era outra epopeia, penosa e sempre repetida. A batata, o feijão, os legumes frescos e as hortaliças, a carne de porco ou de frango, em pequenas quantidades, o bacalhau, o chicharro, a sardinha e os ovos eram a base de uma alimentação saudável e abundante. As bogas da Paiva eram um luxo e um mimo. Em dias de festa, não faltava o cabrito recheado. O tempero privilegiado era o azeite puro de oliveira. De vez em quando, um pouco de unto ou de manteiga de porco. E assim Ti Ermelinda usava, sem o saber, a hoje tão defendida “ dieta mediterrânica”.

Um dia, estando eu naquela cozinha de enormes panelas de ferro à volta da lareira, olhei impressionada o seu rosto ofegante e cansado, coberto de mil gotinhas de suor, enquanto enchia uma enorme sertã colocada em cima das trempes, com batatas grosseiramente cortadas às rodelas, mesmo com a casca (não havia tempo para mais) e que a seguir polvilhou de sal e fritou em azeite.

-Queres comer, pequena?    

Aceitei com gulodice de criança e ainda hoje aquelas batatas fritas com casca me sabem bem. «Ai cessa ali!»

Mas era nos dias de feira, dias doze de cada mês, quando os terrenos circundantes se enchiam de feirantes que compravam ou vendiam os produtos de toda aquela região, que Ti Ermelinda mais esmerava na cozinha. O caldo de feijão branco, a massa com fressura de cabra, a carne da mesma assada em forno de lenha com o respectivo arroz, eram os pratos confeccionados e servidos aos fregueses sentados em grandes bancos corridos. Os aromas que enchiam os ares ajudavam a criar atmosferas que não se esquecem nunca.

Poucas cozinheiras tinham mão como ela para aquele tempero, para aquele molho do assado da carne, carne de cabra, sempre. Os cabritos, esses eram para vender, assim como o eram os vitelos.

As vacas, duas juntas delas, ajudavam no trabalho das terras, algumas bem distantes de casa, em Eiriz, Ester ou à borda da Paiva. Atreladas aos respectivos carros de madeira de grandes rodas, faziam o transporte dos produtos dos campos, dos estrumes, dos adubos, das lenhas. Atreladas ao arado ou à charrua, lavravam os campos, preparando-os para as sementeiras.

Trazia quase sempre gente de fora a trabalhar nos seus terrenos, mas era ela quem, além de participar em toda a lida, orientava o pessoal com a garra e o saber de uma verdadeira líder. Mais tarde, um dos filhos, o Tiago, tomou ele a seu cargo toda a orientação na labuta da lavoura, já com alguns dos irmãos perfeitamente integrados neste esquema de rigorosa partilha de tarefas e de verdadeiro empenho numa equilibrada economia de subsistência. Que à mesa eram dezoito a cada refeição.

Numa das várias cortes agregadas ao núcleo habitacional, vivia um burro. Seria uma mais-valia no transporte das taleigas, uma vez que, nos seus dois moinhos, eram transformados em farinha o trigo e o milho do pão que comia grande parte da freguesia: Parada, Mós, Eiriz, Ester.





Os moinhos constituíam um recurso económico de grande importância, já que Ti Ermelinda arrecadava a maquia de um décimo no peso da farinha em cada saco de cereal. Mas não deixava de ser uma tarefa penosa, cansativa e até perigosa. Muitas vezes, em ocasiões de maior azáfama nos moinhos, como na Páscoa, em que toda a gente cozia grandes fornadas de trigo de ovos quase ao mesmo tempo, era necessário ir aos moinhos de noite ou mesmo dormir lá. Nessas situações, costumava levar consigo três dos filhos, sempre três. Prestar-lhe-iam ajuda, protecção e segurança.

Os filhos foram crescendo, fortes e saudáveis. Todos frequentaram a escola e fizeram a quarta classe. Quando podiam, iam à missa e à catequese. Todos fizeram a Primeira Comunhão. Pelo exemplo de trabalho e honestidade de seus pais, pela exigência da educação que esta verdadeira matriarca lhes transmitiu com carinho mas também com mão-de-ferro, todos se tornaram pessoas de bem e eram o seu orgulho.




Ti Ermelinda era católica, mas uma vida tão cheia de obrigações e de canseiras deixava-lhe pouco tempo para as práticas religiosas. No entanto, quando podia, ia à missa aos domingos e gostava de participar nas procissões e cortejos em dias de festa na Igreja. Nessas cerimónias, a sua voz enchia os ares de cânticos e orações.

Gostava de cantar nas vessadas e nas ceifas e de cantarolar enquanto no tanque lavava a roupa de tanta gente.

Juntava os lençóis de linho, do linho cultivado, tascado, maçado e fiado por suas mãos. Os lençóis de linho e os comprados na feira, as toalhas e outras roupas claras, como as camisas suadas dos seus rapazes, eram lavadas com sabão, estendidas em grandes coradoiros ao sol e molhadas de vez em quando com a água de grandes regadores de latão. As que teimassem no encardimento iam à barrela.

A barrela era feita a cada quinzena. Em grandes cortiços cilíndricos, a roupa era posta de molho em sabão e água morna. Passadas umas boas horas, a água era substituída por outra bem quente a ferver e a roupa coberta de cinza. Assim ficava por um ou dois dias e a seguir era lavada no tanque. Branquinha e bem cheirosa.




Os cobertores e as mantas de tiras usadas nas camas eram, uma vez por ano, lavadas na Paiva. Eram dias diferentes, cheios de cor e movimento, as mulheres de pulso metidas no rio em lugares estratégicos de grandes lavadouros, as margens armadas em estendais improvisados. Dias de árduo esforço e sempre de muita alegria.

Toda a roupa era bem esticada antes de ser estendida, pois não havia hipótese de tempo para a passar a ferro.




Ti Ermelinda do Alhões faleceu em 1984, com oitenta e dois anos de idade. Acabou de repente, pelo Natal, estava à janela a escolher os feijões para o caldo. Como se tivesse pressa de um descanso merecido. Como se, nessa pressa, procurasse ainda tempo para uma despedida, daquela janela de onde podia avistar o seu mundo, o mundo onde, pelo qual e para o qual vivera. Como se quisesse, num último esforço, morrer ainda a trabalhar.

Será sempre recordada com saudade e um misto de admiração e de respeito. O seu nome continuará a ser uma referência importante em toda a freguesia de Parada de Ester. Durante décadas, ela moeu o pão de quase todos nós, cozinhou os petiscos que tantos de nós saborearam, deu-nos exemplos de trabalho e de honestidade, espalhou o bem e consolou os pobres, inundou os ares com as suas risadas sadias, deixou-nos o seu inconfundível «ai cessa ali!».

Ti Ermelinda do Alhões é, sem dúvida, uma grande heroína, o expoente máximo das heroínas sem nome, que são as Mulheres da beira-Paiva.


Aurora Simões de Matos

in Imagens da Beira Paiva