sexta-feira, 26 de outubro de 2012

IGREJA PAROQUIAL DE PARADA DE ESTER

Igreja Paroquial de Parada de Ester

Castro Daire

TEXTO COM GALERIA DE FOTOS












Ao passar na Estrada Nacional que atravessa a nossa terra, por entre vegetação de árvores e arbustos variados, o viajante é surpreendido pela bela e sugestiva torre da Igreja de Parada, a anunciar que, a partir dali, de onde se avistam montes sem fim, românticas aldeias cercadas de pinheirais e seus campos sempre verdes a fazer adivinhar o rio, a Matriz se impõe, com a carismática força daquilo que representa. Que, a partir dali, no meio dos seus, terá, como desde há séculos tem, uma palavra a dizer, por um sentido de vida tão comum e tão arreigado na grande maioria dos habitantes destes lugares estendidos nas encostas.





Pelas ruas empedradas de íngremes caminhos, os paradenses sabem que todos os destinos vão dar à sua Igreja Paroquial, onde gerações após gerações têm cumprido os rituais do Catolicismo, a religião abrangente de praticamente toda esta região. Sabem-no os paradenses e sabe-o toda a freguesia. Por isso, em cerimónias sempre solenes, como as Eucaristias dominicais, baptizados, confissões, comunhões, sermões, casamentos, festas ao padroeiro, funerais, etc., ocasiões sempre especiais na vida de cada um, é ali que se expressam boa parte dos sentimentos da beira- Paiva.


A paróquia de Parada de Ester pertence à Diocese de Lamego e é seu Orago S. João Baptista. Em tempos remotos, foi Abadia do padroado real, no distrito eclesiástico do Douro. Já nas Inquirições de 1258, reinado de D. Afonso III, há informação de que a Igreja estava situada numa herdade do rei. Também do século XIV há documentos que se lhe referem. E no século XVII, são mencionadas as capelas de S. Pedro, em Parada; Santa Comba, em Eiriz; Santa Catarina, em Mós; e S. Bartolomeu, em Meã, como sendo de fundação medieval. Não admira, pois, que o nosso património religioso e artístico, traduzido em construções antiquíssimas e valiosas peças de arte, quer de escultura em pedra, quer de escultura em madeira, assim como a riqueza das suas talhas douradas e policromadas, seja um hino do nosso orgulho.




A Igreja Paroquial foi sofrendo, ao longo dos séculos, profundas obras de remodelação. A presente construção data do século XVIII. São belíssimos os seus caixotões com santos pintados a forrar o tecto; o arco triunfal a pleno centro, policromado; o retábulo principal e os laterais em talha barroca dourada e policromada; o coro- alto em madeira policromada com varanda de balaústres. No corpo da nave, o pavimento de madeira, com a sequência de sepulturas numeradas.



Já no exterior, do lado esquerdo da entrada, figura agora um busto de bronze sobre base de granito polido, homenagem da Freguesia de Parada e da Câmara de Castro Daire ao ilustre Bispo D. João Crisóstomo Gomes de Almeida, natural e por muitos anos residente em Eiriz e Figura relevante da nossa região.




A Igreja Matriz de Parada de Ester constitui um dos cerca de 50 núcleos museológicos de interesse turístico, do «Museu Territorial do Vale da Paiva e Serras», proposto por Arménio Vasconcelos, do Museu Maria da Fontinha.

A nossa Igreja faz parte das nossas vidas, com a carismática força daquilo que representa. A partir dali, de onde se avistam horizontes sem fim, e surpreendendo o viajante com a sua romântica torre branca, estende o olhar e a sua acção pelos íngremes ou aplanados caminhos que atravessam as terras da beira- Paiva.


                  Aurora Simões de Matos

Do livro "Imagens da beira-Paiva"-------2ª edição em 2011


Galeria de Fotos da Igreja Paroquial de Parada de Ester

(gentilmente cedidas pela Paróquia )









 










 




 
                                                  








 



sexta-feira, 19 de outubro de 2012



BIOGRAFIA ROMANCEADA DE
MARIA DO CÉU TRINDADE




A SOBREVIVENTE



Não lhe bastou um século para viver tanto amor e tanta dor
(Nasceu a 5 de Dezembro de 1902 e vive há 25 anos no Lar da Santa Casa da Misericórdia de Castro Daire)



Nota introdutória

Quando fui contactada para escrever a história de vida de Maria do Céu Trindade, aceitei o desafio, sem hesitar um momento. Não porque a tarefa me parecesse fácil ou porque dispusesse, à altura, de dados suficientes para levar a bom termo esta missão. Não porque qualquer laço afectivo me ligasse à senhora ou sequer aos espaços por onde partilhou a longa existência.
O meu entusiasmo residiu no fascínio pela descoberta da Mulher. Da mulher rural do século XX, com a sorte e a ousadia de o ter ultrapassado. Na heroicidade de uma vida aparentemente apagada e que, no entanto, se impôs na discreta passagem pela discreta Quinta da Seara, sobrevivendo a tudo e a todos:
À monarquia, à I república, à ditadura, até conhecer a democracia. Ao papado de vários chefes da igreja: Leão XIII, Pio X, Bento XV, Pio XI, Pio XII, João XXIII, Paulo VI, João Paulo I, João Paulo II, até chegar a Bento XVI. Sobreviveu ao imenso e sentido espanto, pela descida da Virgem Maria à Terra. E pela subida do Homem à Lua. Às duas contendas mais devastadoras da história do mundo. À varíola, à poliomielite, à difteria, à tuberculose, ao cancro, ao AVC, à depressão, às doenças mais terríveis do século.
A tudo e a todos sobreviveu. À guerra e à paz. À fome e à fartura.


A par de trazer a público o recato de vivências semelhantes a tantas outras daquela época, tentei enquadrá-las nessa mesma época, contextualizando espaços e modos de sentir muito específicos da região onde decorreu a acção desta história. Só assim se compreenderão maneiras de estar e de actuar, que hoje nos parecem quase irreais.
Ao romancear a vida de Maria do Céu Trindade, é natural que, em especial a família, que deve ser quem melhor a conhece, depare com factos seus desconhecidos ou até chocantes. É natural que isso aconteça. É que, entendeu a autora, contar esta história só faz sentido, se a enquadrarmos num tempo real, numa época específica, em que ela foi vivenciada.

Claro que, no desenrolar da narrativa, encontraremos muita ficção. Ela serve apenas de suporte ao mais importante, que são, afinal, 110 anos de vida igual a tantas outras... e diferente de todas elas.



Castro Daire, Setembro de 2012.

A autora
Aurora Simões de Matos







Maria do Céu Trindade

Biografia Romanceada

Deixamos Castro Daire, pela estrada nacional 225 que, seguindo a linha da Paiva em grande parte do seu percurso, ruma a Castelo de Paiva. A cerca de 6 km da vila, na descida até Pinheiro, mesmo antes de passarmos pela Igreja Matriz da Ermida, encontramos um desvio à direita que nos abre caminho para Ribas, Sobradinho, Cetos, Pereira e Póvoa de Montemuro, encosta acima.
Estamos já a subir pela estreita via alcatroada, quando logo ali, a escassos 300 metros, deparamos, à esquerda, em monte contíguo e ao mesmo nível, separado do nosso pelo vale do barroco onde um fio de água rumoreja lá no fundo, um pequeno lugarejo. Impressiona pelo abandono, pela solidão, pela saudade do que foi. Três ou quatro casitas de pedra rústica, ao lado de uma outra pintada de branco, qual casa de bonecas vista de longe, sem dúvida a que sugere melhores condições de habitabilidade e de conforto.
Paramos o automóvel e, por momentos, perante as ruínas vistas àquela distância, surge a dúvida:
Há quanto tempo terá começado a derrocada daquelas construções humildes que um dia albergaram vidas e sonhos, labutas e ambições? Há quanto tempo não se ouve ali o choro de uma criança, o gargalhar de um jovem, uma conversa solta entre vizinhos, os queixumes de um velho?
Há quanto tempo terá deixado de sentir-se o mugir das vacas, o balir das ovelhas, o cacarejar das poedeiras, que um dia foram ali força de trabalho e base de uma economia matricial de apoio à subsistência humana?






Vamos até lá. Continuando a estrada, contornamos a curva que o relevo obriga e paramos à beira da via que prossegue para Ribas. Procuramos o caminho sulcado de pedras, meio escondido pela vegetação selvagem, o único carreiro que, apesar da difícil condição, dá acesso à Quinta da Seara. Assim se chama o lugarejo que é agora um amontoado de pedras onde, no entanto, ainda se percebem resquícios de um passado em que a agricultura foi princípio e fim do sustento de três ou quatro famílias que ali, no isolamento fatal, conseguiram dar filhos ao mundo, criá-los e fazer deles gente de bem.
Que conseguiram, apesar de tudo, sorrir, cantar e ser felizes. E sair para voltar, como aconteceu a João de Almeida Trindade que, perante as dificuldades da vida, partiu um dia para o Brasil, na busca de proporcionar à mulher e aos filhos melhores condições de viver e de crescer. Mas não aguentou as saudades dos seus. Regressou, passados cinco anos, à casa humilde de onde partira. Para viver pobre mas honrado, ao lado da mulher que haveria de dar-lhe os seus oito filhos, quatro rapazes e quatro raparigas, das que o Senhor levou três ainda anjinhos. Que anjinhos são todas as crianças. Para sentir, logo de manhã, o sol bater-lhe em cheio na frente da casa e entrar-lhe pela janela apertada do quarto de dormir, ao lado da salita, onde a máquina de costura era rainha.


Na salita, media, cortava, alinhavava, provava, cosia os buréis, os riscados, os linhos e muito mais tarde os modernos terilenes que lhe cobriam a cama de ferro, a um canto. Tecidos que esperavam a sua mão de hábil artista. O ferro de brasas aceso, com que havia de alisar as peças de roupa que ali ia confeccionando, como alfaiate prestigiado que era. Obra não lhe faltava, ajudado pela mulher. Obra para as aldeias, os lugares e as quintas ao redor. Das redondezas chegavam os fregueses, vindos das lojas da vila ou da feira do Crasto, com os panos à cabeça, atados com uma guita. De tudo fazia e fazia bem. Mas o orgulho maior, sentiu-o ele, quando costurou a farda para a antiga música de Castro Daire. Do seu trabalho de alfaiate haveria de sustentar a casa, que as territas pouco davam, nem para o dia-a-dia. E ele tinha ambições para os filhos.



Tinha ambições para os filhos. E eles eram quatro. Ou cinco, contando com a rapariga, que também comia e a quem igualmente queria muito bem. Tinha ambições para os filhos. Queria vê-los crescer saudáveis e felizes. Queria muito que, da Quinta da Seara, os seus rapazes saltassem os socalcos e se embrenhassem no mundo.
Queria mostrar-lhes que o barroco do lameiro fundeiro das suas terras não era nada comparado com a Paiva, lá em baixo, onde tantas vezes já fora deitar as redes, na mira de sorte na pescaria que lhe valesse um petisco para o jantar do meio-dia de Domingo. Mas que a Paiva, mansa de consolo em Verões de abrasar o corpo e o chão, ou brava de meter medo em Invernos rigorosos, quando o bramido das águas se ouvia por todo o vale, a Paiva era uma criança até chegar ao Douro, soberbo de orgulho e de força. E que, mergulhadas as suas águas no caudal do grande rio, mesmo assim continuava a ser uma criança trémula de medo, ao enfrentar o mar imenso.
O mar, o mar imenso... Tão grande, que o vapor demorara quase um mês a atravessá-lo. E os seus rapazes tinham que ver e que sentir a imensidão das coisas. Da água e da terra. Das cidades e das gentes por esse mundo fora. Que os seus rapazes não haviam de ser menos que os filhos dos outros. Dos outros, dos que ele conhecera no Brasil, onde se ganhava dinheiro certo e não faltava trabalho. E não haviam de faltar oportunidades para os seus rapazes serem alguém.
Era esse o maior sonho de João Trindade. Por isso, quando cada um deles chegou à idade de aprender a ler, obrigou-o a ir para a escola. Já se sabia que ficava longe, os caminhos eram carreiros ruins de atravessar até Vila Seca, a perto de uma hora de distância, o lugar mais próximo onde a Mestra ensinava um grupo de rapazes, numa salita meia escura. Tudo rapazes. Não era que fossem obrigados, naquele tempo, à frequência da escola. Mas quem soubesse ler e escrever tinha o futuro garantido.




No caso das raparigas, a situação era diferente. Eram raríssimos os casos em que os pais dispensavam as filhas do trabalho e as mandavam para a escola. Nem haveria necessidade disso – pensava João Trindade. Para quê mandar para a Mestra a única rapariga que o Senhor lhe deixara ficar? Para quê, se a vida da mulher era no lar, a tratar do homem, dos filhos, da casa, dos animais e das terras, se adregasse de as ter? Que sempre uma mulher haveria de arranjar que fazer e onde empregar forças e afectos. Que sempre uma mulher ficaria melhor no aconchego do lar, que por esse mundo fora, louvado seja Deus!
Louvado seja Deus, que a João Trindade calhara-lhe a sorte grande. Mulher trabalhadeira a sua. E respeitadora. Amiga do marido e cumpridora dos seus deveres de mulher e mãe. Que Deus lha conservasse.
Maria Emília de seu nome, filha de gente de bem, família de boa formação religiosa e moral, tia de Padre, era ela o grande apoio daquele lar. Nunca se lhe ouviu uma praga, um maldizer, um berro zangado. A calma em pessoa, era esta mulher que, desde madrugada, não parava até altas horas da noite. Para tratar da casa, dos filhos, do homem. E de tudo o resto, que a seu cargo tinha tudo o resto. Animais e terras. E as compras na vila ou na loja de Sobradinho, ou na de Ribas. E a lã para fiar e fazer caturnos. E o linho para semear, mondar, regar, colher, massar, tascar, limpar, fiar, dobar, tecer. Do pouco linho que conseguia cultivar no lameiro do meio, abaixo da casa. Que haveria de lavar na barrela e estender no coradoiro, em lençóis e brancas toalhas. E, pela noite fora, ajudar o homem na costura. Que o tempo fez-se foi para trabalhar.

O que lhe valia era a filha, a única que o Senhor lhe deixara, desde que a última lhe morrera, com doze anos apenas. A sua Margarida, que Deus havia de ter no céu. O que lhe valia era a filha. A Céuzita, calma e obediente como a mãe, trabalhadeira como a vida lho exigia. Humilde e meiga como a mãe, responsável e atenta como o pai lho exigia. Sorridente e acomodada como a mãe, discreta e púdica como o Senhor Abade lho exigia. Que a sua religião e os ensinamentos da Santa Madre Igreja tinham grande peso nas famílias e nas pequenas comunidades espalhadas por todo o vale da Paiva e serras ao derredor.
- Ó senhora mãe, daqui por quinze dias é a festa de Nossa Senhora do Carmo. Já falta pouco para o 16 de Julho. E eu queria estrear uma saia e um lenço da cabeça.
- Já sabes que o teu pai te dá sempre qualquer coisa para estreares no dia da festa. Mas é só uma peça, que os teus irmãos são quatro e eu prometi que dois deles haviam de levar o andor de Nossa Senhora na procissão. Sempre têm que ir bem arranjados. Tu contenta-te com a saia, ou com o lenço. Eu falo com o teu pai.
- Mas eu é que sou a mordoma da festa. Também gostava de ir bem arranjada!
- E vais, e vais, minha filha. Vai ser a rapariga mais linda daquela festa! - aconchegava a mãe.
- Ó senhor pai, então sempre me dá a saia para a festa? E também me dá um lenço? Já nem lhe peço uma blusa de chita...
- Era o que faltava! Ainda no inverno te fiz uma nova.
- O riscado já se rasgou. Também... ando sempre com ela... Tanto se suja e tanto se lava, que tem que se romper.
- Não respondas ao teu pai! - repreendeu João Trindade, de mau humor.
- Tenho sempre que me calar. Já sei, já sei...
- Ela anda a ficar muito atrevida! Também me responde a mim! Não sejas malcriada, Céu. Senão, pode sair-te cara a brincadeira! - aconselhou o irmão mais velho, em tom irónico.
- Eu não disse mal nenhum...
- A pequena não disse nada que ofendesse ninguém, valha-me Deus! Só pediu uma saia e nada mais...
E dirigindo-se à filha:
- Vai segando o caldo, que eu já vou ter contigo para conversarmos.
Maria do Céu já não ouviu a mãe. Cabisbaixa, meteu-se em casa a resmungar sozinha. Que não havia direito, os rapazes tinham tudo e faziam o que lhes apetecia. Ao contrário dela, que tinha que se calar a tudo. Pegar no que lhe dessem, sem nada poder pedir. Mas o que mais a deixava triste era o pai pôr-se sempre do lado dos irmãos. Que, esses sim, davam-lhe cabo do juízo. «Céu para aqui, Céu para ali, Céu para tudo e mais alguma coisa».
Não era que não fossem amigos dela, mas falavam como se fossem todos seus pais.
- Não vês que o irmão só te quer bem? Quer é fazer de ti uma mulher como deve ser, valha-me Deus! - contemporizava a mãe, com aquela calma na voz.
Aquela calma que enchia o lar de paz. Que fazia de todas as horas, momentos de carinho e de sossego.




(Excerto da biografia de Maria do Céu Trindade, que está a ser publicada em capítulos, nos jornais regionalistas:
Notícias de Castro Daire
Gazeta da Beira
Jornal do Douro
Notícias de Vouzela)
Aurora Simões de Matos - 2012

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Gratidão
Em prece, ergo minhas mãos aos céus
e invento nova forma de rezar,
entregando, com fervor, nas mãos de Deus,
o segredo que só quero partilhar
com quem entenda esta devoção
que, inebriada pela Natureza,
eu sinto pelo ar e pelo chão
em que nasci, na pura singeleza
do meu primeiro berço perfumado
por cravinas à mistura com o linho
bem corado pelas mãos de minha avó...


E, se a prece rezada em tom velado,
for por Deus entendida... em meu caminho
outras vozes me dirão que não vou só.


E muitas outras vozes se erguerão
cantando, em coro, um Hino de Alegria,
bendizendo, em uníssona oração
que subirá aos céus em melodia,
a Gratidão de quantos neste mundo
tiveram sua sorte bafejada,
ao nascerem e viverem, no profundo
amor por esta terra abençoada
que nunca atraiçoou os filhos seus,
que os espera de braços sempre abertos
de cada vez que se impõe um breve adeus
e que, com os sentidos bem despertos,
firme e atenta aos desígnios de Deus,
faz dos tempos errados... tempos certos.


Aurora Simões de Matos

domingo, 14 de outubro de 2012


Burra escondida… com o corpo de fora

(in Contos de Xisto)



Uma noite, quando regressava do moinho, pelo carreiro das Devesas, afigurou-se-lhe ver o Tonho das Cancelas, agachado entre o milho, como quem, na calada da escuridão, se escondesse do mundo. Ainda esteve para voltar a cabeça, na tentativa de perceber a situação e encontrar uma certeza. Tão estranho!

O Tonho das Cancelas?! O que faria naquele lugar isolado das gentes, àquela hora tardia de vida, naquela posição de quem espreitava para não ser espreitado? Estaria a satisfazer alguma necessidade do corpo, que ninguém pudesse cumprir por si? O Tonho? Seria mesmo ele ou o diabo por ele?

Assim pensando, Alfredo Carriço fez figas, benzeu-se, recitou o Credo e seguiu caminho, sem olhar para trás, meio desconfiado.

O Tonho das Cancelas?! Ali… longe da casita onde morava sozinho desde que a mãe, viúva e acamada, se finara, ia para dois anos, deixando-o ao cuidado dos mesmos vizinhos que a tinham acompanhado até à ultima hora?


Filho único, nascera já fora de tempo, no aproximar da velhice dos pais. Viera ao mundo sãozinho e escorreito. Mas quis a sorte que, aos seis anos, a terrível meningite o deixasse incapacitado para o resto da vida. Incapacitado de grandes pensamentos e raciocínios, inteligência e hipótese de grandes êxitos. Incapacitado de se exprimir por palavras que todos entendessem, pois a fala entaramelava-se-lhe e nem sempre era fácil percebê-lo.

Fisicamente, não havia moço mais desenxovalhado nas redondezas. Alto e bem parecido, não se lhe conheciam maleitas que o impedissem de trabalhar, de conviver, divertir-se e mesmo namoriscar.

Todos gostavam dele. Por compaixão, mas também pela sua boa disposição e ausência de maldade. As vizinhas revezavam-se na lavagem da roupa e, aos domingos, havia sempre alguém a chamá-lo para a sua mesa de almoço melhorado.

Durante o resto da semana, ele lá se arranjava, com o pouco que era capaz de cozinhar.

Gostava de andar limpo e asseado. Lavateava-se, vezes sem conta, no rego de água que, rumo às quelhas de Vale Fundeiro, lhe passava quase rente às cancelas, cantando o que só ele entendia.

Talvez por isso, aquele rego de água fosse o seu maior amigo, confidente de quantas alegrias e mágoas lhe iam atravessando a vida.

Aprendera a adormecer ao canto daquela voz líquida de murmúrios e aprendera a acordar aos tropeços da corrente irregular. Aprendera o passar do tempo, nas horas dos dias e das noites, com o volume da água que alternava na estreita levada, e aprendera a conhecer-se de feições, na limpidez daquele espelho rumorejante. Aprendera que, depois de ultrapassar as cancelas do quinteiro que lhe emprestaram o nome, era preciso ultrapassar o rego e que, para lá dele, havia um mundo a descobrir. Aprendera, enfim, que, para vencer um obstáculo, sempre teria que experimentar um passo maior.


Naquela noite quente de verão, apetecera-lhe ir até ao rio. E foi já perto dele que, num silvado que servia de extremas a dois milheirais, parou a apanhar amoras, à luz do luar.

Foi daí que se lhe afigurou ver o Alfredo Carriço a vir do moinho, pelo carreiro acima. Ia a casa buscar mais um taleigo de centeio, que a burra Mulata, manca de velha, não pudera com o carrego completo e teve que, à última hora, descarregar o contrapeso.

Alfredo fez o que tinha de fazer e regressou ao velho moinho, com o saquito às costas. Ao chegar, nem queria acreditar no que via, ou antes, no que não via. A burra, que ficara presa a um amieiro, desaparecera misteriosamente.

Lembrou-se então do Tonho das Cancelas, ou do diabo por ele, que se lhe tinha afigurado ver. Benzeu-se outra vez, olhou ao derredor, chamou o animal; mas nem um zurro, nem um bater de casco.

Quando amanheceu, foi o Carriço à procura da Mulata, por entre montes e vales, carreiros e ribeirinhos, giestais e matagais, por atalhos que lhe foram comendo as forças.

Sabia que o Tonho não tinha currais, mas sempre espreitou pelas cancelas entreabertas. Nada se notava. Apenas uns barulhos esquisitos vindos do interior da casita de xisto e o murmúrio da água correndo pelo rego, onde o rapazola se lavateava, como era seu costume.

Alfredo mandou rezar um responso a Santo António, advogado das coisas perdidas e, pela burra, ofereceu uma vela para a festa da Santa Padroeira.

E não é que a Santa Padroeira ouviu as suas orações, aceitou a vela e fez o milagre?

No dia da festa, no fim da Eucaristia, o povo, atrás do andor da Santa, organizou-se em procissão até ao Cruzeiro, rezando e entoando cânticos.

A fechar o cortejo, o Tonho das Cancelas, com ar solene, montado na burra manca, ia respondendo às palavras do Senhor Abade:

Arre Mulata… cheia de graça… Arre Mulata… entre as mulheres… Arre Mulata… rogai por nós… Arre Mulata… agora e na hora da nossa morte. Amem.
Aurora Simões de Matos
in Contos de Xisto
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quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Regionalismos da beira-Paiva


(Médio Paiva)







abada- quantidade contida numa aba de avental; grande quantidade

almotriga- almotolia; vasilha para o azeite

aguilhada- vara comprida com ferrão na ponta, para picar as vacas

arrecada- argola

augado- guloso

alapado-agachado

alancar- carregar às costas

aluado- maluco

aqueibar-deter

arancu- pessoa parada, com pouco rasgo

arreganhar a tacha- rir

astrever-se- conseguir

atrojar- dar pancada na cabeça de alguém ou de algum animal com intenção de matar


auga- água

barranha- panela de barro vidrado

barrela- método de lavagem da roupa, em grandes cortiços, com cinza e água a ferver

barreleiro- pano de linho

barroco- caminho fundo e acidentado, com passagem de água

boletra- bolota
~
de boamente- de boa vontade

bonecra- boneca

bornal- sacola para levar a tiracolo

bosteira- monte de bosta

broche- alfinete de lapela

bucha- comida em pequena quantidade

babujar- babar

bacro- porco pequeno

balsa- dorna

barulho- zaragata; discussão

banzoneira- mulher coscuvilheira

belga- rego de água estreito que parte da torna ( rego maior)

bolastra- preguiçosa

boletra- bolota

borboreta- borbolet
a
bordasco- linho grosseiro

borratel- diarreia


botelha- abóbora


caçoila- panela de barro

café do bom- café puro

café de cevada- cevada

calubra- cachaço do porco

caturno- meia curta



 caticha!- exclamação de repugnância

carreiro- caminho muito estreito

caneco- vasilha em madeira, para a água

cevado- porco pronto para a matança

chambaril- apetrecho para pendurar enchidos, sobre a lareira

chamiça- gravato de lenha

ciloiras- ceroulas

cobranto- quebranto; prostração

codo- gelo à superfície do chão

consoadas- presentes de Natal

contas- terço

corte- curral

cravo de papel- bandeirinha de papel

cuinhar- gritar aflitivo do porco

calha bem!- manifestação de desaprovoação a rematar uma frase

canso- cansado

caculo- acima das bordas de uma medida

caganita- excremento de cabra, ovelha ou coelho

ceia- jantar

chimpar- arremesa
r

calhorda- pessoa desprezível

dada- vermelhidão no seio da mulher que amamenta

desapartar- separar

dependuradoiro- apetrecho para pendurar o porco morto de cabeça para baixo

desenriçado- desemaranhado; alisado

desmancha- operação para decompor o porco morto em pedaços

dito- ditado

desalvorado- agitado,sem tino, desnorteado

desinçar- desembaraçar

diteira- pessoa maldizente

encafoar- arrumar apressadamente

empalhar a água- juntar palha à terra, para melhor segurar a água no rego

emborcado- debruçado

empecer- atormentar

empegar- regar pela primeira vez

empontar- afastar alguém

escachar- puxar de esguelha

escachar- se-afastar as pernas

escarnicalho- trocista


escraviado- acidentado; que sofreu acidente

encardido- muito sujo

enchedeira- espécie de funil para introduzir a carne de porco na tripa, para fazer os enchidos

engalhar- enganar

engadilhar- bulhar

enxergão- colchão cheio com palha

escaleira- escada exterior

escarrapachada- sentada com as pernas abertas

escochada- sem cabeça

escudela- espécie de bacia de madeira, para saltear a massa do pão antes de entrar no forno

fento- feto

fieira- fila

fressura- vísceras de um animal

fueiro- pau afiado que se espeta no carro de vacas para segurar a carga

gatafanho- gafanhoto

gaiteiros- cogumelos a nascer


home- homem

junguir- jungir; emparelhar

jantar- almoço

joiça- excremento

lançar fora- vomitar

lanzudo- cabeludo

liço- fio ou cordão

lumiar- designar; apontar o nome


luxar- vestir bem

lameiro- campo com erva para os animais

levada- torrente de água

licança- lacrau

longumeiro- legumeiro

mancheia- mão cheia; punhado

maninho- terreno baldio

maquia- percentagem

manteiga de porco- banha

masseira- grande tabuleiro de madeira com pernas, onde se amassa a farinha, para fazer o pão

mercar- comprar

mareado- tingido

moado- fundo do caldo da tigela

moafa- trejeito


monzém- pessoa preguiçosa

odre cheio- estômago cheio

ougado- guloso pelo que é dos outros

ougar- ficar com sentido no que é dos outros

ougar- partir ao meio

patim- patamar nas escadas exteriores da casa

peitar- presentear

pelego- que tem dificuldades na fala

postema- melancoli


prosa- vaidade

palaio- salpicão feito com a língua do porco

palheiro- arrecadação onde se guardam palhas, fenos, lenhas e alfaias agrícolas

pão- leve- pão- de-ló

pegureiro- pastor

pedão- podão

pedoa- podoa

pilheira- monte de lenha ao lado da lareira

pirolito- bebida gasosa

poldra- pedra colocada no rio, para facilitar a passagem a pé

porteira- entrada

potra- doença na raiz de certas plantas

puído- gasto

quebrados ( toque a)- toque a finados

queiroga- torga

quentura- calor

quinteiro- pequena área do espaço habitacional, onde se fazia a compostagem de certos lixos e despejos das cozinhas

ramo da teia- medida de comprimento com cerca de três metros de teia

rede chumbeira- rede de pesca com malha apertada e pedaços de chumbo para apanhar também peixes muito pequenos

rela ou reza- espécie de rã dos matos

rogar uma pessoa- convidar ou contratar alguém

santas barbras- santas bárbaras

sebe- espécie de cerca feita de vime entrelaçado, que se usa sobre o carro de vacas, para segurar a carga

sopa-seca  - sobremesa feita com fatias de pão de trigo, mergulhadas em água com banha de porco e polvilhadas num alguidar de barro, às camadas, com açúcar e canela, antes de irem ao forno a tostar; sobremesa de festa dos pobres

sorte- campo de cultivo

sortes -( ir às)- ir à inspecção militar

suventre- parte da barriga do porco

talhadoiro- lugar onde, no rego, se interrompe o percurso normal da água para a rega

talhar a água- mudar a direcção da água; tapar a água do rego

tapada- terreno no monte, cercado de muro

tentear- equilibrar

terçogo- terçolho

tirante- excepto

tomentos- linho grosseiro


travesseiro- almofada estreita e comprida, com o comprimento igual à largura da cama

tricha- icterícia

unheiro- olheiro

venda- loja; mercearia

vessada- preparação da terra para a sementeira

vigia- rebanho

volta de ouro- fio de ouro










Aurora Simões de Matos
in "Imagens da beira-Paiva" - 2001