CAPA DO LIVRO E PREFÁCIO, POR AGOSTINHO SANTA
Uma capa a lembrar saudades... sem saudosismos! ( da autoria da designer gráfica, Ana Coelho )
Foto de Carlos Batalha
PREFÁCIO
Quando o professor
era mestre-escola
Quando a
professora Aurora Simões de Matos falou comigo para escrever umas palavras
introdutórias a um livro que tinha escrito, e soube a temática, confesso que
fiquei curioso acerca da forma como a decidira abordar.
Pela cabeça
passaram-me três caminhos que, ao falar de escola na sua evolução espaço
temporal, haveria a tendência de seguir: o primeiro, obedecendo a um impulso
saudosista, seria através de uma ode ao passado, fixando nele todas as virtudes,
afastando todos os pecados; o segundo, aproveitando a oportunidade vingadora,
seria a partir de um acerto de contas com tempos idos e realidades nevoentas,
assacando-lhes todas as culpas e nenhuma salvação; o terceiro, refugiando-se
num tom tendencialmente neutral, seria um repositório, mais ou menos comentado,
de dados históricos e variações estatísticas.
Conhecendo a autora
como mulher, como professora e como poeta, desde já antecipo que não acreditei
que fosse por qualquer uma dessas vielas discursivas. Maior curiosidade me
assaltou: como é que encontraria um percurso outro que se afastasse desses
caminhos radicais, tantas vezes trilhados por outros.
Vi o texto que
me entregou para uma primeira leitura ainda quente de lhe ter saído das mãos e
do génio. E optara por outro caminho, contido dentro de pressupostos de
equilíbrio, sem arrogâncias ou penalizações de um passado histórica e
humanamente circunstanciado, sem endeusamentos ou diminuições inaceitáveis de
um presente/futuro contextualmente assumido e valorado e sem o recurso
desviante e protetor a um descritivo desfiar de números e fenómenos de uma
complexa realidade social. É um registo impressivo, emotivo, real e circunstancial.
Embora
reconduzida, no seu limitado mundo, ao Montemuro e à beira-Paiva do seu maior
conhecimento e pessoal vivência, o que nos aparece nesta obra literária é a
Escola em si mesma, viva, palpitante, multifacetada, evolutiva. Percebida e
escrita com emoção. Colhida, como matriz iniciática, de uma memória a que quis,
propositadamente, regressar, aí se perdendo e se encontrando, quatro, cinco
décadas ou mais, em tempos e lugares recônditos em que a escola fazia a
diferença e se afirmava com um misto de ficcional magia e de prosaica dureza.
De forma natural, fala-nos de “quadro preto”, de “menina de cinco olhos”, de
“20 carteiras para 62 alunos”, de “almoço côdea de pão”, de “óleo de fígado de
bacalhau”, de “ida ao monte ou à sagreta”, de “piões, bilharda e bola de
trapos”. E a nossa própria memória viaja para sítios onde cheirava a estrume e
a bosta fresca de vaca, a broa quente do forno e a rosmaninho, onde se ouvia a
rola, a poupa e o cuco e o zurrar impaciente do burro, onde se sentia, nos pés
descalços, a humidade da terra e da erva e a aspereza dos calhaus.
Reflete a autora,
assente sempre, em primeiro tom, na geografia serrana e interior em que se quis
agarrada mas saindo dela para voos mais abrangentes, no que se foi passando, em
metade do século XX e no dealbar do século XXI com a Escola. Não se coibiu de deixar
juízos de opinião sobre alguns fenómenos que realçou, mesmo que se tenha sobre
eles outros entendimentos:
- o
analfabetismo dos anos cinquenta, sessenta, setenta do anterior milénio,
associado a um mundo rural rude, económica, social e culturalmente pobre, combatido,
com armas elas próprias limitadas, por uma escola de “sonhos e de vontades”, em
que o ensino primário e a obtenção da quarta classe, comemorada esta com traje
de festa, clamor e foguetório, tinham uma importância bem para além do título
académico que conferiam;
- ainda nessas
décadas, uma escola rudimentar, com poucas condições de habitabilidade quanto
mais pedagógicas e didáticas, de uma exigência desmedida, em que “a quarta
classe era uma epopeia”, servida pela repetição e memorização, tantas vezes ao
som das “reguadas” e do choro acompanhado pelo “ranho” que as costas da mão
pequenita se permitiam limpar;
- a “Reforma
Veiga Simão”, seguida, já depois da revolução de abril, pela democratização do
ensino, com apostas vincadas na reestruturação dos programas, na formação de
professores, no aumento progressivo da escolaridade obrigatória, na criação de melhores
condições estruturais e de frequência escolar; diz a professora Aurora que “o
Montemuro estava agora mais culto e mais perto de tudo”;
- as crises
económicas acopladas a políticas erradas e erráticas, que foram levando à
desertificação dos lugares do interior rural e serrano; “E partem.” – diz a
autora em tom singelamente acusador, mesmo com “canudos” que a escola
proporciona;
- o movimento de
encerramento de escolas, a partir de finais do século XX e a sequente criação
de agrupamentos e mega agrupamentos, que levarão à impessoalização da relação
professor/aluno, transformados esses espaços em “depósito de crianças”, cada
vez mais desprezando a “pedagogia da proximidade” e fazendo com que nos
anteriores sítios de escolarização, nas aldeias, nasçam “lugares fantasmas”;
com isto tudo, “(…) O Montemuro e a beira-Paiva, como sempre, obedecem. Mas
sofrem”.
Este livro, para
além do mais, é um tributo a uma escola humanizada, em que os seus
protagonistas, crianças e professores, fazem da proximidade a marca da sua
específica e maior valia. Apresenta-nos, sem saudosismos bacocos, mas também
sem menorizações ou remorsos, uma Escola que evoluiu e que, num momento
essencial da sua história, foi servida por professoras e professores que eram
mestres-escola. Só isso permite perceber o alcance do desabafo da Aurora: “Não
tinha quase nada a minha escola” (…) “E, no entanto, tinha quase tudo”.
Eu, que vivi,
como aluno, primeiro, e como profissional da educação, depois, a Escola de que
o seu livro fala, nas suas variadas e evolutivas realidades e circunstâncias,
só posso dizer-lhe: bem haja, professora Aurora, por me ter levado ao sorriso e
às lágrimas com coisas que, aqui, escreveu e com histórias que aqui narrou.
Semeou em mim a vontade de continuar a afirmar, com convicção, que um dia fui
mestre-escola: “Bom dia, senhor professor!!!” Com orgulho.
Agostinho
Santa
Inspeção - Geral da Educação e Ciência
Inspeção - Geral da Educação e Ciência