terça-feira, 31 de julho de 2012

O AMOLADOR

O AMOLADOR





O amolador

« A….mola navalhas e tesourinhas…
Com .. põe panelas e alguidares…
Arran…. ja guarda-chuvas e sombrinhas!...»

Num dia qualquer, bem cedo
chegava ao Cimo do Povo
o fiel amolador
com seu carrinho de mão
mais o vibrante pregão
que, voando pela aldeia
anunciava a chegada
por todos mais que esperada
que haveria de compor
a já furada candeia
e o velho borrifador.

Tinha a voz inconfundível
com mistura de assobios
feitos de dedos esguios
e a tirada musical
duma gaita especial
soprada bem à maneira
de quem queria ser diferente
no meio da outra gente
e que fazia os delírios
da atrevida criançada
que, à roda dele, se juntava
em algazarra animada.

Mas já chegavam, correndo
tomando a vez dianteira
as mulheres atarefadas
por vidas todas canseira
com as peças mais variadas
que se possa imaginar:
almotrigas e candeias
tachos, panelas de folha
e panelas esmaltadas
já velhas, todas furadas
que, depois de muitos pingos
haveriam de durar
por mais uma temporada.

Pratos partidos em dois
à espera dos agrafos
pontos com arte bordados
nas caçoilas de Molelos
assadeiras e alguidares
todos de barro vidrados
as facas e as tesoiras
navalhas e canivetes
tudo, enfim, o que tivesse
perdido o fio e fizesse
falta ao bom do lavrador
e às lides da mulher
na cozinha ou na costura
trabalhando a vida dura
guarda-chuvas desvirados
varetas todas partidas
sombrinhas desarranjadas
tudo ficava perfeito
depois de, com muito jeito
ao seu carrinho apoiado
de roda sempre a girar
as mãos do amolador
emprestarem seu valor
à aldeia onde ficava
ao serviço daquele povo
duas semanas a fio
e onde, com muito brio
punha tudo como novo.

Só depois, nómada errante
lá seguia sua vida
por outra aldeia…e então
num outro Cimo do Povo
soltava o pregão de novo:

«A…mola navalhas e tesourinhas…
Com… põe panelas e alguidares..
Arran…. ja guarda-chuvas e sombrinhas!...»

Aurora Simões de Matos

domingo, 29 de julho de 2012

TRIBUTO A LAMEGO



TRIBUTO A LAMEGO
A minha segunda Pátria







Aliança de vida com selos de amor

Conheço-lhe o sangue. Provei-o já há muito
no suor que escorria de meu rosto
sabor antigo que escorre de seus ramos
É assim que me chega
a energia da seiva que procuro
onde as raízes entrançam sentimentos

Conheço-lhe as raízes. De imaginar seus frutos
corre meu sangue qual rio de amor
corpo sem margens qual rio de dor
por sítios onde o retorno
faz o sentido dos passos que dei
por todos os passos

Conheço-lhe os caminhos. De tanto os cruzar
sei dos contornos e dos seus limites
distingo-lhes a borda, o leito e o caudal
embora nunca saiba como pronunciá-los

Conheço-lhe os gostos. E de tanto provar
aromas e sabores, texturas e as cores
do pranto solto e aberto gargalhar                          
vestígios no interior deste silêncio
que se cumpriu pelo fulgor do tempo
de ser apenas e só o meu destino
é que por sorte e por ela vivo

Conheço-lhe a voz, o gesto e a imagem     
de cada esquina em cada beiral
pedra ou soleira
da aliança que com ela fiz.
Lamego, Cidade Velha sempre nova
por quem chorei, ri e vivi
por quem amei, por quem sofri
por quem afinal me fiz Mulher                                                                      

Existo nela e ela existe em mim
nas sombras confundidas pelas ruas
vozes suspensas da alta folhagem
em cada árvore que aqui plantei
um gesto último a dizer adeus
e um sorriso esquecido que regressa                                       

Por ela, "Cidade Verde", é que eu existo
de esperança cor de fé
e é nela que me deito cansada das palavras
Depois, se cada rosto que em minha mão tocou
disser ainda sem falar meu nome
apenas na surpresa ou num esboço
serão decerto então desta Aliança
selos de amor
gotas de Vida que verti no chão


Aurora Simões de Matos











 
 
Leitura deste poema no Salão Nobre da Câmara Municipal de Lamego
(2007)





quinta-feira, 26 de julho de 2012

Liberdade

LIBERDADE


                                              Imagem de Francisco Henriques


"Liberdade"

     Orgulho

       Vês a ave passando?
       Entendes seu voo de asas envolto em pressa,
       seu deslizar picado rente ao Verão?
      
       Se o entendes, olha.
       O sentir esvai-se num momento,
       tal nuvem passageira já se foi.
       Assim a tarde que cai sobre a manhã.

       Vês a ave amaciando as penas
       no orgulho de ser liberdade?
       Se a enxergas, olha.
       Seu deslizar no céu é só para quem crê.















         
"olhares.sapo.pt"


                               Grito de sol
                                             
                                               Esta voz tem o som da tarde quente
                                               a transpirar de luz no tempo soalheiro.

                                               Respiram-se ares de festa nos caminhos
                                               de esperanças consumadas.

                                               Este grito é de sol nos altos cumes
                                               onde a neve derreteu as incertezas,
                                               para que as águias pudessem entender
                                               as alturas que o Homem traz no destino.

                                               Esta canção é marcha nupcial
                                               cantada frente ao altar-mor da Vida.

            Aurora Simões de Matos










sábado, 21 de julho de 2012

PALAVRAS - A FORÇA DAS PALAVRAS


A FORÇA DAS PALAVRAS

"Se soubéssemos quantas e quantas vezes as nossas palavras são mal interpretadas,
haveria muito mais silêncio neste mundo."
               Oscar Wilde 

Fréderic Duhamel "Busca da palavra




********************


     Há vozes que subsistem ao tempo e aos lugares, como se a  força das palavras fosse capaz de levantar os anos, como se a essência das palavras marcasse o destino das coisas.
     Por detrás das palavras há sempre a voz que lhes dá corpo e movimento e sentido. Na voz de uma palavra se lê o sofrimento ou a alegria, se escurece o dia ou ilumina a noite.
     Há momentos doridos em que uma palavra nos basta para sarar a ferida que ficou, como pano rasgado de que sangramos. Há momentos de descontrolada euforia em que uma palavra nos basta para cortar o caudal de certos desvarios. Numa palavra de desencanto e desespero acordamos de morrer no esquecimento sombrio de um rosto de lágrimas caladas. Numa palavra de coragem somos transportados ao limite das metas mais distantes.
    
     De uma palavra calada, o mundo fica suspenso; de uma palavra de ordem, o mundo fica suspenso. Tudo depende da cor da palavra. Se ela é branca ou cinzenta, assim a surpresa do mundo.

     De uma palavra pode nascer o amor, que é o único sobressalto que vale a pena; de duas palavras pode ele crescer ou morrer. De uma palavra pode nascer o ódio, que é o único sobressalto de que não deveríamos conhecer o rosto; de duas palavras pode ele transformar-se no fim de tudo, incluindo a vida.

     Há quem diga mais com uma palavra muda do que com um vozeirão de mil palavras em atropelo. O que pesa são so sentimentos e a forma dos sentimentos. Palavras sem sentimentos são palavras sem peso. São leves como penas e delas dizemos: «palavras leva-as o vento...». É o que acontece às palavras que, por força de muito se repetirem, se transformam no seu próprio eco e perdem credibilidade.

     Há palavras que se abandonam ao dizer, apenas pelo dizer. Sem critérios. É a banal situação da "conversa fiada". Há também palavras que se abandonam ao dizer, pelo prazer, pela convicção e pelo dever do dizer. São estas que arrastam multidões, comovem plateias, definem ideais, traçam o destino dos outros.
     E há quem tudo invista na busca da palavra certa que melhor esconda o que quer mostrar. Não se sabe muito bem o que verdadeiramente sentem estas palavras, já que falam com todos os sentidos ao mesmo tempo. Sabe-se que são capazes de se esconder na limpidez da água mais pura ou no azul do céu mais limpo. São as palavras dos poetas, quase sempre entendíveis apenas pelos outros poetas, o que faz delas o elo de ligação de um grupo de vozes com um estatuto muito próprio. Geralmente vozes sofridas que não se sabe por que sofrem, enfim, vozes um pouco à parte, que vivem de e para o culto da palavra, em jogo subtil com as emoções.

     Já me tem acontecido perder o fio à conversa. Nesse caso, tento refazer a urdidura das malhas desfeitas na palavra que se partiu.
     Passajar ponto por ponto, cerzir pacientemente até entretecer uma nova teia, que é como quem diz, um novo discurso, num discurso novo, é exercício de maturidade, às vezes doloroso. Este exercício requer particular cuidado com o uso das palavras. Se as agudas podem ferir susceptibilidades, pela sua marcada disposição para protagonismos de última hora, as esdrúxulas podem gerar distanciamento, pela frieza do seu pragmatismo. Estes dois tons de palavra devem, com conta, peso e medida, fornecer apenas o suporte ao fruir das palavras graves que, além de estarem em inevitável maioria no discurso, são sem dúvida as mais sóbrias, logicamente as privilegiadas no refazer da conversa que se partiu.

     Quando a mão desenha a palavra, ela fica escrita na folha que o momento lhe destinou e ganha a força com que esse momento a possa decifrar e a força com que esse momento a possa projectar. Digamos que o que acontece é que a palavra assim exposta adquire uma vulnerabilidade muito própria. E se bem que a forma tenha uma força diferente do som, pela forma e pelo som das palavras passam todas as forças e todas as fraquezas do mundo. 






Aurora Simões de Matos

no livro "UMA PALAVRA"
Edições Sagesse - Palimage - 2001











     



terça-feira, 17 de julho de 2012

FNAC MAR SHOPPING

FÓRUM FNAC MAR SHOPPING


IMAGENS

Contos de Xisto no Porto



À espera dos convidados



       Mesa de Honra

Ao centro, Aurora Simões de Matos
À sua direita, Rui Lage
À sua esquerda, Paulo Coelho









Dr. Paulo Coelho, representante da Editora Edições Esgotadas







         
           
Dra. Gabriela Pina, que coordenou e conduziu o evento







Uma leitura por Aurora Simões de Matos, 
autora do livro









A Dra. Filomena Fonseca leu o conto
"Fruta do tempo" 


















O Professor Universitário Rui Lage, num brilhante improviso,
apresentou a Obra Contos de Xisto 





















Gabriela Pina canta dois poemas de Aurora Simões de Matos





Com Francisco Henriques, autor da capa do livro







A palavra da Autora
nos agradecimentos finais...





... e a felicidade pela presença de tantos amigos que quiseram trazer-lhe um abraço de apoio. 









quinta-feira, 12 de julho de 2012

A VALSA DOS POETAS

A VALSA DOS POETAS
Vídeo (também no YouTube)




Vídeo






A valsa dos poetas

«Ó virgens que passais ao sol poente»
em coches alados
e vestes de sede branca
sobranceiras aos vícios do pecado:
afinai harpas, colocai vozes,
penteai cabelos, aspergi perfumes,
que a hora da quimera chegou à marginal
e faltam músicos para o concerto.

Há na pista um par de namorados,
dedos entrelaçados
à espera nem eles sabem de quê,
enquanto a vida acontece por acaso
em voos de fantasia
sem rosto, nem preço, nem idade,
porque são poetas.
São poetas da luz e da cor,
da palavra e da verdade.

A notícia correu de boca em boca
e assomam curiosos à marginal.

A prostituta das noites cálidas
vestiu de luto a sua incoerência
para assistir ao concerto das virgens
e à valsa dos poetas,
na esperança duma redenção.

Está sentada na areia,
toda de negro marcada.
Na insubsistência do olhar manchado,
por companhia um cigarro sem sentido
e a erosão de pensamentos corrompidos.

É o ponto forte do cenário improvisado
onde, em justa e perfeita proporção,
se respira a euritmia da luz,
dos sons, das cores, dos gestos,
dos silêncios
e dos sentimentos dos poetas
que hão-de alimentar de sonho os outros seres.

Aurora Simões de Matos, in Poentes de mar e serra - 1997 (esgotado)







segunda-feira, 9 de julho de 2012

Entardecer

                                                                                           Imagem de Francisco Henriques

ENTARDECER



O tempo esboroou-se
na ponta dos meus dedos
e as migalhas que o vento dispersou
são agora lembranças espalhadas
que tento alcançar para juntar
e se possível reviver
na emoção das horas reencontradas.
Fragmentos soltos aqui e além
onde meus passos me levaram
na errância de caminhos onde sou
peregrina só de mim e onde vou
refazendo o que só eu sei refazer
neste tempo que já é de entardecer. 

Aurora Simões de Matos




Contracapa do livro "Poentes de mar e serra" (esgotado)


terça-feira, 3 de julho de 2012

QUANDO O VERSO SE DESFOLHA


SABORES

"Todos os homens se nutrem, mas poucos sabem distinguir os sabores."
Confúcio


"No que conseguires ler, não procures tanto o saber, mas o sabor."
São Bernardo 


Eu era menina

No meu quintal, sorriam tons de todos os verdes
e sabores de todos os vermelhos.
Pelo lençol de leito fresco, a água renascia
em cada benção da terra.
Presentes embrulhados em sol de perfumes.
O ar da manhã era puro de respirar
e a brisa da tarde oferecia segredos
às folhas novas da figueira da rua
que era de toda a gente, contente de não ser de ninguém.
Eu era menina, na idade em que a vida não estorva.
Não me lembrava do tempo para trás
e o tempo para a frente tinha sempre o mesmo nome
e nele pouco mais contava
que o sol de perfumes sem espaço
a inundar de verdes o meu quintal
onde sorriam sabores.





     

Maria Alcina - "Cereja Carmim"




Sabores

Se levantares o braço,
poderás tocar os dois sabores
que se cruzam no fruto amadurecido
para que o provasses.

Ao alcance da boca, sentirás o que procuras
no sumo de cada polpa.

A partir dele, criarás os contrastes
do teu próprio paladar.








"Os dias não adquirem sabor, até que um escape à obrigação de ter um destino."
Emil Cioran



Aí seremos nós


A ternura com que o teu nome me enleva, me basta,
como se bastando me enchesse,
me consumasse todos os sentidos.

Não contes a ninguém de que cor são os frutos
que provamos pelo sumo de só provar
pelo prazer da semente.

Não contes nossos tudos e os nadas
de momentos que crescem
como se desertos de areia fossem.

Na hora de conhecermos a hora
de onde nascem as flores,
desses desertos aí seremos nós.

E as malhas do tempo alongar-se-ão
como nuvens pressurosas
do nosso beijo recuperado do nosso beijo.



" O sabor dos contos é a propriedade com que é empregada a língua."
Miguel De Cervantes


Aurora Simões de Matos
Todos os poemas, do livro "Uma Palavra" - (esgotado)