sábado, 16 de setembro de 2017

TRINTA POEMAS DE AMOR - da autoria de Aurora Simões de Matos

POESIA DISPERSA

(© todos os direitos reservados)



AUTORA  -  AURORA SIMÕES DE MATOS

(© todos os direitos reservados)


Foste tu

Foste tu que inebriaste a gargalhada que soltei do peito, no dia em que me
elegeste o cofre dourado dos teus tesouros. Que me endoideceste de
grandeza a pequenez do tédio. E me ofereceste bálsamos e flores amarelas
- as minhas preferidas - com que enfeitei, noite após noite, a monotonia do
quarto descolorido e a lonjura do meu sonho. Me embriagaste os sentidos,
no perfume do olhar com que amaste a minha intimidade. Me ensinaste a luxúria
e  levaste em bandeja de prata o beijo canibal, com que selámos aquele pacto de
vida e de morte. No dia em que o meu pudor compreendeu a linguagem de amar.

E que, partilhando comigo o mistério de dar vida a outras vidas,
me colocaste no pedestal mais alto que o artista esculpiu na praça maior
da nossa cidade.


***


CONTENTAMENTO


Andava por ti perdida, doida de contentamento. A minha rua parecia enfim a 
minha rua, a fervilhar de gente feliz, com sacos entulhados de guloseimas e 
braçados de ramos de camélias. Cada janela vestia cortinas lavadas para 
espreitar o meu contentamento, quando passava a caminho do encontro 
que marcara contigo, do outro lado da cidade.
Naquele tempo não encontrava muros nem sombras na minha rua. Os mendigos
riam da desventura. Os velhos punham gravatas para cumprimentar os meus
sentimentos, com mãos polidas do tempo que gastaram à espera desses dias.
O campanário da igreja da minha rua tocava a repique. Como só tocava quando 
queria dizer que, nos rostos das almas e das coisas, era dia de festa.

E o repique do sino do campanário ouvia-lo tu do outro lado da cidade, a 
anunciar-te que ia a caminho. Para te dizer que andava por ti perdida, doida de
contentamento.


***

PROXIMIDADE

Era a tarde perfeita. E não deveria nunca poder a hora ser mais certa, o
que restava de um gesto tão vivo. Alguém viria, o rosto confundido no 
outro. O rumo de uma fonte. A mão estendida. Alguém diria que nada
mais contava agora que encontrar a palavra certa. O sinal de si mesmo.
O nome das vestes rente à nudez, ao encontro das horas ditas sem pressa.
Depois, no olhar de cada um, desfeita a surpresa, o mesmo olhar impaciente.
E os sussurros levados pela brisa ao afago de um corpo comum.

Já nada nem ninguém seria tão próximo. É que por ali passava um raio
de sol, estendido no seu limite. O amor rondava a paisagem.

***




MOMENTOS ÍNTIMOS

Havia um nome que tinha de nascer. Esperá-lo era a maneira mais simples
de acreditar que haveria de chegar, no sentido único daquele enleio. O
deserto rasgado em linguagens que não são de entender. Uma onda de espuma
enrolada em sinais que não são de rasgar. Uma certeza inscrita em papel
que não é de escrever. Quando se encontraram na pele e no olhar, à hora da
intimidade  total, os lábios dela, tocados pelo mistério, beijaram o silêncio do
momento.

Como se aquele filho sonhado fosse o esboço secreto de um sorriso ainda por abrir.

***

REDENÇÃO

Era noite à transparência das penumbras que contornam o silêncio.
Naquele vazio perdido, continuou a imaginar a fundura do céu pelo
escuro da noite. Ouviu depois o seu nome a partir de outros lábios.
Em sílabas mordidas no beliscar da emoção. Alguém disse o seu
corpo em livro entreaberto na página que não se lê. Desfolhada e
estremecida. Na respiração molhada de todas as vezes que em si
morrera.

 A mão que a percorreu ao toque murmurado no delírio, evocou a vida 
como uma redenção.


***



                                                              JANELA

«Vens todas as madrugadas prender-te nos meus sonhos...»

Contigo trazes o segredo da vida e a alvorada da idade. Regato
de água cristalina que me acorda para a verdade do dia. Em
gotas suspiradas pelos ares que me respiram. Vens do fundo
da noite, com vestes de luar. Iluminas-me o quarto. Afastas o
cortinado rubro, com os dedos esguios de brandura. De mansinho,
como quem abre uma janela preciosa. A mais cobiçada do teu
mundo.

 E o sol entra-me contigo o dia inteiro.


***


                                                                      TAÇA

« A tua boca, taça misteriosa que ninguém mais possa encontrar...»

Quero beber-lhe o gosto até ao fim. Nela buscar o húmus líquido que
alimenta a terra sequiosa da minha sede. Para além da palavra, oiço-lhe
a música que canta a vida num beijo ardente. Há recantos do meu corpo,
onde só a tua boca vibrou na pele do gosto. Não preciso de mais nada.
Em todos os argumentos que inventasses, sempre haveria a singularidade
do gesto treinado para me fazeres feliz. Servido em taça de bordos rubros,
pelo mistério dulcificado no prazer do mel.

É única e só minha, a boca onde te bebo e tu me bebes.


***



                                                          PÉTALAS

« Comprei rosas encarnadas às molhadas dum vermelho estridente
 tão rubras como a febre que eu trazia...»

Encheu-se a minha cama de alegria. Que a cor das rosas não tardou
a despertar. Vozes dobradas na elegância dos lençóis. Bainhas lisas,
no recorte da linha com que se cose a emoção. Bordada a crivo aberto
de pequenos sinais. A brancura lasciva almofadada no interior da noite.
Marcas da mulher-amante que neles deixava perfumes de alexandria.
Eco de segredos sussurrados ao entardecer. O diálogo entre dois corações
que ali se desfolharam.

Nas pétalas que esvoaçaram suspiros, podiam ler-se mensagens que só
os nossos sentidos entenderam.


***


PENAR

«Asa negra que esvoaça negros dias ensombrados...»

Em que noite deixaste as penas luzidias que meu afã por ti amaciou
de carícias? Quem cativou o piar lânguido do teu espanto sofrido? Sei
que perdeste a largura do adejar que te sustinha, quando soltaste o
último penar em leito sem esplendor. Que é feito do esvoaçar alegre
ao redor do meu telhado tão só teu? Em que memórias escureceste de
sonhos a finura transparente do teu voo ?

Espero-te à hora do costume. No peitoril da janela frente ao mar. Esvoaça-me,
que te desensombrarei.


***


ESPERO A TUA PALAVRA

Não desisto de falar contigo e espero a tua palavra. Para ouvir o que pensas da 
noite e da madrugada. Do vulto que se perde e se denuncia pela luz. Do rosto
que se embrenhou na escuridão sem se despedir da lua. Por companhia o
rasto de uma estrela moribunda.
Sei que me ouves e não desisto de perguntar-te: A quem pertence o que perdemos
de nós? Será que cada um guardou o que o outro perdeu? A sombra é um vulto da
noite ou da madrugada?

Espero a tua voz. Ainda que seja só para dizer-me: « Encontrei o rasto de uma estrela
moribunda. O dia está aí.»


***



         SEDE

Era noite de cálidos regressos. Sorriu à vida na seiva inquieta
da saudade. O amor abrigado nos louros cabelos desgrenhados
de lassidão. Que em noites de volúpia a lassidão não se abriga
em qualquer veia. Confessou-se presunçosa de ser assim como
era. Na deriva das horas cegas sussurrando a lúcida aventura. Entre
duas emoções espalhou incenso de aromas. Dos lábios brotou-lhe
uma canção. Tão cúmplice como a virtude partilhada. «Se eu pudesse
dava-te um rio. Onde o meu nome boiasse à tona da maior fundura.
Trazê-lo à margem seria teu fado!».

 Adormeceu e sonhou que era nascente. Acordou a tremer cheia de sede.


***
             
                                                        VULCÃO

Era noite estrelada de sorrisos. Que se abriam tão serenos como
um desejo que chega devagar. Tão íntimos como um silêncio que
nos fecunda o tempo. Naquele momento ela acreditou que o
primeiro deus é o deus do amor. O deus de todas as esperanças.
Mesmo que um dia o fogo lambesse o que restasse do vulcão. Que
nele consumasse o grito dos que morrem. No acaso do último
instante. À boca da cratera aberta sem futuro nem perdão. Onde
os dois lados que somos se confundem na imensidão de um outro
deus.

O deus da ausência que recolhe em seu reino todas as
dúvidas. E nelas a escuridão do desencanto.


***


                                                QUIETUDE

Era noite rendida à cor que se merece. E naquele corpo fogoso
perdeu-se de encantamento. Precisa de silêncio agora. De ficar
calada e estendida no momento da última celebração. Apetece-lhe
chorar sem lágrimas nem remorso. Deixar-se ficar assim na quietude
de morrer por alguém. A porta está fechada e ninguém sabe de nada.

Justo será celebrar este descanso de prazer em si. Não quer beijos nem
abraços. Apenas uma mão que aperte a sua.


***



DECOTE


Naquela tarde não havia nuvens a abrir melindres no céu da
esplanada. O sol e a sombra em desatino quase perfeito. Não
fosse a vontade de pensar sonhando o gesto. Não fosse o vento
na agitação febril do estontear. Ou a crocância trincada do pão
carnal no saborear profundo da impaciência. Não fosse o vento
a segredar os anseios de um peito em chamas. Na insinuação
daquele seio a crescer de dureza rente ao coração. A poesia
estava toda ali. No decote atento de uma boca a oferecer cornucópias
de desejo. A fantasia gritante de quem morde. O desespero ofegante
de quem corre. A língua a viajar por entre os montes e os vales do
poema.

Não fosse a sombra do vento, o artista inventaria a luz. Para a imagem
guardada no último sorvo do retrato.


***

NUDEZ

Naquela visão furtiva reparou na bela ruiva que lhe deixava os nervos em
sobressalto incontido. Dengosa no andar perdido numa rua de Lisboa. Alta
e esguia como um arbusto sem folhagem de estorvo. O sorriso de ironia
estilizava-lhe a figura onde podiam ler-se sinais de madrugada. Qual
escultura de sensual nudez a escorrer aromas pela noite inteira.

No ciúme que despertou prazeres sem nome, adivinhou-se a alcova em que 
fulminou de prazer quem a esperava há tanto.


***

APETITE

Naquela hora de sede, murmurava-se o entardecer de um dia longo. A
garganta secava-lhe na agonia da falta. À procura da gota, que ao leve
toque de um beijo, anunciasse o deslizar sereno de um rio. Que serpenteasse
pela veia, na correnteza do apetite. Perto viria a turbulência da fonte, em
descontrolada corrida, que haveria de saciar-lhe a fome líquida.

Intensamente forte era o amor.

***

                                                                           BEIJO

Naquele instante de encontro o olhar cresceu. Quando a boca se insinuou
à intimidade total do grito. A vida em turbilhão morria e renascia. Sem
pressa nem ansiedade. Em purpúreo esplendor do infinito. No aberto incêndio
do desejo. Pois ali tudo era céu e inferno. Fogo e chuva. Vulcão de lava ardente.
Rio que desabava. Trovão a ribombar em seu lampejo. Pêssego de veludo e
sumo de uva.

Romã que amadurou no momento selvagem daquele beijo.


***



RETROSPETIVA

Medi o tempo pela distância do teu abraço. À hora de saber quantos
degraus de vida conquistada por uma aberta, em dia de outono
pardacento. Haverás de insinuar que só a infância sabe guardar os gestos
e as imagens que o tempo desnudou.

É como se o passado estivesse à minha espera para, embrulhado em filigranas
de amor, me entregar este presente onde sempre te pressinto.


****


SEMENTE

A ternura com que o teu nome me enleva, me basta. Como se bastando, me 
enchesse. Me consumasse todos os sentidos. Não contes a ninguém de que
cor são os frutos que provamos, pelo sumo de só provar pelo prazer da 
semente. Não contes  nossos tudos e os nadas de momentos que crescem
como se desertos de areia  fossem. Na hora de conhecermos a hora de onde
nascem as flores, desses desertos aí seremos nós. 

E as malhas do tempo alongar-se-ão como nuvens pressurosas do nosso 
abraço, recuperado do nosso sangue.

***

TRÊS CAMINHOS

Era noite de três caminhos. O primeiro não tinha saída. Cumpria um destino
na senda do vestígio cujo sentido ia dar a um corpo deserto. As palavras
ficavam-lhe suspensas da sombra onde a luz se escondera na cegueira. O 
segundo era povoado de mitos que tornavam o ar irrespirável. Entre a razão
da impaciência e o desassossego do assombro. Que não servia o que se espera 
da harmonia com que se traduz o amor. No mistério de um olhar tranquilo encontrou
a promessa dentro dos últimos lábios que beijou. 

E o abraço tornou-se mais longo. Acabava na mesma fonte que fora seu começo. O 
terceiro caminho aconteceu já dentro da madrugada.

***

TODOS OS RIOS COMEÇAM NA NASCENTE 

Se eu pudesse
dava-te a beber o avesso destas águas

Talvez que nelas ainda descobrisses
o avesso de um rosto
ou a parte frontal de um coração

Talvez que nestas pedras desnudadas
fosses a tempo de insculpir teu nome

Se eu pudesse
dava-te a correnteza serena de uma fonte






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                                            INÉDITOS



Leitura estranha

Sem pressa de chegar
atravessaremos juntos
o deserto de uma noite
aberta enfim por tua mão
Um corpo a celebrar
a descoberta das águas
a descoberta do fogo
o luar, surpresa da madrugada

Um corpo rota da seda escravo em ti

Será preciso morrer
para dedilhar o canto adormecido
do grito em sangue
Uma após outra a penumbra de tamanha solidão

Só tu a lê-lo 
na página aberta fechada há tanto
que por ser branca
há-de lembrar a agonia da culpa a ser rasgada

Leitura estranha!

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DISTÂNCIA MAGOADA

Procurei a luz nas vertentes de um sorrir tranquilo
à hora da noite madura naquele amanhecer tardio

Surgiste pétala de maresia na alvorada
por onde escolheste teus caminhos de mar

E a pele da água foi deserto que se cumpriu
no fulgor da maré a espraiar-se
rente a um corpo que se pressentiu a gotejar loucura

Por um fim de tarde na distância magoada
entre a onda e o adeus


***

ANSEIOS BRANCOS

Semeaste gestos de ternura sobre o meu corpo, em
segredo de luz. Para que nele florescessem caminhos 
no futuro imperfeito, que é o tempo onde se escondem
os alfabetos de que se não conhecem as letras por inteiro.

Colheste nele as notas musicais com que entoaste a mais
bela canção de amor, entrelaçado de sorriso em nossos dedos. 
Como se no sangue a pulsar anseios brancos, a cor das emoções
nas minhas veias fosse todo o sossego do teu peito. 
Em que morremos uma e outra vez.

***
FATALIDADE

Devagar no vagar dos mimos que me deste a arder a
timidez de cada som desabrochou a flor fruto maduro
com que noite após noite saciaste a gula imprevisível
do teu olhar de fogo.

Conta-me agora se o vento anoiteceu a hora crepuscular
da dúvida, para que  não cumprisses o resto do caminho que
trocaste por desertos lascivos, por onde te perdeste
no labirinto de uma dimensão onde sempre existirá o
meu retrato.

***


COMO NUM SOPRO

Não vás com pressa, pára um pouquinho e lê. 
É um simples poema. Simples como simples 
deve ser a palavra que toca o coração.
Não vás com pressa. Ouve a brisa que passa 
em seu terno embalar, soprando o meu poema 
ao teu ouvido. 
Se achares bem, leva-o contigo nesse bolso 
onde só te caiba a mão.
Pode ser que ao encontrares o meu poema
uma carícia te perpasse a mão dormente
um sorriso se abra em teu olhar
uma luz se ilumine no teu rosto
uma febre te percorra o corpo
e por meu gosto, como num sopro
te apeteça reviver o verbo amar.

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4 comentários:

Manuel Araújo da Cunha disse...

Vinte pedaços de vida a quem o amor tocou de todas as formas de que é feito. Vinte lembranças, recordações de momentos felizes. Vinte poemas que falam a língua pura do amor.
Curvo-me perante a escrita que alguém soltou no ar da poesia o perfume do amor sem saber que fazendo-o, estava a mudar o mundo, a criar a mais bela de todas as rosas.
Felicito-a Aurora Simões de Matos distinta e grande senhora das letras.
Abraço

raiz de xisto disse...

Falar de amor é falar de vida, em abordagens que aqui se cumpriram, pela verdade do sabor total. Bem haja por assim o entender também. Por ousar a atitude de no-lo contar. Por, ao curvar-se perante as minhas lembranças, ter criado a insinuação das suas. E, simples e naturalmente como quem bebe para matar a sede, assumir a normalidade de encantamentos e desencantos que fazem parte do tudo e do nada que nos redime. Na palavra e no gesto que nos dão sentido maior.

Obrigada, Poeta Manuel Araújo da Cunha, pelas emoções que aqui soltou, em consonância com a sensibilidade rara que costuma expor nos seus escritos.

O meu abraço.

aurora gaia disse...

Tão belos os momentos em que falar do amor é falar da vida.!
...e o amor está nos nossos olhos e no nosso sentir a Vida.
Obrigada adorei
Aurora Gaia




raiz de xisto disse...

Porque o amor é tão natural como o respirar, sempre encarei este tema com a maior descontracção, pela verdade da vida.

Sei que pensas como eu, querida Aurora Gaia, minha amiga MEDEIA de excelência.

Grande abraço de poesia!

Aurora Simões de Matos