sábado, 2 de julho de 2016

" A ÚLTIMA ROTA DA TRANSUMÂNCIA "


O Montemuro em Lisboa

Estrela – Montemuro: A Última Rota da Transumância

( Excerto da Palestra  de  Aurora Simões de Matos )
Dia 11/ 04/ 2015



É sempre uma grande honra, um enorme orgulho e um imenso prazer representar o Montemuro, seja onde for. Contudo, temos que convir que, representá-lo fora de portas, aumenta responsabilidade e desafio. Acresce ainda que, integrada nesta Embaixada Castrense, jovem e dinâmica, com o sangue todo na guelra e o entusiasmo à flor da pele, me exige sorte e  esforço não de pouca monta.

Falei em desafio. Desafio é entrar na capital da urbanidade e do brando clima, tentando impôr um lugar que honre a, até há pouco considerada, na sua rusticidade agreste e rigoroso clima,  " a serra mais desconhecida de Portugal". 





Desafio será manter interessada uma plateia, acabadinha de mergulhar no romantismo de emocionantes cultos, no lendário de místicas lendas, no rendilhado de rezas e crenças que nos fascinam... trazendo-a de novo à tona e encaminhando-a para uma viagem transumante que nada tem a ver com misteriosas espiritualidades ou românticos misticismos. Que nada tem a ver com subjectividades e ilusões que nos envolvem com a sua aura. Antes com tempos e trabalhos muito concretos, duros e penosos. Com o esforço do homem pela melhoria das suas condições de vida, traduzidas na melhoria das condições de vida dos animais de que depende a sua sobrevivência. Desafio é, pois, levar-vos, de boamente e vontade de reviver, nesta já anunciada viagem transumante, por terras da  Beira de muitos de nós, aqui presentes.




Transumância é, desde tempos imemoriais da protohistória, a deslocação sazonal dos animais, entre duas zonas de clima distinto, em busca de melhores pastagens, pastagens mais frescas que garantissem um melhor desenvolvimento dos animais. Fenómeno perfeitamente arreigado, pelas suas características oro - climáticas, na vida rural de toda a Península Ibérica, em tempos da romanização. Com o gado herbívoro:  o vacum, o caprino, o lanígero, o cavalar.



Não me alongarei na HISTÓRIA DA TRANSUMÂNCIA através dos tempos e dos espaços, pela manifesta falta de tempo. Que poderei dizer em tão poucos minutos, sobre o tanto que haveria a referir sobre o tema??? Apenas o essencial.

Apenas falar um pouco sobre a chamada " ÚLTIMA ROTA DA TRANSUMÂNCIA "...  os caminhos por onde os rebanhos da Estrela se dirigiam ao Montemuro, durante séculos e séculos, na certeza de melhores pastos e consequentes melhores carnes.

( ... )

Mas toda esta movimentação, que implicava uma séria organização de tempos, afazeres, logísticas e compromissos entre pastores e agricultores, era minuciosamente preparada.



Pelo S. João, a 24 de Junho, mais dia menos dia, vários guardadores de gado, sempre sob orientação do respeitado MAIORAL, juntavam os rebanhos em Barbeita, às portas de Viseu. Ali, onde as boas gentes da Beira Interior desde logo faziam jus à solidariedade e à hospitalidade que as caracterizam. Oferecendo comida, vinho e convívio.

Ao outro dia, madrugada cerrada, eram horas de encetar a longa caminhada, antes que o calor viesse a apertar e o gado resolvesse amorroar nalguma sombra a jeito. Mões seria o destino dessa jornada conjunta, depois da passagem por Cavernães e Pedras Negras. Sempre ao largo das povoações, caminhando pelas seculares CANADAS, caminhos entre muros baixos de pedra solta, construídos em tempos imemoriais, com o fito de, por ali, serem mais facilmente controladas as reses.

Antes da pernoita, uma série de rituais a cumprir pelos pastores-guardadores. A recolha do leite, a alimentação e a acomodação dos animais. Que o pastor cozinheiro, esse tinha a seu cargo a farta ceia de massa com feijão e um naco de carne de porco. E vinho à discrição. Que o esforço merecia-o.


No dia seguinte, novamente de madrugada, chegava a  hora de levantar poiso. Era "A FESTA" da passagem dos rebanhos por Castro Daire e havia que ter-se em conta as horas de menor trânsito. Passado aquele troço de 300 metros pela estrada nacional e subida a Ponte Pedrinha, o gado era conduzido pelo centro da vila. O anúncio era dado pelo rapazio que, depois de muito perscrutar o horizonte, de ouvidos alerta, proclamava em alta voz: «LÁ VEM O REBANHO!!! LÁ VEM O REBANHO!!!»

As gentes da sede do  concelho e de fora dele, acorriam ao sinal, postando-se à beira da via, numa multidão sedenta de apreciar e viver um momento inesquecível. As janelas, varandas e passeios enchiam-se de curiosos, ávidos daquela visão, daquele cheiro, daquele som, daquela sensação de coisa rara.




Em meados do século XX, o conceituado geógrafo português, Amorim Girão, assistiu do Jardim Público de Castro Daire, à passagem dos rebanhos transumantes, milhares de cabeças de ovelhas, na sua maioria.

E deles haveria de escrever, como sendo " o mais curioso espectáculo pastoril que nos é dado a presenciar na terra portuguesa." Pela enorme quantidade de animais. Pelo alegre alarido da assistência (em surdina, para não os espantar). Pelo cansado chocalhar dos guizos, que emprestava ao ambiente um tom de bucolismo único. Pelo colorido dos enfeites que alguns animais exibiam, quais figurantes de desfile de S. João. Por toda a curiosidade despertada por esse Cartaz Turístico, a favor de uma região onde era romântico emblema.



Dali ao Monte Raso, no Rossão, ia ainda uma grande pousa. Sempre pelas canadas seculares, a caminho de um destino ansiado por homens e reses. Tudo muito bem combinado e organizado. Desde as provisões para animais e humanos, ao arrendar dos montes aos seus donos. Às Juntas de Freguesia, à Mordomia da Igreja do Rossão, muitas vezes a particulares, em troca de um terreno bem estrumado para a sementeira do centeio.



Se era fácil a vida destes pastores ou, à moda local, destes pegureiros, nos dois meses de Montemuro? Pelo contrário. Muito difícil, exigente, mesmo penosa. De grande responsabilidade, pesada tarefa, rigorosos horários do nascer ao pôr do dia, a separação da família, o isolamento nas tapadas e montes de uma zona familiar e simultaneamente estranha.



Se a prática da TRANSUMÂNCIA tinha influências na vida da nossa serra? Claro que sim e a vários níveis. Desde logo e indubitavelmente, a nível económico, social, ambiental, da biodiversidade, turístico. Etnográfico. Músicas e linguagens, vocabulários pastoris, lendas, crenças, rezas, superstições, costumes, práticas alimentares, jogos tradicionais. Saberes e práticas. A circulação e a partilha. O panorama histórico e cultural em efervescência. O lendário a marcar um conjunto de vivências e de evidências. Agora na memória das gentes.. A perpetuar uma cultura milenar.

Cultura milenar desde os tempos, como disse, da Romanização da Península. Desses tempos em que havia leis que reconheciam a transumância e protegiam as vias dos pastores e os lugares de pastagem.. Romanos e visigodos o fizeram, reconhecendo a importância de tais movimentações sazonais de gados. Estrabão, o grande historiador e geógrafo grego dos princípios do primeiro milénio, a ela se refere, como de grande importância e amplitude espacial. Importância ainda maior na Idade Média. A formação dos grandes rebanhos transparecem nos textos dos primeiros forais. O tipo e o número de cabeças de gado eram reveladores do grau de riqueza e determinavam o estatuto dos seus detentores. E não esqueçamos que o século XII foi um período forte na história destas deslocações, quando os rebanhos aumentaram notavelmente o número de animais. Embora o século XVIII tenha sido a mais brilhante época da Transumância. Resultado da enorme procura de lã  de qualidade nos mercados internacionais.



O fenómeno mantém-se em alta até meados do século XX, em toda a Península. Em finais do mesmo século XX, começou a época  de uma forte diminuição das cabeças de gado e dos rebanhos envolvidos.  Assiste-se  a uma decadência generalizada, tanto em Portugal como em Espanha.




Os caminhos pastoris que ligam a Estrela ao Montemuro, por motivos óbvios, passaram a ser conhecidos, nas últimas duas décadas, por "ÚLTIMA ROTA DA TRANSUMANCIA". E a última viagem dos rebanhos aconteceu no Verão de 1999.



Ficou uma memória solta no tempo. Memória que ainda hoje ecoa pelas tapadas montemuranas, em busca de uma razão.

E claro que há várias razões para que assim tivesse sido:



--  Os progressivos avanços da propriedade privada, em desfavor dos baldios

--  O colapso das economias rurais das nossas serras

--  A desertificação brutal das nossas aldeias serranas

--  O envelhecimento das populações, cada vez mais frágeis

--  A migração cada vez mais acentuada para os centros urbanos, pois que aí estão concentradas as oportunidades de emprego

--  A dificuldade no recrutamento de pastores

--  A melhoria das condições de vida humana e do acesso à educação

--  O progresso dos factores " transportes" e " novas tecnologias"

--  A abertura de múltiplas novas estradas que foram cortando a face da serra em todas as direcções, roubando espaços de pastoreio

--  A arborização de várias zonas da serra, assim como da ribeira, que acabou também com muitas das " vigias" , rebanhos locais colectivos e de guarda comunitária, de maior ou menor tamanho

--  A quebra no quadro das estruturas de autosubsistência das gentes do Montemuro

--  A diminuição das cabeças de gado, neste tipo de pastoreio ao ar livre, em benefício de novos modos de estabulação

--  Um crescente individualismo dos criadores







Restam as antigas vias pecuárias, as CANADAS, caminhos entre muros, que atravessam os montes e constituem um valioso património histórico cultural. Marca identirária de uma longa época.



Restam duas datas associadas à Transumância no Montemuro. O S.João, a 24 de Junho, data da chegada e o S. Bartolomeu, a 24 de Agosto, data da partida dos rebanhos



Restam histórias e memórias que vinham, segundo a crença popular, dos tempos de Viriato. De uma prática  mais que evidente dos povos lusitanos e do seu suporte económico, durante o período da Reconquista.



Restam as saudades da actividade que se afirmou como um dos mais fortes e duradouros factores identitários do mundo rural do Montemuro.




Mas será que tudo acabou de vez? Irremediavelmente?

Sinceramente, pessoalmente, creio que seria muito difícil, pelos motivos irreversíveis que levaram a esta situação, reactivar a prática normal da Transumância. No entanto, há a boas notícias possíveis. 

Em Junho de 1999, o INSTITUTO SUPERIOR POLITÉCNICO DE VISEU,   A ESCOLA SUPERIOR AGRÁRIA DE VISEU E   A ASSOCIAÇÃO PARA A DEFESA DA CULTURA AROUQUENSE organizaram um importante Colóquio, que despoletou enorme interesse por parte de Historiadores e de diversos nomes  credenciados em outras áreas do conhecimento. Muito participado, este PRIMEIRO COLÓQUIO  sobre Transumância, com o sugestivo título: " MONTEMURO - A ÚLTIMA ROTA DA TRANSUMÂNCIA ". Ocasião privilegiada para abordagem do tema, pela primeira vez em Portugal.  A conclusão foi a de que, apesar do risco de extinção,  da actividade transumante, ela deveria ser aproveitada para a divulgação dos seus aspectos culturais, antropológicos, sociais e turísticos, através da dinamização da rota. Dinamização essa que, segundo notícias de há muito pouco tempo nas redes sociais, vai começar já neste Verão de 2015, talvez( digo eu) inscrita no programa das Festas do Concelho. Assim, o rebanho voltará  a passar. Não com a pujança de outrora. Naturalmente que não. Nos mesmos moldes, sim, que nunca no mesmo número de animais.






O ressurgir louvável de uma tradição, por iniciativa da Câmara Municipal de Castro Daire. Mas apenas como CARTAZ TURÍSTICO. Temos que lançar mão do que temos. E é muito nossa a prática (ainda não longínqua) da Transumância, que constitui,  sem  dúvida, um dos factores identitários da nossa terra.

Aqui, não posso deixar de referir a " CARTA EUROPEIA SOBRE O ESPAÇO RURAL". Que aconselha e incentiva ao DESENVOLVIMENTO RURAL, pela permanente e apropriada ocupação  do território, com a finalidade de reforçar a agricultura, como sector produtor de bens e serviços. Sustentabilidade que passa pelo trinómio AMBIENTE/ AGRICULTURA/ TURISMO. Mas isso são outras conversas que nos conduzem a sistemas políticos que não temos tempo sequer para aflorar. Mas aqui é que está o problema da questão. Trata-se de desenvolver o mundo rural e devolver-lhe capacidades próprias de revitalização. Não sei se iremos a tempo, quebrados que estão os principais laços com o tradicional.

 Será que as carnes certificadas de grande qualidade e o famoso queijo da serra chegariam para justificar tal revitalização??? Quem sou eu para aventar uma resposta???



Para terminar esta curta intervenção (curta por manifesta e imerecida falta de mais tempo), faço questão de o fazer com um poema de um dos meus livros, publicado em 1997... "Poentes de mar e serra ". De homenagem ao pastor, esse nómada conhecedor de velhos caminhos serranos. A imagem libertária que, dele, pessoalmente guardo:

" Dá-me tudo o que te peço " 



                                                                                                                                       Imagem da net


Dá-me a água do cantil que trazes a tiracolo...
Dá-me a bucha do bornal
e não me leves a mal
que te peça para mim o burel e o cotim 
desse modo de vestir
com que passeias o monte por longos dias sem fim...

Dá-me a flauta de cana e a música com que enfeitas
as horas mortas que deitas nesse chão que não te engana...

Dá-me o sol e dá-me a chuva do tempo agreste em teu rosto,
dá-me manhãs de fescura e trindades ao sol posto...

Dá-me teus vãos pensamentos sem destino, vagabundos,
e dá-me o silvo dos ventos e a sombra dos vales profundos...

Dá-me o teu tempo sem fim, que o quero para mim,
e se puderes, dá-me os mundos que trazes nos sentimentos...

Dá-me tudo o que te peço e mesmo o que te não peço
mas ainda pra dar tens
quando vais e quando vens por todos esses caminhos 
de lendários carreirinhos 
que se perdem na memória
e a serra esconde em seu rosto e tu percorres por gosto
dessa vida re...pe...ti...da...
de gestos gastos......sem história.

*****


Aurora Simões de Matos

( fotos Google)


Clicar no link abaixo, para ver o vídeo " AMOR PASTORIL "-poema de Aurora Simões de Matos, musicado e cantado por Gervásio Pina



https://youtu.be/KuchxpUZaJo
https://youtu.be/KuchxpUZaJo


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