O Montemuro em Lisboa
Estrela – Montemuro: A Última Rota da
Transumância
( Excerto da Palestra de Aurora Simões de Matos )
Dia 11/ 04/ 2015
Falei em
desafio. Desafio é entrar na capital da urbanidade e do brando clima, tentando
impôr um lugar que honre a, até há pouco considerada, na sua rusticidade
agreste e rigoroso clima, " a serra mais desconhecida de
Portugal".
Desafio
será manter interessada uma plateia, acabadinha de mergulhar no romantismo de
emocionantes cultos, no lendário de místicas lendas, no rendilhado de rezas e
crenças que nos fascinam... trazendo-a de novo à tona e encaminhando-a para uma
viagem transumante que nada tem a ver com misteriosas espiritualidades ou
românticos misticismos. Que nada tem a ver com subjectividades e ilusões que
nos envolvem com a sua aura. Antes com tempos e trabalhos muito concretos,
duros e penosos. Com o esforço do homem pela melhoria das suas condições de
vida, traduzidas na melhoria das condições de vida dos animais de que depende a
sua sobrevivência. Desafio é, pois, levar-vos, de boamente e vontade de
reviver, nesta já anunciada viagem transumante, por terras da Beira de
muitos de nós, aqui presentes.
Transumância
é, desde tempos imemoriais da protohistória, a deslocação sazonal dos animais,
entre duas zonas de clima distinto, em busca de melhores pastagens, pastagens
mais frescas que garantissem um melhor desenvolvimento dos animais. Fenómeno
perfeitamente arreigado, pelas suas características oro - climáticas, na vida
rural de toda a Península Ibérica, em tempos da romanização. Com o gado
herbívoro: o vacum, o caprino, o lanígero, o cavalar.
Não me
alongarei na HISTÓRIA DA TRANSUMÂNCIA através dos tempos e dos espaços, pela
manifesta falta de tempo. Que poderei dizer em tão poucos minutos, sobre o
tanto que haveria a referir sobre o tema??? Apenas o essencial.
Apenas
falar um pouco sobre a chamada " ÚLTIMA ROTA DA TRANSUMÂNCIA "...
os caminhos por onde os rebanhos da Estrela se dirigiam ao Montemuro,
durante séculos e séculos, na certeza de melhores pastos e consequentes
melhores carnes.
( ... )
( ... )
Mas toda
esta movimentação, que implicava uma séria organização de tempos, afazeres,
logísticas e compromissos entre pastores e agricultores, era minuciosamente
preparada.
Pelo S.
João, a 24 de Junho, mais dia menos dia, vários guardadores de gado, sempre sob
orientação do respeitado MAIORAL, juntavam os rebanhos em Barbeita, às portas
de Viseu. Ali, onde as boas gentes da Beira Interior desde logo faziam jus à
solidariedade e à hospitalidade que as caracterizam. Oferecendo comida, vinho e
convívio.
Ao outro
dia, madrugada cerrada, eram horas de encetar a longa caminhada, antes que o
calor viesse a apertar e o gado resolvesse amorroar nalguma sombra a jeito.
Mões seria o destino dessa jornada conjunta, depois da passagem por Cavernães e
Pedras Negras. Sempre ao largo das povoações, caminhando pelas seculares
CANADAS, caminhos entre muros baixos de pedra solta, construídos em tempos
imemoriais, com o fito de, por ali, serem mais facilmente controladas as reses.
Antes da
pernoita, uma série de rituais a cumprir pelos pastores-guardadores. A recolha
do leite, a alimentação e a acomodação dos animais. Que o pastor cozinheiro,
esse tinha a seu cargo a farta ceia de massa com feijão e um naco de carne de
porco. E vinho à discrição. Que o esforço merecia-o.
As gentes
da sede do concelho e de fora dele, acorriam ao sinal, postando-se à
beira da via, numa multidão sedenta de apreciar e viver um momento
inesquecível. As janelas, varandas e passeios enchiam-se de curiosos, ávidos
daquela visão, daquele cheiro, daquele som, daquela sensação de coisa rara.
Em meados
do século XX, o conceituado geógrafo português, Amorim Girão, assistiu do
Jardim Público de
Castro Daire, à passagem dos rebanhos transumantes, milhares de cabeças de
ovelhas, na sua maioria.
E deles
haveria de escrever, como sendo " o mais curioso espectáculo pastoril que
nos é dado a presenciar na terra portuguesa." Pela enorme quantidade de
animais. Pelo alegre alarido da assistência (em surdina, para não os espantar).
Pelo cansado chocalhar dos guizos, que emprestava ao ambiente um tom de
bucolismo único. Pelo colorido dos enfeites que alguns animais exibiam, quais
figurantes de desfile de S. João. Por toda a curiosidade despertada por esse
Cartaz Turístico, a favor de uma região onde era romântico emblema.
Dali ao
Monte Raso, no Rossão, ia ainda uma grande pousa. Sempre pelas canadas
seculares, a caminho de um destino ansiado por homens e reses. Tudo muito bem
combinado e organizado. Desde as provisões para animais e humanos, ao arrendar
dos montes aos seus donos. Às Juntas de Freguesia, à Mordomia da Igreja do
Rossão, muitas vezes a particulares, em troca de um terreno bem estrumado para
a sementeira do centeio.
Se era
fácil a vida destes pastores ou, à moda local, destes pegureiros, nos dois
meses de Montemuro? Pelo contrário. Muito difícil, exigente, mesmo penosa. De
grande responsabilidade, pesada tarefa, rigorosos horários do nascer ao pôr do
dia, a separação da família, o isolamento nas tapadas e montes de uma zona
familiar e simultaneamente estranha.
Se a
prática da TRANSUMÂNCIA tinha influências na vida da nossa serra? Claro que sim
e a vários níveis. Desde logo e indubitavelmente, a nível económico, social,
ambiental, da biodiversidade, turístico. Etnográfico. Músicas e linguagens,
vocabulários pastoris, lendas, crenças, rezas, superstições, costumes, práticas
alimentares, jogos tradicionais. Saberes e práticas. A circulação e a partilha.
O panorama histórico e cultural em efervescência. O lendário a marcar um
conjunto de vivências e de evidências. Agora na memória das gentes.. A
perpetuar uma cultura milenar.
Cultura
milenar desde os tempos, como disse, da Romanização da Península. Desses tempos
em que havia leis que reconheciam a transumância e protegiam as vias dos
pastores e os lugares de pastagem.. Romanos e visigodos o fizeram, reconhecendo
a importância de tais movimentações sazonais de gados. Estrabão, o grande
historiador e geógrafo grego dos princípios do primeiro milénio, a ela se
refere, como de grande importância e amplitude espacial. Importância ainda
maior na Idade Média. A formação dos grandes rebanhos transparecem nos textos
dos primeiros forais. O tipo e o número de cabeças de gado eram reveladores do
grau de riqueza e determinavam o estatuto dos seus detentores. E não esqueçamos
que o século XII foi um período forte na história destas deslocações, quando os
rebanhos aumentaram notavelmente o número de animais. Embora o século XVIII
tenha sido a mais brilhante época da Transumância. Resultado da enorme procura
de lã de qualidade nos mercados internacionais.
O fenómeno
mantém-se em alta até meados do século XX, em toda a Península. Em finais do
mesmo século XX, começou a época de uma forte diminuição das cabeças de
gado e dos rebanhos envolvidos. Assiste-se a uma decadência
generalizada, tanto em Portugal como em Espanha.
Os
caminhos pastoris que ligam a Estrela ao Montemuro, por motivos óbvios,
passaram a ser conhecidos, nas últimas duas décadas, por "ÚLTIMA ROTA DA
TRANSUMANCIA". E a última viagem dos rebanhos aconteceu no Verão de 1999.
Ficou uma
memória solta no tempo. Memória que ainda hoje ecoa pelas tapadas montemuranas,
em busca de uma razão.
E claro
que há várias razões para que assim tivesse sido:
--
Os progressivos avanços da propriedade privada, em desfavor dos baldios
-- O
colapso das economias rurais das nossas serras
-- A
desertificação brutal das nossas aldeias serranas
-- O
envelhecimento das populações, cada vez mais frágeis
-- A
migração cada vez mais acentuada para os centros urbanos, pois que aí estão
concentradas as oportunidades de emprego
-- A
dificuldade no recrutamento de pastores
-- A
melhoria das condições de vida humana e do acesso à educação
-- O
progresso dos factores " transportes" e " novas
tecnologias"
-- A
abertura de múltiplas novas estradas que foram cortando a face da serra em
todas as direcções, roubando espaços de pastoreio
-- A
arborização de várias zonas da serra, assim como da ribeira, que acabou também
com muitas das " vigias" , rebanhos locais colectivos e de guarda
comunitária, de maior ou menor tamanho
-- A
quebra no quadro das estruturas de autosubsistência das gentes do Montemuro
-- A
diminuição das cabeças de gado, neste tipo de pastoreio ao ar livre, em
benefício de novos modos de estabulação
Restam as
antigas vias pecuárias, as CANADAS, caminhos entre muros, que atravessam os
montes e constituem um valioso património histórico cultural. Marca identirária
de uma longa época.
Restam
duas datas associadas à Transumância no Montemuro. O S.João, a 24 de Junho,
data da chegada e o S. Bartolomeu, a 24 de Agosto, data da partida dos rebanhos
Restam
histórias e memórias que vinham, segundo a crença popular, dos tempos de
Viriato. De uma prática mais que evidente dos povos lusitanos e do seu
suporte económico, durante o período da Reconquista.
Restam as
saudades da actividade que se afirmou como um dos mais fortes e duradouros
factores identitários do mundo rural do Montemuro.
Mas será
que tudo acabou de vez? Irremediavelmente?
Sinceramente,
pessoalmente, creio que seria muito difícil, pelos motivos irreversíveis que
levaram a esta situação, reactivar a prática normal da Transumância. No
entanto, há a boas notícias possíveis.
Em Junho
de 1999, o INSTITUTO SUPERIOR POLITÉCNICO DE VISEU, A ESCOLA SUPERIOR
AGRÁRIA DE VISEU E A ASSOCIAÇÃO PARA A DEFESA DA CULTURA AROUQUENSE
organizaram um importante Colóquio, que despoletou enorme interesse por parte
de Historiadores e de diversos nomes credenciados em outras áreas do
conhecimento. Muito participado, este PRIMEIRO COLÓQUIO sobre
Transumância, com o sugestivo título: " MONTEMURO - A ÚLTIMA ROTA DA
TRANSUMÂNCIA ". Ocasião privilegiada para abordagem do tema, pela primeira
vez em Portugal. A conclusão foi a de que, apesar do risco de extinção,
da actividade transumante, ela deveria ser aproveitada para a divulgação
dos seus aspectos culturais, antropológicos, sociais e turísticos, através da
dinamização da rota. Dinamização essa que, segundo notícias de há muito pouco
tempo nas redes sociais, vai começar já neste Verão de 2015, talvez( digo eu)
inscrita no programa das Festas do Concelho. Assim, o rebanho voltará a
passar. Não com a pujança de outrora. Naturalmente que não. Nos mesmos moldes,
sim, que nunca no mesmo número de animais.
O ressurgir louvável de uma tradição, por iniciativa da Câmara Municipal de Castro Daire. Mas apenas como CARTAZ TURÍSTICO. Temos que lançar mão do que temos. E é muito nossa a prática (ainda não longínqua) da Transumância, que constitui, sem dúvida, um dos factores identitários da nossa terra.
O ressurgir louvável de uma tradição, por iniciativa da Câmara Municipal de Castro Daire. Mas apenas como CARTAZ TURÍSTICO. Temos que lançar mão do que temos. E é muito nossa a prática (ainda não longínqua) da Transumância, que constitui, sem dúvida, um dos factores identitários da nossa terra.
Aqui, não
posso deixar de referir a " CARTA EUROPEIA SOBRE O ESPAÇO RURAL". Que
aconselha e incentiva ao DESENVOLVIMENTO RURAL, pela permanente e apropriada
ocupação do território, com a finalidade de reforçar a agricultura, como
sector produtor de bens e serviços. Sustentabilidade que passa pelo trinómio
AMBIENTE/ AGRICULTURA/ TURISMO. Mas isso são outras conversas que nos conduzem
a sistemas políticos que não temos tempo sequer para aflorar. Mas aqui é que
está o problema da questão. Trata-se de desenvolver o mundo rural e
devolver-lhe capacidades próprias de revitalização. Não sei se iremos a tempo,
quebrados que estão os principais laços com o tradicional.
Será
que as carnes certificadas de grande qualidade e o famoso queijo da serra
chegariam para justificar tal revitalização??? Quem sou eu para aventar uma
resposta???
Para
terminar esta curta intervenção (curta por manifesta e imerecida falta de mais
tempo), faço questão de o fazer com um poema de um dos meus livros, publicado
em 1997... "Poentes de mar e serra ". De homenagem ao pastor, esse
nómada conhecedor de velhos caminhos serranos. A imagem libertária que, dele,
pessoalmente guardo:
" Dá-me tudo o que te peço "
https://youtu.be/KuchxpUZaJo
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