segunda-feira, 29 de maio de 2017

Singela homenagem a minha amiga e companheira Maria da Glória, que morreu na adolescência, quando um raio a surpreendeu debaixo de um castanheiro, no cumprimento do dever comunitário de guardar o rebanho da aldeia


O destino de Carmita



Cá… chita…chita… recha…recha… aqueiva aí… aqueiva… vira cá… chita, chita, aqui, rrrrrrr… reeecha… vira cá… aqueiva aí… rrrrrrr…

Nesta linguagem bem colorida com algumas asneirolas à mistura, começava o dia da jovem pegureira Maria do Carmo, entre ovelhas e cordeiros fofinhos e mansos, cabras e seus filhotes de pelo sedoso, carneiros e bodes corpulentos com seu odor característico. Cada família abria a porta ao gado que, juntando-se ao dos vizinhos, formava a vigia, a longa mancha compacta em movimento que, ao som da guizalhada a vários tons, emprestava um sinal de vida bem animado aos caminhos da aldeia.

Era o começo da manhã e assim principiava, em alvoroço festivo, entre sons musicais e alarido de vozes, uma das tarefas diárias mais comuns da boa gente ribeirinha. Tarefa que obrigava ao empenho e divisão do esforço comunitário.

Maria do Carmo gostava deste trabalho, da largueza de espaços, do ar puro da montanha, do acordar com neblinas e agitar o último sono das gentes. Gostava de acompanhar de perto as reses prenhes e assistir-lhes ao parto doloroso, pegar nas crias e oferecer-lhes colo e afagos, beber o leite acabado de tirar ao úbere cheio das cabras-mães. Gostava de sair com a vigia na vez dos pais, da avó e de quem a rogasse, quando adregava.

Na primavera, quando os dias começavam a aquecer, era tempo de fazer a tosquia aos lanzudos. E ela lá estava, sempre presente no corte da lã que, depois de lavada e limpa, haveria de ser enxuta, escarpeada, fiada, dobada e torcida.


- Ó Bonita, que ficaste tão feiinha!... gargalhava com graça, dirigindo-se a uma das ovelhas que, depois de tosquiada, ficara parecida com uma avestruz depenada de quatro patas. Deixa lá, Bonita, que assim ficas mais fresca.

E, com leves toques, ia ajeitando o resto da lã que sobrara no corpo despido de cada um dos animais, que conhecia pelo nome próprio: Mimosa, Farrusca, Maluca, Galdéria, Lindeza, Zarolho, Calado, etc…


O monte era lugar de falsa lonjura, já que todo o maninho circundante, desde a Tenreira à Murteda, da Malhada à Truílha, do Côto a Pinteu, não iria muito além de meia légua ao redor.

- Carmita, não te esqueças das piúcas! – lembrava a avó.

- Já calcei as piúcas, para não me esgadanhar. Como havia de andar entre tojos e chamiças, sem piúcas? Também para o sol me não queimar as pernas. Quem mas dera ter branquinhas como a Rosa Costureira! Já cá levo tudo, avó. A lã e as agulhas de meia vão aqui e a merenda aqui vai também! – retorquiu a jovem, apontando para o cesto merendeiro, enfiado no braço esquerdo, enquanto que, com a vergasta na mão direita, ia encaminhando o gado pelo caminho da fonte.

- Rrrr…rrrr…recha…recha…cá…chita…chita…chita…aqueiva aí… Ó Ti Jaquim, bote p’ra cá. Vamos para o Barroco do Lodeiro ou para o Souto da Nogueirinha?

- Para o Souto. Sempre há mais sombra, que se elas amorroam com o calor entre os fentos, é mais custoso…

- Vamos lá… recha… vira cá…

Pelo meio-dia, debaixo de um castanheiro isolado, enquanto o gado descansava, Maria do Carmo preparava-se para comer o bacalhau frito que a mãe lhe arranjara, ainda madrugada.

- Quer uma bucha, Ti Jaquim?

- Não,  que também aqui tenho. Mas olha que parece-me que vamos ter mais canseira. A Boneca está muito aflita. Se calhar, vamos ter cabritinho novo.



De roda do animal, a pegureira deu asas aos seus instintos mais solidários. Já não o largou. Pelo meio da tarde, o olhar da cabra tornou-se distante, fixo no último castanheiro. Esbugalhou-se até não poder mais e ali, um pouco desviada, entre esgares e gemidos cabreses, sobre um pano branco que Carmita trazia sempre consigo para o efeito, deu à luz o primeiro cabritinho. A moça amparou-o com amor, limpou-o, deitou-o no chão ao lado da mãe e deu-lho a lamber.

- Ti Jaquim, pegue lá este presente. Leve-o ao colo e vá indo com o gado, que parece que vem aí uma valente trovoada. Eu já o apanho, já o apanho. E vocês, amiguinhos, portem-se bem e que ninguém fuja do carreiro. Por favor!

O velhote juntou os animais que, desusadamente pachorrentos, o seguiram cabisbaixos.

Carmita ficou sozinha, a socorrer a Boneca, que parecia não sossegar. Habituada àquelas andanças, deu a moça conta de que outra cria estaria para nascer. Mas, apesar do esforço, a cabra não conseguia expeli-la. Estaria atravessada?

Entretanto, começara a chover com força e a anoitecer devagarinho. A trovoada aumentava, atroando os ares. Rastos de luz riscavam o céu carregado, em várias direções.

- S. Jerónimo e Santa Bárbara Virgem! – suspirava a pegureira e rezavam os aldeões, de olhos fixos no monte.

- Anda para aqui, Boneca! Vamos para debaixo deste castanheiro mais alto…

Nesse instante, um gigantesco estrondo pareceu rebentar Céus e Terra. Ao mesmo tempo, a estranha faísca de luz atravessou os ares em direção ao Souto da Nogueirinha, rachou ao meio o castanheiro mais alto e enfiou-se na terra,  deixando um buraco fumegante a cheirar a queimado.



À boca do Povo, abrandou a trovoada e cada casa abriu a porta da corte. Entregue o cabritinho ao dono, Ti Jaquim informou que a companheira tinha ficado para trás com a Boneca, mas que devia chegar em breve.

Perante a demora da jovem e aproximando-se a noite, um grupo de vizinhos, aflitos, foram em sua demanda.

Encontraram o corpo calcinado, debaixo do castanheiro maior do Souto da Nogueirinha, rachado ao meio. A seu lado, sem dar sinais de vida, a Boneca, ainda quente.

À última hora, no momento decisivo e à luz de lanternas, um dos aldeões abriu-lhe a barriga e tirou uma linda cabritinha, a que foi posto o nome de Carmita.




                                                                          * Aurora Simões de Matos

Do livro " CONTOS DE XISTO", Edições Esgotadas, 2013

               

( imagens da net)
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