O destino de Carmita
Cá… chita…chita… recha…recha…
aqueiva aí… aqueiva… vira cá… chita, chita, aqui, rrrrrrr… reeecha… vira cá…
aqueiva aí… rrrrrrr…
Nesta linguagem bem colorida com
algumas asneirolas à mistura, começava o dia da jovem pegureira Maria do Carmo,
entre ovelhas e cordeiros fofinhos e mansos, cabras e seus filhotes de pelo
sedoso, carneiros e bodes corpulentos com seu odor característico. Cada família
abria a porta ao gado que, juntando-se ao dos vizinhos, formava a vigia, a
longa mancha compacta em movimento que, ao som da guizalhada a vários tons,
emprestava um sinal de vida bem animado aos caminhos da aldeia.
Era o começo da manhã e assim
principiava, em alvoroço festivo, entre sons musicais e alarido de vozes, uma
das tarefas diárias mais comuns da boa gente ribeirinha. Tarefa que obrigava ao
empenho e divisão do esforço comunitário.
Maria do Carmo gostava deste
trabalho, da largueza de espaços, do ar puro da montanha, do acordar com
neblinas e agitar o último sono das gentes. Gostava de acompanhar de perto as
reses prenhes e assistir-lhes ao parto doloroso, pegar nas crias e
oferecer-lhes colo e afagos, beber o leite acabado de tirar ao úbere cheio das
cabras-mães. Gostava de sair com a vigia na vez dos pais, da avó e de quem a
rogasse, quando adregava.
Na primavera, quando os dias
começavam a aquecer, era tempo de fazer a tosquia aos lanzudos. E ela lá
estava, sempre presente no corte da lã que, depois de lavada e limpa, haveria
de ser enxuta, escarpeada, fiada, dobada e torcida.
- Ó Bonita, que ficaste tão feiinha!... gargalhava com graça,
dirigindo-se a uma das ovelhas que, depois de tosquiada, ficara parecida com
uma avestruz depenada de quatro patas. Deixa lá, Bonita, que assim ficas mais fresca.
E, com leves toques, ia ajeitando
o resto da lã que sobrara no corpo despido de cada um dos animais, que conhecia
pelo nome próprio: Mimosa, Farrusca,
Maluca, Galdéria, Lindeza, Zarolho, Calado, etc…
O monte era lugar de falsa
lonjura, já que todo o maninho circundante, desde a Tenreira à Murteda, da
Malhada à Truílha, do Côto a Pinteu, não iria muito além de meia légua ao
redor.
- Carmita, não te esqueças das
piúcas! – lembrava a avó.
- Já calcei as piúcas, para não
me esgadanhar. Como havia de andar entre tojos e chamiças, sem piúcas? Também
para o sol me não queimar as pernas. Quem mas dera ter branquinhas como a Rosa
Costureira! Já cá levo tudo, avó. A lã e as agulhas de meia vão aqui e a
merenda aqui vai também! – retorquiu a jovem, apontando para o cesto
merendeiro, enfiado no braço esquerdo, enquanto que, com a vergasta na mão
direita, ia encaminhando o gado pelo caminho da fonte.
-
Rrrr…rrrr…recha…recha…cá…chita…chita…chita…aqueiva aí… Ó Ti Jaquim, bote p’ra
cá. Vamos para o Barroco do Lodeiro ou para o Souto da Nogueirinha?
- Para o Souto. Sempre há mais
sombra, que se elas amorroam com o calor entre os fentos, é mais custoso…
- Vamos lá… recha… vira cá…
Pelo meio-dia, debaixo de um castanheiro isolado, enquanto o gado descansava, Maria do Carmo preparava-se para comer o bacalhau frito que a mãe lhe arranjara, ainda madrugada.
Pelo meio-dia, debaixo de um castanheiro isolado, enquanto o gado descansava, Maria do Carmo preparava-se para comer o bacalhau frito que a mãe lhe arranjara, ainda madrugada.
- Quer uma bucha, Ti Jaquim?
- Não, que também aqui tenho. Mas olha que parece-me
que vamos ter mais canseira. A Boneca
está muito aflita. Se calhar, vamos ter cabritinho novo.
De roda do animal, a pegureira
deu asas aos seus instintos mais solidários. Já não o largou. Pelo meio da
tarde, o olhar da cabra tornou-se distante, fixo no último castanheiro.
Esbugalhou-se até não poder mais e ali, um pouco desviada, entre esgares e
gemidos cabreses, sobre um pano branco que Carmita trazia sempre consigo para o
efeito, deu à luz o primeiro cabritinho. A moça amparou-o com amor, limpou-o,
deitou-o no chão ao lado da mãe e deu-lho a lamber.
- Ti Jaquim, pegue lá este
presente. Leve-o ao colo e vá indo com o gado, que parece que vem aí uma
valente trovoada. Eu já o apanho, já o apanho. E vocês, amiguinhos, portem-se
bem e que ninguém fuja do carreiro. Por favor!
O velhote juntou os animais que,
desusadamente pachorrentos, o seguiram cabisbaixos.
Carmita ficou sozinha, a socorrer
a Boneca, que parecia não sossegar.
Habituada àquelas andanças, deu a moça conta de que outra cria estaria para
nascer. Mas, apesar do esforço, a cabra não conseguia expeli-la. Estaria
atravessada?
Entretanto, começara a chover com
força e a anoitecer devagarinho. A trovoada aumentava, atroando os ares. Rastos
de luz riscavam o céu carregado, em várias direções.
- S. Jerónimo e Santa Bárbara
Virgem! – suspirava a pegureira e rezavam os aldeões, de olhos fixos no monte.
- Anda para aqui, Boneca! Vamos para debaixo deste
castanheiro mais alto…
Nesse instante, um gigantesco
estrondo pareceu rebentar Céus e Terra. Ao mesmo tempo, a estranha faísca de
luz atravessou os ares em direção ao Souto da Nogueirinha, rachou ao meio o
castanheiro mais alto e enfiou-se na terra,
deixando um buraco fumegante a cheirar a queimado.
À boca do Povo, abrandou a
trovoada e cada casa abriu a porta da corte. Entregue o cabritinho ao dono, Ti
Jaquim informou que a companheira tinha ficado para trás com a Boneca, mas que devia chegar em breve.
Perante a demora da jovem e
aproximando-se a noite, um grupo de vizinhos, aflitos, foram em sua demanda.
Encontraram o corpo calcinado,
debaixo do castanheiro maior do Souto da Nogueirinha, rachado ao meio. A seu
lado, sem dar sinais de vida, a Boneca,
ainda quente.
À última hora, no momento
decisivo e à luz de lanternas, um dos aldeões abriu-lhe a barriga e tirou uma
linda cabritinha, a que foi posto o nome de Carmita.
* Aurora Simões de Matos
Do livro " CONTOS DE XISTO", Edições Esgotadas, 2013
* Aurora Simões de Matos
Do livro " CONTOS DE XISTO", Edições Esgotadas, 2013
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