segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Homenagem a uma bonita relação de avô e neto

LITERATURA INFANTIL

( CONTO DE AURORA SIMÕES DE MATOS )



Para o meu neto Miguel, de seis anos, ( e hoje com doze), escrevi este conto que lhe ofereço, com muito amor.

****** Os Anjos das Nuvens ******

Chovia... chovia... chovia...
Não era aquela chuva grossa que, em certos dias invernosos, parece querer desabar do Céu em longas cordas, por onde podem descer os Anjos das Nuvens.
Não era aquela chuva certinha, benfazeja aos rios e regatos, poços e albufeiras, hortas e renovos, pomares e searas de pão. Disposta a matar a sede aos homens, aos animais e aos Anjos das Nuvens, quando na terra se demoram a conquistar o coração das crianças.

Chovia... chovia... chovia...
Era uma chuva miudinha, uma molinha, levezinha, levezinha, que em vez de cair, subia e andava pelo ar, com vontade de brincar. A balouçar-se por sobre as casas e os campos, os jardins e os caminhos dos homens. Assim, como se uma réstIa de sol envergonhado, atravessando os ares, encontrasse uma brisa fresca e nela deixasse o suor dos seus cansaços.

Era uma chuva miudinha, um chuvisco que mais parecia orvalho. O dia não estava quente, mas também não havia grande frio. Tanto que o menino, debaixo do alpendre por detrás da casa, à beira da porta que dava para o quintal, brincava sozinho com os seus piões de todas as cores. Lançava-os uns contra os outros e, naquele rodopio doido, imaginava o que um menino de seis anos pode imaginar. Mas estaria sozinho por pouco tempo.
- Avô... avô... o carro vermelho é mais forte que o verde. O verde foi contra ele, atingiu-o no para-brisas e ele nem se desviou, nem abrandou. Continuou à mesma velocidade. E o verde abrandou e caiu para o lado.
- Podia ter havido um grande acidente! - exclamou o avô, entrando na onda do pequenito.
- Por acaso até podia, porque bateram com muita força. E vão cheios de passageiros, numa bela viagem.
- Não me digas! Onde será que eles vão?
- Vão mostrar o comboio ao filho mais pequeno.
- Então não atires nada contra eles. Podes assustar quem lá vai dentro. Deixa-os ir sossegados.

O avô percebeu a intenção do menino.
- Miguelito, também queres ir ver o comboio?
- Claro que quero! - respondeu, abrindo mais o olhar e o sorrir.
E, chamando para dentro de casa:
- Mamã, posso ir com o avô ver o comboio?
- Podes sim, mas antes quero que chegues aqui à janela e vejas o arco-íris. Olha que lindo, além, a ligar o ribeiro à encosta do monte.


- É muito grande e às cores!... Avô, já viste o arco-íris?
- Já vi muitos, quando o sol quer brincar com os Anjos das Nuvens. Costuma formar-se em dias húmidos, porque a chuvinha também gosta de entrar na brincadeira. O sol e a chuva combinam e armam aquele grande arco a ligar o ribeiro ao monte, passando pelo Céu.
- E tem tantas cores...
- Pois é. Tem sete cores o arco-da-velha.
- O que é o arco-da-velha? - gargalhou Miguelito.
- É como na minha aldeia se chama ao arco-íris. E também há quem o chame arco-da-aliança. Mas é sempre o mesmo arco. Tem sete cores e por isso é que é tão bonito e vistoso. Toda a gente para um instante só para o contemplar, pois que ele raramente aparece.
- E tem luz...
- É a luz do sol, muito suave, a iluminar as gotinhas de água que o chuvisco deixou no ar ou que se desprenderam do ribeiro. Por essas gotinhas de cores variadas é que hão de subir os Anjos das Nuvens ao seu lugar no Céu, por entre as estrelas da noite e as nuvens brancas do dia.
- Mas eu não vejo os anjos a subirem...
- Nunca, nunca ninguém os viu. Mas todos sabem que eles estão lá, sentadinhos nas cores do arco-íris.
- Gostava tanto de os ver... E que estão ali a fazer?


- Pois eu explico-te. Quando chove com muita força, os  Anjos das Nuvens descem pelas cordas de chuva, desde o Céu até à Terra. Dizem que vêm proteger as crianças. Elas não dão conta, mas eles observam-nas, riem com as suas alegrias, entristecem quando elas ficam doentes... ou quando fazem tolices...
- E agora vão-se todos embora, penduradas nas cores do arco-íris?
- Não, não! Vão alguns, mas outros ficam. Lembras-te daquela chuva grossa da semana passada? Pois de certezinha que alguns deles desceram à Terra nessa ocasião. Estes que vão hoje embora, já cá andavam há mais tempo. Penso eu e penso bem.
- Estás a falar a sério, avô? Tu às vezes inventas...
- Olhem só para o meu neto, a desconfiar da minha conversa!

E Miguelito, deslumbrado com as palavras do avô e com a beleza e tamanho daquele arco colorido, pergunta, sem dele tirar os olhos muito abertos:
- E se, em vez de irmos ver o comboio, fôssemos ver mais de perto o arco-íris?
- Não convém... porque podemos assustar algum anjo e ele cair e magoar-se. Olha que nunca ninguém viu um espetáculo daqueles, assim de muito perto! Penso eu e penso bem. Só se deve ver de uma certa distância, sem perturbar o que ali se passa.
Mas Miguelito não desarma.
- Nunca vi nenhum Anjo das Nuvens a olhar para mim. Gostava bem de ver. São assim, da minha altura, avô?
- Pois eu também nunca vi nenhum, mas sei que alguns andaram perto de mim, quando eu era menino como tu.


A mãe interrompeu, sorrindo:
- Pensas tu e pensas bem, meu pai!
- Claro! Então eu ensino-vos aos dois aquilo que aprendi com o meu avô, que Deus tem há muitos anos.
Cada grupo de anjos tem na Terra uma missão muito especial, conforme a cor que ocupa no arco-íris.
Os que agora sobem ao Céu pela cor vermelha abençoaram as crianças com a inteligência e a sabedoria.
Os que sobem pela cor laranja vieram trazer-lhes a vontade e o querer.
Os da cor amarela ofereceram aos meninos a alegria e a felicidade de poderem brincar.
Aqueles que estão agora sentados na cor verde deixaram aos pequeninos a capacidade de pensar e de sonhar.
Mas os donos da cor azul são também os donos do amor e da amizade que espalharam pelo mundo da infância.
E os anjos responsáveis pela cor anil presentearam a pequenada com duas grandes qualidades: o respeito e a gratidão a quem possa fazer-lhes bem.

- Só falta uma cor, avô!
- Pois é. Só falta o violeta . Deixa lá ver se me lembro o que me ensinou o meu avô!... Já sei, já sei... Os anjos da cor violeta trouxeram para as crianças um braçado de afetos que eles, pela vida fora, hão de distribuir pelos que os rodeiam. E pensando melhor: oxalá que o meu neto tenha algum para me dar hoje, porque me sinto cansado de tanto pensar e recordar.


Já Miguelito se aninha no colo do avô, cobrindo-o de beijos e de mimos. E a mamã, sorrindo de ternura, abraça também seu pai.
- Mas, ó pai, tu nunca me falaste a mim dessas coisas tão bonitas...
- Pois não, porque estas são conversas próprias de avós e netos. E ainda não falei nos cânticos dos Anjos das Nuvens.


E continuou:
- Com as sete notas musicais, uma por cada cor do arco-íris, compõem-se todos os cânticos da Terra. E também os do Céu. Então, cada grupo de anjos e todos juntos podem compor as mais belas melodias. Assim, vão enfeitando a natureza com diversos sons, acordes e canções.

- Nunca ouvi! - interveio o rapazinho.
- Nem eu! - acrescentou a mamã.
- Pois não é bem assim. Penso eu e penso bem.

Então, quem não ouviu o som brando da brisa levezinha nas folhas do plátano? E a vozearia forte do vento, a soprar quando se zanga?

Então, quem não ouviu a música cristalina da água a correr mansinha no regato? E o bramido violento do mar, quando se desdobra em altas ondas revoltadas?

Então, quem não sentiu a branca neve a tombar fofinha no jardim? E a saraiva brincalhona a saltitar às bolinhas, nas pedras da calçada? E o cantar da chuva no telhado, a embalar a gente?

Então, e quem não ouviu o eco de um grito lançado à boca de um poço vazio? E o ribombar estrondoso do trovão a amedrontar o mundo?

- Tudo isso tem uma explicação! - interrompeu a mamã.



- Já o meu avô, que Deus tem há muitos anos, achava que esses sons da natureza eram obra dos Anjos das Nuvens. E eu também acredito. E tu, Miguelito?
- Eu também acredito, porque foi o avô que disse.

- Um dia, quando fores velhote, vais também ensinar estas histórias aos teus netos.
- Mas eu não quero ser velhote...
- Porquê? Ainda falta muuuuuito tempo.
- Porque os velhotes já trabalharam tanto e eu não gosto. Eu só quero brincar, avô.

- É o que eu digo. Acho que faltaram anjos que trouxessem vontade de trabalhar a esta malta...


A chuva miudinha acabou por dar lugar a um sol fagueiro, de consolar o corpo e o espírito. O arco-íris desaparecera como por encanto. No seu lugar, ficaram os pensamentos de quem, algum dia, acreditou na passagem dos Anjos das Nuvens por ali.


        Aurora Simões de Matos



O Conto  "Os Anjos das Nuvens" foi publicado no livro " Leituras "

Edição em co-autoria ( Setembro de 2012 )


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