domingo, 14 de outubro de 2012


Burra escondida… com o corpo de fora

(in Contos de Xisto)



Uma noite, quando regressava do moinho, pelo carreiro das Devesas, afigurou-se-lhe ver o Tonho das Cancelas, agachado entre o milho, como quem, na calada da escuridão, se escondesse do mundo. Ainda esteve para voltar a cabeça, na tentativa de perceber a situação e encontrar uma certeza. Tão estranho!

O Tonho das Cancelas?! O que faria naquele lugar isolado das gentes, àquela hora tardia de vida, naquela posição de quem espreitava para não ser espreitado? Estaria a satisfazer alguma necessidade do corpo, que ninguém pudesse cumprir por si? O Tonho? Seria mesmo ele ou o diabo por ele?

Assim pensando, Alfredo Carriço fez figas, benzeu-se, recitou o Credo e seguiu caminho, sem olhar para trás, meio desconfiado.

O Tonho das Cancelas?! Ali… longe da casita onde morava sozinho desde que a mãe, viúva e acamada, se finara, ia para dois anos, deixando-o ao cuidado dos mesmos vizinhos que a tinham acompanhado até à ultima hora?


Filho único, nascera já fora de tempo, no aproximar da velhice dos pais. Viera ao mundo sãozinho e escorreito. Mas quis a sorte que, aos seis anos, a terrível meningite o deixasse incapacitado para o resto da vida. Incapacitado de grandes pensamentos e raciocínios, inteligência e hipótese de grandes êxitos. Incapacitado de se exprimir por palavras que todos entendessem, pois a fala entaramelava-se-lhe e nem sempre era fácil percebê-lo.

Fisicamente, não havia moço mais desenxovalhado nas redondezas. Alto e bem parecido, não se lhe conheciam maleitas que o impedissem de trabalhar, de conviver, divertir-se e mesmo namoriscar.

Todos gostavam dele. Por compaixão, mas também pela sua boa disposição e ausência de maldade. As vizinhas revezavam-se na lavagem da roupa e, aos domingos, havia sempre alguém a chamá-lo para a sua mesa de almoço melhorado.

Durante o resto da semana, ele lá se arranjava, com o pouco que era capaz de cozinhar.

Gostava de andar limpo e asseado. Lavateava-se, vezes sem conta, no rego de água que, rumo às quelhas de Vale Fundeiro, lhe passava quase rente às cancelas, cantando o que só ele entendia.

Talvez por isso, aquele rego de água fosse o seu maior amigo, confidente de quantas alegrias e mágoas lhe iam atravessando a vida.

Aprendera a adormecer ao canto daquela voz líquida de murmúrios e aprendera a acordar aos tropeços da corrente irregular. Aprendera o passar do tempo, nas horas dos dias e das noites, com o volume da água que alternava na estreita levada, e aprendera a conhecer-se de feições, na limpidez daquele espelho rumorejante. Aprendera que, depois de ultrapassar as cancelas do quinteiro que lhe emprestaram o nome, era preciso ultrapassar o rego e que, para lá dele, havia um mundo a descobrir. Aprendera, enfim, que, para vencer um obstáculo, sempre teria que experimentar um passo maior.


Naquela noite quente de verão, apetecera-lhe ir até ao rio. E foi já perto dele que, num silvado que servia de extremas a dois milheirais, parou a apanhar amoras, à luz do luar.

Foi daí que se lhe afigurou ver o Alfredo Carriço a vir do moinho, pelo carreiro acima. Ia a casa buscar mais um taleigo de centeio, que a burra Mulata, manca de velha, não pudera com o carrego completo e teve que, à última hora, descarregar o contrapeso.

Alfredo fez o que tinha de fazer e regressou ao velho moinho, com o saquito às costas. Ao chegar, nem queria acreditar no que via, ou antes, no que não via. A burra, que ficara presa a um amieiro, desaparecera misteriosamente.

Lembrou-se então do Tonho das Cancelas, ou do diabo por ele, que se lhe tinha afigurado ver. Benzeu-se outra vez, olhou ao derredor, chamou o animal; mas nem um zurro, nem um bater de casco.

Quando amanheceu, foi o Carriço à procura da Mulata, por entre montes e vales, carreiros e ribeirinhos, giestais e matagais, por atalhos que lhe foram comendo as forças.

Sabia que o Tonho não tinha currais, mas sempre espreitou pelas cancelas entreabertas. Nada se notava. Apenas uns barulhos esquisitos vindos do interior da casita de xisto e o murmúrio da água correndo pelo rego, onde o rapazola se lavateava, como era seu costume.

Alfredo mandou rezar um responso a Santo António, advogado das coisas perdidas e, pela burra, ofereceu uma vela para a festa da Santa Padroeira.

E não é que a Santa Padroeira ouviu as suas orações, aceitou a vela e fez o milagre?

No dia da festa, no fim da Eucaristia, o povo, atrás do andor da Santa, organizou-se em procissão até ao Cruzeiro, rezando e entoando cânticos.

A fechar o cortejo, o Tonho das Cancelas, com ar solene, montado na burra manca, ia respondendo às palavras do Senhor Abade:

Arre Mulata… cheia de graça… Arre Mulata… entre as mulheres… Arre Mulata… rogai por nós… Arre Mulata… agora e na hora da nossa morte. Amem.
Aurora Simões de Matos
in Contos de Xisto
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