Burra
escondida… com o corpo de fora
(in Contos de Xisto)
Uma noite, quando regressava do moinho, pelo carreiro das Devesas,
afigurou-se-lhe ver o Tonho das Cancelas, agachado entre o milho,
como quem, na calada da escuridão, se escondesse do mundo. Ainda
esteve para voltar a cabeça, na tentativa de perceber a situação e
encontrar uma certeza. Tão estranho!
O Tonho das Cancelas?! O que faria naquele lugar isolado das gentes,
àquela hora tardia de vida, naquela posição de quem espreitava
para não ser espreitado? Estaria a satisfazer alguma necessidade do
corpo, que ninguém pudesse cumprir por si? O Tonho? Seria mesmo ele
ou o diabo por ele?
Assim pensando, Alfredo Carriço fez figas, benzeu-se, recitou o
Credo e seguiu caminho, sem olhar para trás, meio desconfiado.
O Tonho das Cancelas?! Ali… longe da casita onde morava sozinho
desde que a mãe, viúva e acamada, se finara, ia para dois anos,
deixando-o ao cuidado dos mesmos vizinhos que a tinham acompanhado
até à ultima hora?
Filho único, nascera já fora de tempo, no aproximar da velhice dos
pais. Viera ao mundo sãozinho e escorreito. Mas quis a sorte que,
aos seis anos, a terrível meningite o deixasse incapacitado para o
resto da vida. Incapacitado de grandes pensamentos e raciocínios,
inteligência e hipótese de grandes êxitos. Incapacitado de se
exprimir por palavras que todos entendessem, pois a fala
entaramelava-se-lhe e nem sempre era fácil percebê-lo.
Fisicamente, não havia moço mais desenxovalhado nas redondezas.
Alto e bem parecido, não se lhe conheciam maleitas que o impedissem
de trabalhar, de conviver, divertir-se e mesmo namoriscar.
Todos gostavam dele. Por compaixão, mas também pela sua boa
disposição e ausência de maldade. As vizinhas revezavam-se na
lavagem da roupa e, aos domingos, havia sempre alguém a chamá-lo
para a sua mesa de almoço melhorado.
Durante o resto da semana, ele lá se arranjava, com o pouco que era
capaz de cozinhar.
Gostava de andar limpo e asseado. Lavateava-se, vezes sem conta, no
rego de água que, rumo às quelhas de Vale Fundeiro, lhe passava
quase rente às cancelas, cantando o que só ele entendia.
Talvez por isso, aquele rego de água fosse o seu maior amigo,
confidente de quantas alegrias e mágoas lhe iam atravessando a vida.
Aprendera a adormecer ao canto daquela voz líquida de murmúrios e
aprendera a acordar aos tropeços da corrente irregular. Aprendera o
passar do tempo, nas horas dos dias e das noites, com o volume da
água que alternava na estreita levada, e aprendera a conhecer-se de
feições, na limpidez daquele espelho rumorejante. Aprendera que,
depois de ultrapassar as cancelas do quinteiro que lhe emprestaram o
nome, era preciso ultrapassar o rego e que, para lá dele, havia um
mundo a descobrir. Aprendera, enfim, que, para vencer um obstáculo,
sempre teria que experimentar um passo maior.
Naquela noite quente de verão, apetecera-lhe ir até ao rio. E foi
já perto dele que, num silvado que servia de extremas a dois
milheirais, parou a apanhar amoras, à luz do luar.
Foi daí que se lhe afigurou ver o Alfredo Carriço a vir do moinho,
pelo carreiro acima. Ia a casa buscar mais um taleigo de centeio, que
a burra Mulata, manca de velha, não pudera com o carrego
completo e teve que, à última hora, descarregar o contrapeso.
Alfredo fez o que tinha de fazer e regressou ao velho moinho, com o
saquito às costas. Ao chegar, nem queria acreditar no que via, ou
antes, no que não via. A burra, que ficara presa a um amieiro,
desaparecera misteriosamente.
Lembrou-se então do Tonho das Cancelas, ou do diabo por ele, que se
lhe tinha afigurado ver. Benzeu-se outra vez, olhou ao derredor,
chamou o animal; mas nem um zurro, nem um bater de casco.
Quando amanheceu, foi o Carriço à procura da Mulata, por
entre montes e vales, carreiros e ribeirinhos, giestais e matagais,
por atalhos que lhe foram comendo as forças.
Sabia que o Tonho não tinha currais, mas sempre espreitou pelas
cancelas entreabertas. Nada se notava. Apenas uns barulhos esquisitos
vindos do interior da casita de xisto e o murmúrio da água correndo
pelo rego, onde o rapazola se lavateava, como era seu costume.
Alfredo mandou rezar um responso a Santo António, advogado das
coisas perdidas e, pela burra, ofereceu uma vela para a festa da
Santa Padroeira.
E não é que a Santa Padroeira ouviu as suas orações, aceitou a
vela e fez o milagre?
No dia da festa, no fim da Eucaristia, o povo, atrás do andor da
Santa, organizou-se em procissão até ao Cruzeiro, rezando e
entoando cânticos.
A fechar o cortejo, o Tonho das Cancelas, com ar solene, montado na
burra manca, ia respondendo às palavras do Senhor Abade:
Arre Mulata… cheia de graça… Arre Mulata… entre
as mulheres… Arre Mulata… rogai por nós… Arre Mulata…
agora e na hora da nossa morte. Amem.
Aurora Simões de Matos
in Contos de Xisto
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