segunda-feira, 28 de novembro de 2016

O CICLO DO LINHO


LINHO DOR... LINHO AMOR





Ecoavam pelos ares secas pancadas
À hora do calor, debaixo das ramadas

Era o martírio do linho
Estranho ritual de dor
Que obrigava a castigar o nosso amor
Em penosa festa
À beira do caminho

Linhaça no linhal
Semeado, regado, mondado
Linho amado de corpo e alma
Linho bendito que o povo salma
Em cânticos perfumados de ternura
A suavizar mil gestos de tortura
Tortura... amor também
Raízes arrancadas sem dó nem piedade
Ao aconchego da terra sua mãe

Repouso refrescante
Em água límpida e reconfortante
Suavidade e maciez
Em leito de bondade
No ribeiro de murmúrios doloridos
Aos caules ressequidos

À hora do calor debaixo das ramadas
Ecoavam pelos ares secas pancadas



Mãos calejadas da fiadeira
Mãos sofridas fiando a tarde inteira
Torcendo o linho com jeitinho
Girando o fuso devagarinho
Mãos molhadas na boca
Jogo de sedução do fuso para a roca

Mãos que dobavam dobadoira louca
Incansável girar em rodopio
Na canseira de enovelar o fio


Sala da tecedeira, artista da teia e do tear
Fio cruzado, entrecruzado
Fio com arte por fim armado
Teia tecida, entretecida, para cá, para lá, até cansar
E outra, e tanta vez
Ao ritmo da dança de seus pés

Pano tecido que cobria coradoiros
De aromas a limpeza, aromas a barrela
Quadro de tortura
Dor com estigmas de fogo ardente
Carvão e cinza, água fervente
Marcando sinais de finíssima brancura










Pano corado
Terno panal de pia baptismal
Lençol de noiva cem vezes contado
Rico ou pobre enxoval
Enfeite lindo de mesa pascal
Ornamento de altar, alva toalha
Fria e triste mortalha

Linho coragem, retrato todo dor
Na dor daquele bater, do maçar e do tascar
Na dor daquele sofrer do sedar e do arrepelar
Por gestos todos eles feitos de amor

Ecos de dor sentidos com ternura
Ternura, dor, saudade
Debaixo das ramadas da minha mocidade!




*Aurora Simões de Matos

( excerto do poema " Linho dor... linho amor )

in " Poentes de mar e serra" - 1997

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