quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Novo livro de Aurora Simões de Matos - " A Escola do Montemuro e beira-Paiva - desafios, conquistas e perdas"


CAPA DO LIVRO E PREFÁCIO, POR AGOSTINHO SANTA

Uma capa a lembrar saudades... sem saudosismos! ( da autoria da designer gráfica, Ana Coelho )
Foto de Carlos Batalha


PREFÁCIO

Quando o professor era mestre-escola


Quando a professora Aurora Simões de Matos falou comigo para escrever umas palavras introdutórias a um livro que tinha escrito, e soube a temática, confesso que fiquei curioso acerca da forma como a decidira abordar.

Pela cabeça passaram-me três caminhos que, ao falar de escola na sua evolução espaço temporal, haveria a tendência de seguir: o primeiro, obedecendo a um impulso saudosista, seria através de uma ode ao passado, fixando nele todas as virtudes, afastando todos os pecados; o segundo, aproveitando a oportunidade vingadora, seria a partir de um acerto de contas com tempos idos e realidades nevoentas, assacando-lhes todas as culpas e nenhuma salvação; o terceiro, refugiando-se num tom tendencialmente neutral, seria um repositório, mais ou menos comentado, de dados históricos e variações estatísticas.

Conhecendo a autora como mulher, como professora e como poeta, desde já antecipo que não acreditei que fosse por qualquer uma dessas vielas discursivas. Maior curiosidade me assaltou: como é que encontraria um percurso outro que se afastasse desses caminhos radicais, tantas vezes trilhados por outros.

Vi o texto que me entregou para uma primeira leitura ainda quente de lhe ter saído das mãos e do génio. E optara por outro caminho, contido dentro de pressupostos de equilíbrio, sem arrogâncias ou penalizações de um passado histórica e humanamente circunstanciado, sem endeusamentos ou diminuições inaceitáveis de um presente/futuro contextualmente assumido e valorado e sem o recurso desviante e protetor a um descritivo desfiar de números e fenómenos de uma complexa realidade social. É um registo impressivo, emotivo, real e circunstancial.

Embora reconduzida, no seu limitado mundo, ao Montemuro e à beira-Paiva do seu maior conhecimento e pessoal vivência, o que nos aparece nesta obra literária é a Escola em si mesma, viva, palpitante, multifacetada, evolutiva. Percebida e escrita com emoção. Colhida, como matriz iniciática, de uma memória a que quis, propositadamente, regressar, aí se perdendo e se encontrando, quatro, cinco décadas ou mais, em tempos e lugares recônditos em que a escola fazia a diferença e se afirmava com um misto de ficcional magia e de prosaica dureza. De forma natural, fala-nos de “quadro preto”, de “menina de cinco olhos”, de “20 carteiras para 62 alunos”, de “almoço côdea de pão”, de “óleo de fígado de bacalhau”, de “ida ao monte ou à sagreta”, de “piões, bilharda e bola de trapos”. E a nossa própria memória viaja para sítios onde cheirava a estrume e a bosta fresca de vaca, a broa quente do forno e a rosmaninho, onde se ouvia a rola, a poupa e o cuco e o zurrar impaciente do burro, onde se sentia, nos pés descalços, a humidade da terra e da erva e a aspereza dos calhaus.



Reflete a autora, assente sempre, em primeiro tom, na geografia serrana e interior em que se quis agarrada mas saindo dela para voos mais abrangentes, no que se foi passando, em metade do século XX e no dealbar do século XXI com a Escola. Não se coibiu de deixar juízos de opinião sobre alguns fenómenos que realçou, mesmo que se tenha sobre eles outros entendimentos:

- o analfabetismo dos anos cinquenta, sessenta, setenta do anterior milénio, associado a um mundo rural rude, económica, social e culturalmente pobre, combatido, com armas elas próprias limitadas, por uma escola de “sonhos e de vontades”, em que o ensino primário e a obtenção da quarta classe, comemorada esta com traje de festa, clamor e foguetório, tinham uma importância bem para além do título académico que conferiam;

- ainda nessas décadas, uma escola rudimentar, com poucas condições de habitabilidade quanto mais pedagógicas e didáticas, de uma exigência desmedida, em que “a quarta classe era uma epopeia”, servida pela repetição e memorização, tantas vezes ao som das “reguadas” e do choro acompanhado pelo “ranho” que as costas da mão pequenita se permitiam limpar;

- a “Reforma Veiga Simão”, seguida, já depois da revolução de abril, pela democratização do ensino, com apostas vincadas na reestruturação dos programas, na formação de professores, no aumento progressivo da escolaridade obrigatória, na criação de melhores condições estruturais e de frequência escolar; diz a professora Aurora que “o Montemuro estava agora mais culto e mais perto de tudo”;

- as crises económicas acopladas a políticas erradas e erráticas, que foram levando à desertificação dos lugares do interior rural e serrano; “E partem.” – diz a autora em tom singelamente acusador, mesmo com “canudos” que a escola proporciona;

- o movimento de encerramento de escolas, a partir de finais do século XX e a sequente criação de agrupamentos e mega agrupamentos, que levarão à impessoalização da relação professor/aluno, transformados esses espaços em “depósito de crianças”, cada vez mais desprezando a “pedagogia da proximidade” e fazendo com que nos anteriores sítios de escolarização, nas aldeias, nasçam “lugares fantasmas”; com isto tudo, “(…) O Montemuro e a beira-Paiva, como sempre, obedecem. Mas sofrem”.



Este livro, para além do mais, é um tributo a uma escola humanizada, em que os seus protagonistas, crianças e professores, fazem da proximidade a marca da sua específica e maior valia. Apresenta-nos, sem saudosismos bacocos, mas também sem menorizações ou remorsos, uma Escola que evoluiu e que, num momento essencial da sua história, foi servida por professoras e professores que eram mestres-escola. Só isso permite perceber o alcance do desabafo da Aurora: “Não tinha quase nada a minha escola” (…) “E, no entanto, tinha quase tudo”.

Eu, que vivi, como aluno, primeiro, e como profissional da educação, depois, a Escola de que o seu livro fala, nas suas variadas e evolutivas realidades e circunstâncias, só posso dizer-lhe: bem haja, professora Aurora, por me ter levado ao sorriso e às lágrimas com coisas que, aqui, escreveu e com histórias que aqui narrou. Semeou em mim a vontade de continuar a afirmar, com convicção, que um dia fui mestre-escola: “Bom dia, senhor professor!!!” Com orgulho.



                                                                                Agostinho Santa
                                                           Inspeção - Geral da Educação e Ciência


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