sexta-feira, 24 de novembro de 2017

PORTUGAL RURAL (2) - A FORNADA

TEXTO DE AURORA SIMÕES DE MATOS

IMAGENS DE ARMANDO JORGE


           (Imagens de um tempo não tão remoto assim -  cerca de três décadas, no Portugal Profundo)

                                                            A FORNADA

Ti Zefa da Pereira vai cozer o pão
a grande fornada da semana inteira
O forno que fica por cima do lume
está quase pronto, vazia a pilheira
de pinhas, chamiças, cavacos e torgas
mesmo ali juntinho, perto da lareira

Quando ganhar lastro, quando ficar quente
varre-o com vassoura feita de carqueja
arrastando a cinza ainda abrasida
à boca escaldante, mesmo para a beira

Tira um pedacinho de massa à masseira
põe-no na escudela que foi polvilhada
Trabalha brincando a bola que salta
molinha, tenrinha, e que salteada
tendida, estendida, redonda, achatada
vai na pá de ferro ao forno a cozer
coberta de carne, carne entremeada
ou então sardinha, sardinha escochada

O calor, a cinza, as brasas ajeita
para o forno aberto Ti Zefa espreita



E enquanto espera que a bôla se  coza
para engalhar a fome à merenda dos seus
revive na mente a imensa canseira
de cozer o pão da semana inteira

Arregaça a saia, arregaça as mangas
e sempre encostada à grande masseira
despeja da saca a farinha de milho
que nessa manhã lhe trouxe a moleira
e roda que roda, batendo a peneira
polvilhos de neve de alva brancura
vão formando um monte dentro da madeira
E na maciez dessa fina alvura
faz um buraquinho onde há-de caber
o sal dissolvido em água bem quente
e o peso certo do santo fermento
que não é só seu, é de toda a gente

Começa a mistura com jeito e doçura
a seguir ao que, penosa tarefa
é o amassar mexido, batido
furado, entranhado, puxado, gemido
socado, suado, sovado à mão
num dançar ritmado até à exaustão

Ajeita-se a um canto a massa já pronta
polvilha-se, benze-se, sulca-se uma cruz
e entrega-se assim nas mãos de Jesus
que o há-de fintar e fazer crescer
que é pão de outra cruz do nosso viver



Depois é no forno metê-lo e cozê-lo
durante umas horas à porta fechada
com porta de ferro, com lama vedada
e quando se tira, bem quente, cheiroso
é pô-lo na tábua 'inda a fumegar
Cinco grandes broas que bem governadas
hão-de na semana a fome matar
Só filhos são cinco - o home anda fora
mourejando a vida em terras distantes
e tem que tratar do seu pai agora
sem forças, que as forças se foram embora



As forças da vida, em cada tarefa
põe-nas com amor a boa Ti Zefa
criando seus filhos sozinha - e são tantos
no duro trabalho do monte e dos campos
a que dá inteiro o seu coração
como quando coze, no forno, seu pão


                                                            Aurora Simões de Matos

4 comentários:

Unknown disse...

Primeiro, um feliz casamento da imagem com o texto poético. Depois as duas poesias, fotográfica e escrita, que juntam uma narrativa histórica e nostálgica a uma bela metáfora, o pão como vida e criação, deixando-nos intensa marca de saudosos afectos. Magnifica simbiose entre duas poesias, duas expressões de afectos, de sensibilidades e de abertura ao sensível.

raiz de xisto disse...

Uma palavra de apreço a Marco Ricca, pelo simbolismo da sua mensagem. Como artista que, em imagens de rara sensibilidade, prende a VIDA. Em momentos de grata inspiração. Leituras e interpretações poéticas de uma realidade tão comum e smultaneamente tão particular. Nuances de grata beleza ou dramática realidade. A VERDADE de um olhar sobre as coisas e, sobretudo, sobre as gentes.
Tudo isso aqui também, pela lente escorrida e solta, ao mesmo tempo que seleccionada ao pormenor do emocional de Armando Jorge, a que apenas juntei algumas memórias que guardo. Avassaladoras de afecto, sempre prenhes de sacral intenção.

Muito obrigada!

Aurora Simões de Matos

Manuel Araújo da Cunha disse...

Fantástico este recriar poético de uma das cenas mais importantes do quotidiano do Portugal antigo. A Fornada. Simbolizava o matar da fome para muitos e um acompanhamento dos petiscos para alguns. Parabéns por esta amostra etnográfica que não se pode perder por ser memória das memórias de um pouco.

Manuel Araújo da Cunha

raiz de xisto disse...

Obrigada, Manuel Araújo da Cunha, pelo rememorar da vida, de que é um singularíssimo artífice. O meu abraço amigo, de cumplicidade aberta no registo do património material e imaterial deste Povo que amamos!

Grata
Aurora Simões de Matos