terça-feira, 18 de dezembro de 2012

FEIRA DOS DOZE EM PARADA DE ESTER


Parada de Ester, Feira dos Doze



As ruas já não cheiram a velhos caminhos, aos caminhos de uma infância em que tudo ia dar à Feira dos Doze.

Revisitar hoje o local da feira onde, há cerca de meio século, mensalmente satisfiz minha curiosidade, dei largas à imaginação, dialoguei com a vida, no convívio com o de mais genuíno possui a gente da minha terra, é sempre uma romagem de ternura e de saudade a um tempo e a um espaço em que se alicerçou boa parte da minha identidade.
 Andar por lugares onde nada existe já que no terreno testemunhe a vivência e o fervilhar das gentes e das emoções de outros tempos é, no mínimo, uma estranhíssima sensação de perda. Os sons, os cheiros e os paladares, que durante ainda muitos anos sobreviveram nos meus sentidos, terão sofrido o desgaste de uma ausência à intimidade com aquele largo de terra batida circundado por algumas oliveiras que, no dia doze de cada mês, se transformava no ponto de encontro quase obrigatório do povo de Parada e arredores.






Do largo da feira não existe praticamente nada. O aglomerado habitacional da aldeia, em crescente alargamento, não se compadeceu com o quase mítico terreiro, onde hoje se erguem algumas moradias cuja arquitectura e aparcamento acompanharam naturalmente o evoluir dos tempos.

Por estranho que pareça, sinto melhor aquele espaço à distância, porque o sinto incólume, nas memórias duma vida onde, em cada retrospectiva, há sempre momentos ímpares que se vão redescobrindo. O saudosismo, que assumo sem preconceitos, traduz-se assim no carinho pelas raízes de que todos os Paradenses se orgulham.

Embora por curto período, vivi algum tempo da minha meninice em Parada, bem concretamente no sítio que, pelo óbvio, se chamava de Feira. Tive, assim, o privilégio de viver e de sentir a feira bem por dentro, embora com o sentido de observação e de análise de uma criança.



A festa era anunciada três dias antes, com a chegada do Fafe, vendedor ambulante, talvez o mais conhecido dos feirantes da região. Outros tendeiros vinham de véspera para demarcarem os seus lugares e armarem as tendas para exposição dos seus artigos. Ou logo pela madrugada do dia doze. Ao longo da manhã, de todo o lado iam chegando os feirantes para mercar ou vender, ou simplesmente acorrer a um encontro ou a um dia de lazer.
A feira ia engrossando de gente, de azáfama, de barulho, de alegria e de negócios. Com produtos ligados às actividades económicas da região: animais de criação, sementes e hortaliças, ferramentas e utensílios; vestuário e calçado; louça branca e de barro negro ou vermelho vidrado; tecidos de fazenda, burel, riscado, chita, popelina, gorgorina ou organza, a metro. Mas também ouro: cordões e voltas de vários tamanhos e grossuras, anéis, brincos e arrecadas, broches e pulseiras para todos os preços. Tudo bem regateado entre o povo que mercava e os intermediários na mira do maior lucro, os agricultores com os produtos da terra, ou os artesãos que ofereciam a sua arte de tamanqueiros, ferreiros, cesteiros, albardeiros, correeiros ou latoeiros.




Na esquina, um ceguinho tocava concertina enquanto a mulher, com voz de fadista, cantava dramas passionais, as tragédias mais incríveis e os sentimentos mais inconfessáveis para, de seguida, guardar as moedinhas de tostão ou dois tostões que iam caindo num chapéu velho no chão, a seu lado. Logo adiante, as mazelas à vista de um jovem sem braços, de um velho com a perna gangrenada, da pobre mãe com o filho paralítico nos braços. Que os pedintes faziam também parte deste alvoroço.

Em surdina, ouviam-se vozes de mulher a oferecer molhadas de cebolo ou de couve-galega "sem raça de potra".

Em grande alarido, ao altifalante vendiam-se as cobiçadas carradas de roupa de cama e atoalhados a quem, acotovelando-se, conseguisse brandir primeiro a nota de conto. Nota que pagava uma carrada (rima de peças), contra o direito de se ficar com duas. Só visto!




Todavia, os negociantes de vacas e cavalos eram, sem dúvida, os grandes senhores das mais caras transacções, exibindo despudoradamente os grossos maços de notas para pronto pagamento, logo ali, em dinheiro à vista. Que o uso de cheques estava longe de ser prática corrente e o Serviço Multibanco seria uma longínqua utopia.



Mas o meu fascínio começava nas tendas de miudezas impecavelmente distribuídas por pequenas divisões num enorme tabuleiro de madeira, passava pelos brinquedos de latão, madeira, barro ou papelão, e acabava nas doceiras rodeadas de grandes cabazes de pão-leve e rosquilhos e de açafates de beijinhos cobertos com toalhas de linho alvíssimo de brancura e de limpeza.






Muitos revezavam-se nas casas de pasto para o almoço que experientes cozinheiras preparavam logo desde manhãzinha com o temperar das carnes e o acender dos fornos. Eram afamados os pratos de arroz acabado de sair em grandes caçoilas, as batatas e a carne assada em alguidares de barro vidrado, nas casas da Herondina, da Maria ou da Anitas do Bem Bô, da Ti  Ermelinda do Alhões, do Veríssimo, do João do Bernardo. Sabores inesquecíveis.

A azáfama e o burburinho duravam até à noite. Tinham-se feito compras e vendas, encontrado amigos e inimigos, começado e acabado namoros, uns copos bem bebidos, um ou outro ajuste de contas. Mas só no dia seguinte a festa acabaria, com a criançada a vasculhar os sítios das tendas já desmontadas, na mira de alguma moeda perdida na ocasião dos trocos. Só depois tudo findava, para regressar à pacatez do quotidiano.











Hoje, a feira deixou de ser o que era. Mudou de lugar, deslocando-se umas centenas de metros, e mudou de estilo. Ainda se negoceiam, embora em muito menor escala, produtos agrícolas, animais e utensílios. Mas os tecidos a metro deram a vez ao pronto-a-vestir; os tamancos aos ténis; o burel à ganga; a madeira e o cabedal ao plástico; as cantigas ao desafio às cassetes pirata; os dom- robertos às pistas de carrinhos de corrida; os pirolitos à coca-cola; os rosquilhos aos croissants; a ourivesaria à marroquinaria; as bonecas de papelão, gordinhas e coradas, com vestidinhos sempre em dois tecidos diferentes para o peito e para a saia, deram lugar às barbies magricelas de roupas standardizadas.

Hoje, a feira deixou de ser o que era. Mudam-se os tempos, mudam-se os gostos e as necessidades. Mudam-se os nomes às grandes superfícies onde se praticam novas formas de mercado.



No entanto, embora as ruas já não cheirem a velhos caminhos, aos caminhos da minha infância, todas elas, as de Parada e as das redondezas vão, uma vez por mês, dar à Feira dos Doze. Numa saudável convivência entre o tradicional e o moderno, a economia da região, saída há muito tempo da quase auto-suficiência dos seus agricultores e dos seus artesãos, vai tentando encontrar novas formas de se revigorar. Rendida à força das novas tecnologias que, mercê da facilidade de transporte, invadiram o mundo rural com a oferta de pequenos luxos, a Feira dos Doze tenta ainda afirmar-se como satisfação à subsistência, progresso, divertimento e convívio de uma boa parte das gentes da beira – Paiva.


                           Aurora Simões de Matos


( no livro Imagens da beira-Paiva, Editora Palimage,2011)

Nota:----Estas eram as realidades da feira, até ao ano de 2011




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