sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

A MATANÇA DO PORCO


A MATANÇA DO PORCO


segundo a tradição da beira-Paiva








Chega o Inverno. O tempo envelheceu e, nas rugas das suas noites geladas, traz o codo e o frio agreste que trespassa as serras e os ossos.


A lareira consome as melhores torgas da pilheira, os caturnos e as grossas camisolas de lã de ovelha emprestam ao corpo a quentura suficiente para se lidar com a vida sem se enregelar.


O tempo envelheceu e, na pungência do seu desconforto, espera-se um dia de frio seco para a matança do porco.


O cevado foi comprado, ainda de leite, na Feira dos Doze. Ou na ninhada de leitões de algum vizinho.


Durante um ano, com restos de comida, batatas, hortaliças, abóbora com rama, milho, farinha, farelo, rama de feijão ou de longumeiro, leitugas, boletra, grainha seca dos lagares, foi o porco tratado com grandes desvelos, pois sabe-se que da qualidade da sua alimentação dependerá a qualidade e o sabor das suas carnes.


Depois de cevado como manda a tradição, escolhe-se um dia frio de Novembro ou Dezembro para a matança, uma tarefa de grande peso e enorme azáfama. É a economia familiar que está em jogo e nela se empenham vários pares de braços, muita força, alguma coragem, bastante saber e experiência, gula que baste.


De véspera, fazem-se os preparativos. Arranjam-se três homens para segurar o animal, um matador treinado, uma mulher que mexerá o sangue com sal, vinho e alhos. Prepara-se um carro de vacas, sobre o qual o porco há-de ser preso e sacrificado. Ajeita-se um balde ou bacia para aparar o sangue, o barreleiro (pano de linho) para aparar as tripas. E os alhos, os cominhos, o sal, a cebola, a salsa.






Já se ouve, por toda a aldeia, mesmo nos campos ao redor, o cuinhar do animal. Arredam-se as crianças e os de mais frágeis emoções. Que a violência da cena não é para qualquer um.


Enquanto o sangue escorre, a jorros, do pescoço para o balde no chão, a mulher mexe, mexe sempre com uma enorme colher de pau, para que não talhe.




Apoiados no carro de vacas, os três homens dificilmente aguentam o estrebuchar desesperado do bicho que, finalmente, vai perdendo as forças e acaba por sucumbir à grande hemorragia. O cuinhar vai abrandando e desaparecendo por entre a vozearia dos homens. O cevado está morto. Há que chamuscar-lhe o pêlo com carqueja ou palha em chama, ou mais recentemente com chamuscador a gás. Lava-se com mangueira de água. Esfrega-se com sacholas, para que saia a pele queimada. Barbeia-se com facas e navalhas.




No dependuradoiro, é colocado de cabeça para baixo, para escorrer todo o sangue e ser aberto no mesmo dia.


Esse trabalho é feito pelo matador, que a seguir lhe extrai as tripas para o barreleiro e a fressura que pendura numa das pernas, para melhor escorrer.




As tripas são desenriçadas para se lhes tirar o redanho e o lencinho, dois tipos de gordura para fins diferentes. Vão a lavar num barroco com água corrente e a seguir a temperar com devinha d’alhos, não sem que, entretanto, mãos de mulheres experientes as tenham separado, conforme aquilo a que se destinam. Pois que são diferentes as tripas dos chouriços, dos salpicões ou dos chouriços de sangue.







As primeiras a serem enchidas são as que se destinam aos chouriços de sangue. Com uma enchedeira, nelas é introduzido o sangue temperado com sal, salsa, muita cebola, alho e as gorduras do lencinho. Fazem-se os chouriços, apertados nas pontas com fio do norte. Quando estão prontos, são enfiados num vime ou num cordel e cozidos aos molhos, em grande panela de ferro, à lareira. Penduram-se ao fumo, no chambaril, durante dois dias. São os primeiros enchidos a serem consumidos e constituem uma especialidade nos sabores desta região.




Ao outro dia, desmancha-se o porco. São separadas as partes por quem souber talhar as peças: os presuntos, as pás, as bandas, a suã, os lombos, os coelhos, a cabeça, os pés, o rabo.

Mulheres habituadas a esta lida esfolam as peças de carnes para o fumeiro, que são preparadas, cortadas e separadas, conforme se destinam às chouriças ou aos salpicões. Os bocados são de seguida espalhados sobre uma mesa, onde passe o frio.






Os presuntos e as pás, as duas metades da cabeça e as bandas são estendidas em cima do telhado da casa ou do canastro, a fim de que apanhem o gelo da noite. Se chover, recorre-se ao alpendre.


No dia seguinte, de madrugada, metem-se as peças em sal, na salgadeira, arca de madeira colocada em lugar fresco, na loja térrea da habitação. A última coisa a ser guardada, no cimo desta «arca do tesouro», são os untos, depois de 24h em pratos com sal e enformados como broas. Servirão durante o ano, para tempero de sopas e caldos e ainda para a água de unto, feita com água em que vai a ferver um pouco dessa gordura, adoçada com açúcar ou mel e que se junta a um ovo batido, para ser tomada ao pequeno- almoço em substituição do café, bem como pelas parturientes em controlada busca de forças.


Assim ficará a carne debaixo do sal, durante um mês. Só depois desse período de tempo, deve começar a ser consumida.


As bandas são retiradas em pedaços, conforme as necessidades, bem repartidas pelo tempo, para serem cozidas com batatas, feijão e (ou) hortaliça.


A suã salgada põe-se de molho, antes de ser comida crua ou frita, acompanhada de batatas e grelos.




Os presuntos e as pás, após um mês de salga, são retirados, lavados, muito bem enxutos e colocados de novo na salgadeira, agora sobre carquejas. Assim ficarão à mão da dona de casa, que os saberá tentear pelo ano fora.


Ainda no dia da desmancha, são feitos os torresmos, outro petisco da nossa terra. Em panela de ferro ou tacho de cobre, são fritos ao lume de brasas, com um pouco de água ou azeite no fundo, e tendo como tempero apenas sal, alho e cominhos, as gorduras da calubra (cachaço) e do suventre (entremeada da barriga), o redanho e bocados de fígado.





São os torresmos fritos na própria banha largada durante a fritura e nela se conservarão envolvidos, por vários meses, em panela de barro vidrado. De vez em quando, em alternativa a outras delícias, saboreiam-se aquecidos na frigideira, sobre batatas cozidas, temperadas com a respectiva manteiga de porco.


Se as diversas peças de carne, preparadas, temperadas, conservadas e cozinhadas tão à nossa maneira, emprestam à gastronomia ribeirinha sabores tão próprios e inconfundíveis, o fumeiro constitui, sem dúvida, o mais apreciado mimo dos exigentes paladares que nos procuram.


Antes de serem feitos os salpicões e as chouriças, a sua carne marina durante quatro dias em devinha d’alhos, preparada por mãos experimentadas nestes temperos. A seguir, enchem-se as respectivas tripas previamente limpas e destinadas a este fim. Poêm-se todas as peças ao fumo, penduradas no chambaril, suspenso numa trave por sobre a lareira.


Quando secar o fumeiro, lava-se em água morna, peça por peça, depois em água fria. Enxuga-se bem e mete-se em azeite, numa barranha (panela de barro vermelho vidrado), já que o barro não vidrado pode melar o azeite. Na barranha, ficará assim o governo de chouriças e salpicões para todo o ano.




Mas há datas especiais em que, por tradição, as famílias consomem algumas peças de carne muito específicas.

O palaio, salpicão enorme feito com a língua inteira e várias postas de lombo, é comido no Dia de Entrudo.


Também no Domingo de Serrabulho, o primeiro de Dezembro, a ementa é igual em todas as casas. O peito salgado é cozido com feijão branco, hortaliça e chouriço de sangue. Com as costelas, faz-se um arroz malandrinho.


Actualmente, a matança do porco não se reveste da importância de outros tempos, em que comer uma refeição de carne não era privilégio de todos os dias nem de todas as bocas.


Apesar do muito peso que ainda detém na economia familiar, as pessoas têm hoje acesso a outros tipos de carne e a uma alimentação muita mais diversificada, mercê das novas formas de mercado e sobretudo da electrificação de toda esta região, bem como da facilidade na circulação de dinheiro proveniente de negócios, ordenados e reformas.






No entanto, o certo é que cevar um ou dois porcos por ano, de acordo com uma alimentação natural e tradicional, cumprir os rituais da matança, da preparação e da conserva das carnes, assim como controlar o seu consumo, continua a ser, como sempre foi, prática corrente de quem não desiste de, contra todos os esforços, guardar e preservar o que de melhor há nos sabores da beira- Paiva.



                                                   Aurora Simões de Matos




Nota: texto com emprego de regionalismos da beira-Paiva.

Fotos da Net

8 comentários:

A. disse...

Outros tempos!...
Matanças impressionantes mas... dias de "festa"!...

http://krystaldimagem.blogspot.pt/2011/03/matanca.html




Abraço

raiz de xisto disse...

Ainda tempos actuais,na minha aldeia de xisto...senhor A.
Obrigada por seguir o meu blog.
Abraço
Aurora Simões de Matos

vida entre margens disse...

Nunca assisti a uma matança de porco!
Achei impressionante a expressividade com que descreve cada momento.

Beijinho amiga Aurora***

raiz de xisto disse...

É,de facto,uma cena de grande violência.Já assisti a muita azáfama que está ligada a estes momentos,mas sempre me desviei da hora crucial da matança.Mas dela depende muito da economia familiar das gentes da minha região
Beijinho,Amiga Cristina Cebola...

Aurora

Sérgio disse...

Sabe Deus como parte o coração de quem cuidou dos “bichos” durante tantos meses, que no meio da trabalheira também se vai criando afeição, ver seu o último suspiro… Para os homens que seguram o animal a tarefa também não é fácil, pelo esforço e pela pena que dá.
É um trabalho que obriga à ajuda da família e dos vizinhos, recompensado pelo almoço com as primeiras carnes que são tiradas do porco. E é incomparável o sabor desta carne com a dos talhos…
É uma das tradições de que mais gosto! Talvez pelo convívio, pela entreajuda, pela partilha. É mais uma prova de que a união e a entreajuda são valores ainda preservados. E isso deixa-me feliz.
O meu prato preferido, arrisco dizer, são as carolas com cabeçalha que a minha mãe faz com tanto carinho por altura das Comadres ou dos Compadres. Têm o sabor de uma infância feliz!
Obrigado Professora Aurora. Adorei o relato!
Beijinhos.
Sérgio André

raiz de xisto disse...

Meu querido amigo Sérgio André

Estes são sabores-relíquia do nosso paladar.
Momentos de luxo que haveremos de preservar na memória coletiva da nossa terra.
E depois, como diz, a riqueza das tradições pela partilha comunitária...
Quem aqui foi criado e teve a sorte destas vivências personalizadas, por certo será uma pessoa diferente, no universo da massificação das ideias e dos valores.

Grande abraço, meu amigo...

Aurora

Mª Dolores Marques disse...

Assistia ao início, mas depois saia dali que me fazia muita confusão, por ser ainda criança, talvez. mas tudo o resto que lhe seguia eu ajudava e gostava muito de ver a minha avó fazer
Adorei ler

raiz de xisto disse...

Imagino a pequenita Dolores a esconder-se por entre a vozearia dos homens que seguravam o cevado para um deles o matar de seguida... a agitação das mulheres, na preparação da bacia para colher o sangue do bicho e os panos para as limpezas de tanto gesto complicado... a vizinhança pronta para a entreajuda comunitária que a isso obrigava... e a criançada a esgueirar-se pelos caminhos sinuosos de Moção, como que a fugir de um crime. Momentos sempre confusos para a cabeça de uma menina... Eu também fugia...