sábado, 15 de dezembro de 2012


Tia Céu da Seara

Uma história com mais de um século






(Biografia romanceada de Maria do Céu Trindade, que residiu 25 anos no Lar da Santa Casa da Misericórdia de Castro Daire e que, no dia 5 de Dezembro de 2012, completaria a bonita idade de... 110 anos. Faleceu no dia 10 de Novembro do mesmo ano)




(continuação)

Capítulo III



Maria do Céu tinha pouco mais de vinte anos. Estatura mediana, a carne não lhe pesava. O cabelo escuro e forte, comprido até à cintura, apanhava-o atrás num puxo, depois de o entrançar. Outras vezes, deixava a trança solta pelas costas abaixo. Sempre vestida de escuro, embora gostasse mais de cores claras. Mas ela não mandava. Diziam-lhe que, no trabalho das terras e dos montes, não merecia a pena vestir-se de outra maneira. E uma rapariga não podia andar por aí a dar nas vistas, exibindo garridices. Para ir com o gado, ao moinho e à fonte, andava muito bem assim.

- Ó Céu, hoje quero ir contigo guardar as vacas!

Quem assim falava era o irmão mais novo, o António, de seis anos apenas.

- Está bem, anda lá, que para o ano já não tens tempo para isso. Vais para Vila Seca, que te consolas!

- Eu não quero ir para a escola, que é tão longe! - choramingou o pequenito.

- Pois não, mas tu não mandas. Quem manda é o senhor pai. Os outros também lá andaram, não vês?

- Tu é que tens sorte, que nunca foste à escola...

- Não digas assim. Quem me dera a mim ir. Aprender para saber ler. Gostava de saber ler
uma carta. Se eu arranjasse um namorado, não era preciso dar as cartas a ler a ninguém! - gargalhou a rapariga, cheia de malícia na voz.

- Quem foi que falou aqui em namorados? Eu por acaso ouvi bem? Vê lá se queres que eu diga ao pai ou ao Zé! - interrompeu um dos irmãos, mais novo do que ela, mas já com estatuto assegurado para lhe chamar a atenção.

- Ninguém aqui falou em namorados, pois não, Antonho? - dirigiu-se ao mais novo, para convidar a seguir:

- Vai lá então calçar os tamancos, que na Devesa há muito tojo. E mete umas côdeas na saca, que a minha merenda não dá para os dois. Espera aí, que tenho que levar a cesta da costura. Tenho ali um colete para casear e umas calças para chulear.

- Hoje também me contas um conto, Céuzita?

- Conto, pois! Mas é se me ajudares e não fores para lá dar-me cabo do juízo. Era só o que me faltava. Anda Galante! Anda Cabana! - chamou Maria do Céu pelas vacas, abrindo-lhes a porta do curral, para de seguida ir pelas cabras e pelo carneiro.

Era já meia manhã e a neblina sobre a Paiva fazia adivinhar um dia incerto de sol, apesar da Primavera adiantada.

- Anda, Toninho, bota pra cá as pernas! Olha aí a Bonita, que quer saltar. Bonita, anda cá, cabra espertalhona! - assim chamava com firmeza, usando a vergasta para guiar os animais caminho adiante e depois abaixo e outra vez acima, até alcançar a Devesa, o maninho onde costumava, como outros, apascentar o gado, intercalando com a erva do lameiro, em dias alternados.

- Ó Toninho, cal é coisa, cal é ela, que ainda agora falei nela?

- Essa já tu me ensinaste. É a cal. O que é a cal, Céuzita?

- É uma coisa que se bota na água para pintar as casas. Olha, a casa do vizinho senhor Carneiro é branca, não é? Pois é, porque foi pintada com cal. Agora as outras casas todas da Seara são de pedra. Acho que aquelas pedras das casas e dos currais e dos muros se chamam granitos e xistos. Olha, esta aqui, que parece mais dura e cinzenta, vês, é granito. E aquela ali, que parece mais lisa e acastanhada e menos dura, é o xisto. E as casas são cobertas com lousas, para lá não entrar a chuva nem o frio.

- Nem o vento, nem os bichos! - rematou o pequenito.

E, bem dispostos, lá continuaram a caminhada, um à frente e outro atrás dos animais.

Maria do Céu gostava de andar com o irmão António. Bem mais novo do que ela, era o único dos rapazes que, na sua opinião, a ouvia com atenção e respeitava os seus ensinamentos. Que, se fosse preciso, sabia já protegê-la.




Bem perto da Devesa, encontraram um rapaz de Sobradinho que, disfarçadamente, olhava a jovem moça, com vontade de meter conversa. O que, em boa verdade, agradava à rapariga. Mas que temendo algum castigo do pai, fazia por evitar.

- Bom dia, Maria do Céu!

- Bom dia, Augusto.

E, sem mais palavras, adiantou o passo, comentando para o irmãozito:

- Nem conheço este moço que me salvou! E também não é preciso ires contar a ninguém que passámos por ele no caminho.

- Está bem, está bem... Ó Céu, tu querias namorar com ele? - indagou o pequenito, olhando para trás e ficando por momentos a observar Augusto que, de longe, assobiava uma modinha, certamente como prenda para a jovem.

- Eu não queria nem quero namorar com ninguém. Já me basta os homens chatos que tenho em casa. Mas também se quisesse, de pouco me adiantava. Nem o senhor pai me deixa,
nem os irmãos mo consentiam. Eles todos acham que é feio e pecado namorar. Que é uma vergonha uma rapariga olhar para um rapaz, sabes, Toninho? Mas eu acho que nem é vergonha nenhuma. Olha o nosso Zé que já se casou e o nosso Joaquim que também já namora! Então, nesse caso, as namoradas deles também andavam a proceder mal!!!

E, pegando na mão do pequeno confidente, puxou-o para si, abraçando-o de encontro ao peito, enquanto as lágrimas lhe cantavam pelo rosto queimado do sol.

- Não chores, Céuzita! Dói-te alguma coisa?

- Pois choro, choro, que a barriga começa a dar horas. E tirando uma cebola rachada com sal e um pedaço de broa da saquita de trapos, repartiu-a com o irmão. Como se aquela partilha selasse um perfeito entendimento entre os dois.


(Continua)

Aurora Simões de Matos


3 comentários:

vida entre margens disse...

" A sobrevivente" uma obra a não perder.
No dia em que este livro me chegou às mãos, li-o quase todo de uma assentada.

Querida Aurora, ainda hei-de chegar a essa provecta idade e pedir-lhe que escreva a minha biografia!!!

Hei-de, hei-de!!! Homesessa!!!

vida entre margens disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
raiz de xisto disse...

Obrigada pelo carinho, querida Poetisa Cristina Cebola.
A sua Biografia será certamente publicada,pois a qualidade da sua escrita bem o merece.

O meu abraço enorme!!!