Tia Céu da Seara
Uma história com mais de um século
(Biografia
romanceada de Maria do Céu Trindade, que residiu 25 anos no Lar da
Santa Casa da Misericórdia de Castro Daire e que, no dia 5 de Dezembro de 2012, completaria a bonita idade de... 110 anos. Faleceu no dia 10 de Novembro do mesmo ano)
(continuação)
Capítulo
III
Maria
do Céu tinha pouco mais de vinte anos. Estatura mediana, a carne não
lhe pesava. O cabelo escuro e forte, comprido até à cintura,
apanhava-o atrás num puxo, depois de o entrançar. Outras vezes,
deixava a trança solta pelas costas abaixo. Sempre vestida de
escuro, embora gostasse mais de cores claras. Mas ela não mandava.
Diziam-lhe que, no trabalho das terras e dos montes, não merecia a
pena vestir-se de outra maneira. E uma rapariga não podia andar por
aí a dar nas vistas, exibindo garridices. Para ir com o gado, ao
moinho e à fonte, andava muito bem assim.
-
Ó Céu, hoje quero ir contigo guardar as vacas!
Quem
assim falava era o irmão mais novo, o António, de seis anos apenas.
-
Está bem, anda lá, que para o ano já não tens tempo para isso.
Vais para Vila Seca, que te consolas!
-
Eu não quero ir para a escola, que é tão longe! - choramingou o
pequenito.
-
Pois não, mas tu não mandas. Quem manda é o senhor pai. Os outros
também lá andaram, não vês?
-
Tu é que tens sorte, que nunca foste à escola...
-
Não digas assim. Quem me dera a mim ir. Aprender para saber ler.
Gostava de saber ler
uma carta. Se eu arranjasse um namorado, não era preciso dar as cartas a ler a ninguém! - gargalhou a rapariga, cheia de malícia na voz.
uma carta. Se eu arranjasse um namorado, não era preciso dar as cartas a ler a ninguém! - gargalhou a rapariga, cheia de malícia na voz.
-
Quem foi que falou aqui em namorados? Eu por acaso ouvi bem? Vê lá
se queres que eu diga ao pai ou ao Zé! - interrompeu um dos irmãos,
mais novo do que ela, mas já com estatuto assegurado para lhe chamar
a atenção.
-
Ninguém aqui falou em namorados, pois não, Antonho? - dirigiu-se ao
mais novo, para convidar a seguir:
-
Vai lá então calçar os tamancos, que na Devesa há muito tojo. E
mete umas côdeas na saca, que a minha merenda não dá para os dois.
Espera aí, que tenho que levar a cesta da costura. Tenho ali um
colete para casear e umas calças para chulear.
-
Hoje também me contas um conto, Céuzita?
-
Conto, pois! Mas é se me ajudares e não fores para lá dar-me cabo
do juízo. Era só o que me faltava. Anda Galante! Anda Cabana! -
chamou Maria do Céu pelas vacas, abrindo-lhes a porta do curral,
para de seguida ir pelas cabras e pelo carneiro.
Era
já meia manhã e a neblina sobre a Paiva fazia adivinhar um dia
incerto de sol, apesar da Primavera adiantada.
-
Anda, Toninho, bota pra cá as pernas! Olha aí a Bonita, que quer
saltar. Bonita, anda cá, cabra espertalhona! - assim chamava com
firmeza, usando a vergasta para guiar os animais caminho adiante e
depois abaixo e outra vez acima, até alcançar a Devesa, o maninho
onde costumava, como outros, apascentar o gado, intercalando com a
erva do lameiro, em dias alternados.
-
Ó Toninho, cal é
coisa, cal é
ela, que ainda agora falei nela?
-
Essa já tu me ensinaste. É a cal. O que é a cal, Céuzita?
-
É uma coisa que se bota na água para pintar as casas. Olha, a casa
do vizinho senhor Carneiro é branca, não é? Pois é, porque foi
pintada com cal. Agora as outras casas todas da Seara são de pedra.
Acho que aquelas pedras das casas e dos currais e dos muros se chamam
granitos e xistos. Olha, esta aqui, que parece mais dura e cinzenta,
vês, é granito. E aquela ali, que parece mais lisa e acastanhada e
menos dura, é o xisto. E as casas são cobertas com lousas, para lá
não entrar a chuva nem o frio.
-
Nem o vento, nem os bichos! - rematou o pequenito.
E,
bem dispostos, lá continuaram a caminhada, um à frente e outro
atrás dos animais.
Maria
do Céu gostava de andar com o irmão António. Bem mais novo do que
ela, era o único dos rapazes que, na sua opinião, a ouvia com
atenção e respeitava os seus ensinamentos. Que, se fosse preciso,
sabia já protegê-la.
Bem
perto da Devesa, encontraram um rapaz de Sobradinho que,
disfarçadamente, olhava a jovem moça, com vontade de meter
conversa. O que, em boa verdade, agradava à rapariga. Mas que
temendo algum castigo do pai, fazia por evitar.
-
Bom dia, Maria do Céu!
-
Bom dia, Augusto.
E,
sem mais palavras, adiantou o passo, comentando para o irmãozito:
-
Nem conheço este moço que me salvou! E também não é preciso ires
contar a ninguém que passámos por ele no caminho.
-
Está bem, está bem... Ó Céu, tu querias namorar com ele? -
indagou o pequenito, olhando para trás e ficando por momentos a
observar Augusto que, de longe, assobiava uma modinha, certamente
como prenda para a jovem.
-
Eu não queria nem quero namorar com ninguém. Já me basta os homens
chatos que tenho em casa. Mas também se quisesse, de pouco me
adiantava. Nem o senhor pai me deixa,
nem
os irmãos mo consentiam. Eles todos acham que é feio e pecado
namorar. Que é uma vergonha uma rapariga olhar para um rapaz, sabes,
Toninho? Mas eu acho que nem é vergonha nenhuma. Olha o nosso Zé
que já se casou e o nosso Joaquim que também já namora! Então,
nesse caso, as namoradas deles também andavam a proceder mal!!!
E,
pegando na mão do pequeno confidente, puxou-o para si, abraçando-o
de encontro ao peito, enquanto as lágrimas lhe cantavam pelo rosto
queimado do sol.
-
Não chores, Céuzita! Dói-te alguma coisa?
-
Pois choro, choro, que a barriga começa a dar horas. E tirando uma
cebola rachada com sal e um pedaço de broa da saquita de trapos,
repartiu-a com o irmão. Como se aquela partilha selasse um perfeito
entendimento entre os dois.
(Continua)
Aurora
Simões de Matos
3 comentários:
" A sobrevivente" uma obra a não perder.
No dia em que este livro me chegou às mãos, li-o quase todo de uma assentada.
Querida Aurora, ainda hei-de chegar a essa provecta idade e pedir-lhe que escreva a minha biografia!!!
Hei-de, hei-de!!! Homesessa!!!
Obrigada pelo carinho, querida Poetisa Cristina Cebola.
A sua Biografia será certamente publicada,pois a qualidade da sua escrita bem o merece.
O meu abraço enorme!!!
Enviar um comentário