quarta-feira, 23 de janeiro de 2013


Mudam-se os tempos



A crise económica internacional, que se vem acentuando nos últimos anos, tem levado a medidas restritivas nos países de destino dos nossos emigrantes, tendo afectado, de forma mais ou menos drástica, o quotidiano de todos aqueles que procuram, longe da pátria, a realização pessoal, profissional e social, que dê sentido satisfatório a um percurso de vida que ambicionam com a maior estabilidade possível.


Sendo assim, uma boa parte das gentes da beira- Paiva, em movimentos migratórios internos, facilitados por uma rede cada vez mais alargada de estradas e servidos por uma razoável rede de meios de transporte, procura, nos grandes centros urbanos portugueses, a satisfação para as legítimas necessidades de um viver mais desafogado, já que a agricultura e a pastorícia, os recursos económicos mais tradicionais da nossa terra, deixaram há muito de satisfazer as naturais ambições das novas gerações.

Todo este fenómeno, aliado à obrigatoriedade cada vez mais alargada da escolarização dos nossos jovens, pela demanda de mais saber e de um emprego economicamente mais rentável, e também ao actual baixo índice de nascimentos, tem levado ao declínio demográfico, que se traduz numa população cada vez mais envelhecida.



No entanto, o regresso às origens é sempre uma obrigação. O Natal, a Páscoa e principalmente os meses de Verão assistem ao retorno dos que partiram. Carregados de saudades, de mimos e presentes para os que aqui deixaram e dos luxos possíveis transferidos de grandes centros de consumo, vão modificando a fisionomia e os modos de viver e de sentir desta região.

Trazem novos hábitos, novas experiências, novas exigências. Aprenderam por lá a competitividade que, naturalmente, passou a fazer parte das suas preocupações e que conduz a certa ostentação, exposta principalmente nos carros que conduzem, nas casas que constroem, nos electrodomésticos que usam, nos mobiliários com que recheiam as suas habitações.

Hoje, poucas serão as casas das nossas aldeias que não exibem um bom frigorífico, arca congeladora, aquecedor eléctrico, microondas e o indispensável televisor que nos aproxima do mundo.



De facto, a televisão entrou na vida de toda a gente, invadiu os seus tempos de lazer, faz agora parte dos seus serões, apresenta-lhe novas modas e novos valores.

O convívio dos homens na taberna, à porta da venda, no cafezinho intimista ao lado do minimercado, foi sofrendo alterações, ficando cada vez mais frouxo. Quase só o futebol consegue monopolizar atenções e alargar interesses que se querem partilhados com os vizinhos e os amigos. Quase só o futebol junta um razoável grupo para a discussão dos resultados. Pelo meio, a televisão.

O convívio das mulheres na fonte, nos lavadouros das poças e dos tanques, à saída da missa, nas feiras ou nos bailes, foi ficando cada vez mais desprendido de interesses e de afectos. Quase só as novelas despertam comentários que se querem partilhados com as vizinhas e com as amigas. Pelo meio, ainda e sempre, a televisão.

Com a chegada da televisão, dos telemóveis e da internet, foram dissipadas barreiras julgadas intransponíveis. As novas tecnologias estão aí, a revolucionar o quotidiano das populações. As seculares práticas comunitárias, instaladas desde tempos imemoriais, vão dando lugar ao individualismo da modernidade.

As gerações mais velhas, embaladas neste sonho de conforto e de progresso, de boamente aceitam as mudanças que possam facilitar um pouco os seus dias, desde sempre marcados pelo esforço duro e penoso.



Na prática, quase ninguém se apercebeu dos efeitos perversos desta mudança de atitudes e mentalidades. Naturalmente, as coisas foram acontecendo devagar e, quando se deu por isso, as crianças já não cultivavam práticas e linguagens, gestos, memórias e afectos que se julgavam imorredoiros. Tinham deixado de aprender, porque ninguém lho tinha ensinado nos longes das grandes cidades, o carinhoso respeito pelos nossos velhos, a quem já não recorrem para as aprendizagens da vida, com quem já não rezam as contas ao serão, a quem já não pedem a bênção pela manhã e antes de adormecerem. As nossas crianças e os nossos jovens foram perdendo o espírito genuíno que caracterizava a sua identidade e são agora, para o bem e para o mal, em tudo parecidos com os novos portugueses de todo o resto do país e do mundo.



A abertura dos ambientes outrora isolados aos novos meios de comunicação e de transporte, só pode ser encarada numa perspectiva de enriquecimento e desenvolvimento a todos os níveis. Estas regalias, até há pouco impensáveis para uns e esperadas com impaciência por muitos outros, serão por certo résteas do progresso que, com toda a justiça, chegam a estas paragens.

Difícil é prever até que ponto poderemos ainda preservar os sinais que nos distinguem como seres únicos que, respirando uma vitalidade muito própria, são capazes de se afirmar pelo mundo, sem todavia se desprenderem das raízes que os ligarão para sempre à sua terra.


(Texto escrito em 2010,antes da grave crise económica que tanto aflige o mundo)



Aurora Simões de Matos


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