Ti
Ermelinda do Alhões, uma heroína sem nome
Parada de Ester,onde nasceu,viveu e morreu a heroína desta história verídica
Deixou-nos pelo Natal de 1984
Há pessoas que passam
pelas nossas vidas e deixam para sempre a marca da sua personalidade,
da sua maneira de estar e de sentir, do modo como foram capazes de se
agigantar perante as dificuldades decerto intransponíveis para a
maioria dos mortais.
A história que hoje
quero recordar é a história de uma heroína da minha infância. Tão
comum e simultaneamente tão fora de série, que ainda hoje, passadas
mais de cinco décadas de a ter conhecido e com ela ter convivido,
pasmo de admiração e de respeito pela força quase sobre-humana que
a caracterizava, pela invulgar capacidade de gerir os recursos de que
dispunha, sem temor em desafiar a resistência física, labutando
arduamente, numa organização do trabalho tão bem estruturada, que
o tempo lhe dava para tudo. Inexplicavelmente.
Sei que Ti Ermelinda do
Alhões continua a ser recordada por todos os que a conheceram, como
uma grande Mulher, grande esposa e grande mãe, dona de casa,
agricultora, moleira, cozinheira, merceeira, mãe dos pobres e muito
mais. Tudo em grande muito grande.
Nasceu em Parada de
Ester, em 1902 e sempre aí viveu. Casada com António da Costa, o
primeiro motorista de táxi da terra, não podia contar com ele para
a imensa labuta do dia-a-dia.
Teve doze filhos, nove
rapazes e três raparigas, que criou com fartura e em ambiente são e
feliz.
Muito alegre,
bem-disposta e desembaraçada, de figura meã e anafada, recordo-a
quase sempre de lenço em triângulo, com as pontas dobradas no alto
da cabeça, avental apertado abaixo do ventre a repuxar a saia para
cima, sempre de mangas arregaçadas.
Falava alto para bem se
fazer ouvir e a sua expressão mais repetida, nas mais variadas
situações e intenções, era: «Ai cessa ali! Cessa ali, diabo!»
Habitava com a família
numa grande casa caiada de branco, ao cabo da Feira, em Parada. Com
os três criados que ali viviam também e a ajudavam na lavoura, eram
dezoito pessoas à mesa, diariamente, a cada refeição. Por isso,
tinha que cozer o pão no forno de lenha, dia sim, dia não. Eram
sempre quinze broas. Caldo de feijão havia sempre, forte e de
sustento, para os seus e para quem a procurasse para matar a fome.
Que nunca deixava um pobre sem esmola ou com a barriga vazia. O
Amadeu do Pobre, o Augusto da Corredoira e a Ti Maria de Covas do
Monte eram visitas assíduas da sua porta e da sua generosidade.
Quando chegava a casa,
exausta, dos lameiros ou dos moinhos e tinha que preparar o jantar ou
a ceia para a família, era outra epopeia, penosa e sempre repetida.
A batata, o feijão, os legumes frescos e as hortaliças, a carne de
porco ou de frango, em pequenas quantidades, o bacalhau, o chicharro,
a sardinha e os ovos eram a base de uma alimentação saudável e
abundante. As bogas da Paiva eram um luxo e um mimo. Em dias de
festa, não faltava o cabrito recheado. O tempero privilegiado era o
azeite puro de oliveira. De vez em quando, um pouco de unto ou de
manteiga de porco. E assim Ti Ermelinda usava, sem o saber, a hoje
tão defendida “ dieta mediterrânica”.
Um dia, estando eu
naquela cozinha de enormes panelas de ferro à volta da lareira,
olhei impressionada o seu rosto ofegante e cansado, coberto de mil
gotinhas de suor, enquanto enchia uma enorme sertã colocada em cima
das trempes, com batatas grosseiramente cortadas às rodelas, mesmo
com a casca (não havia tempo para mais) e que a seguir polvilhou de
sal e fritou em azeite.
-Queres comer, pequena?
-Queres comer, pequena?
Aceitei com gulodice de
criança e ainda hoje aquelas batatas fritas com casca me sabem bem.
«Ai cessa ali!»
Mas era nos dias de
feira, dias doze de cada mês, quando os terrenos circundantes se
enchiam de feirantes que compravam ou vendiam os produtos de toda
aquela região, que Ti Ermelinda mais esmerava na cozinha. O caldo de
feijão branco, a massa com fressura de cabra, a carne da mesma
assada em forno de lenha com o respectivo arroz, eram os pratos
confeccionados e servidos aos fregueses sentados em grandes bancos
corridos. Os aromas que enchiam os ares ajudavam a criar atmosferas
que não se esquecem nunca.
Poucas cozinheiras
tinham mão como ela para aquele tempero, para aquele molho do assado
da carne, carne de cabra, sempre. Os cabritos, esses eram para
vender, assim como o eram os vitelos.
As vacas, duas juntas
delas, ajudavam no trabalho das terras, algumas bem distantes de
casa, em Eiriz, Ester ou à borda da Paiva. Atreladas aos respectivos
carros de madeira de grandes rodas, faziam o transporte dos produtos
dos campos, dos estrumes, dos adubos, das lenhas. Atreladas ao arado
ou à charrua, lavravam os campos, preparando-os para as sementeiras.
Trazia quase sempre
gente de fora a trabalhar nos seus terrenos, mas era ela quem, além
de participar em toda a lida, orientava o pessoal com a garra e o
saber de uma verdadeira líder. Mais tarde, um dos filhos, o Tiago,
tomou ele a seu cargo toda a orientação na labuta da lavoura, já
com alguns dos irmãos perfeitamente integrados neste esquema de
rigorosa partilha de tarefas e de verdadeiro empenho numa equilibrada
economia de subsistência. Que à mesa eram dezoito a cada refeição.
Numa das várias cortes
agregadas ao núcleo habitacional, vivia um burro. Seria uma
mais-valia no transporte das taleigas, uma vez que, nos seus dois
moinhos, eram transformados em farinha o trigo e o milho do pão que
comia grande parte da freguesia: Parada, Mós, Eiriz, Ester.
Os moinhos constituíam
um recurso económico de grande importância, já que Ti Ermelinda
arrecadava a maquia de um décimo no peso da farinha em cada saco de
cereal. Mas não deixava de ser uma tarefa penosa, cansativa e até
perigosa. Muitas vezes, em ocasiões de maior azáfama nos moinhos,
como na Páscoa, em que toda a gente cozia grandes fornadas de trigo
de ovos quase ao mesmo tempo, era necessário ir aos moinhos de noite
ou mesmo dormir lá. Nessas situações, costumava levar consigo três
dos filhos, sempre três. Prestar-lhe-iam ajuda, protecção e
segurança.
Os filhos foram
crescendo, fortes e saudáveis. Todos frequentaram a escola e fizeram
a quarta classe. Quando podiam, iam à missa e à catequese. Todos
fizeram a Primeira Comunhão. Pelo exemplo de trabalho e honestidade
de seus pais, pela exigência da educação que esta verdadeira
matriarca lhes transmitiu com carinho mas também com mão-de-ferro,
todos se tornaram pessoas de bem e eram o seu orgulho.
Ti Ermelinda era
católica, mas uma vida tão cheia de obrigações e de canseiras
deixava-lhe pouco tempo para as práticas religiosas. No entanto,
quando podia, ia à missa aos domingos e gostava de participar nas
procissões e cortejos em dias de festa na Igreja. Nessas cerimónias,
a sua voz enchia os ares de cânticos e orações.
Gostava de cantar nas
vessadas e nas ceifas e de cantarolar enquanto no tanque lavava a
roupa de tanta gente.
Juntava os lençóis de
linho, do linho cultivado, tascado, maçado e fiado por suas mãos.
Os lençóis de linho e os comprados na feira, as toalhas e outras
roupas claras, como as camisas suadas dos seus rapazes, eram lavadas
com sabão, estendidas em grandes coradoiros ao sol e molhadas de vez
em quando com a água de grandes regadores de latão. As que
teimassem no encardimento iam à barrela.
A barrela era feita a
cada quinzena. Em grandes cortiços cilíndricos, a roupa era posta
de molho em sabão e água morna. Passadas umas boas horas, a água
era substituída por outra bem quente a ferver e a roupa coberta de
cinza. Assim ficava por um ou dois dias e a seguir era lavada no
tanque. Branquinha e bem cheirosa.
Os cobertores e as
mantas de tiras usadas nas camas eram, uma vez por ano, lavadas na
Paiva. Eram dias diferentes, cheios de cor e movimento, as mulheres
de pulso metidas no rio em lugares estratégicos de grandes
lavadouros, as margens armadas em estendais improvisados. Dias de
árduo esforço e sempre de muita alegria.
Toda a roupa era bem
esticada antes de ser estendida, pois não havia hipótese de tempo
para a passar a ferro.
Ti Ermelinda do Alhões
faleceu em 1984, com oitenta e dois anos de idade. Acabou de repente,
pelo Natal, estava à janela a escolher os feijões para o caldo.
Como se tivesse pressa de um descanso merecido. Como se, nessa
pressa, procurasse ainda tempo para uma despedida, daquela janela de
onde podia avistar o seu mundo, o mundo onde, pelo qual e para o qual
vivera. Como se quisesse, num último esforço, morrer ainda a
trabalhar.
Será sempre recordada
com saudade e um misto de admiração e de respeito. O seu nome
continuará a ser uma referência importante em toda a freguesia de
Parada de Ester. Durante décadas, ela moeu o pão de quase todos
nós, cozinhou os petiscos que tantos de nós saborearam, deu-nos
exemplos de trabalho e de honestidade, espalhou o bem e consolou os
pobres, inundou os ares com as suas risadas sadias, deixou-nos o seu
inconfundível «ai cessa ali!».
Ti Ermelinda do Alhões
é, sem dúvida, uma grande heroína, o expoente máximo das heroínas
sem nome, que são as Mulheres da beira-Paiva.
Aurora Simões de Matos
in Imagens da Beira Paiva
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