terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Ti Ermelinda


Ti Ermelinda do Alhões, uma heroína sem nome





Parada de Ester,onde nasceu,viveu e morreu a heroína desta história verídica
Deixou-nos pelo Natal de 1984





Há pessoas que passam pelas nossas vidas e deixam para sempre a marca da sua personalidade, da sua maneira de estar e de sentir, do modo como foram capazes de se agigantar perante as dificuldades decerto intransponíveis para a maioria dos mortais.

A história que hoje quero recordar é a história de uma heroína da minha infância. Tão comum e simultaneamente tão fora de série, que ainda hoje, passadas mais de cinco décadas de a ter conhecido e com ela ter convivido, pasmo de admiração e de respeito pela força quase sobre-humana que a caracterizava, pela invulgar capacidade de gerir os recursos de que dispunha, sem temor em desafiar a resistência física, labutando arduamente, numa organização do trabalho tão bem estruturada, que o tempo lhe dava para tudo. Inexplicavelmente.

Sei que Ti Ermelinda do Alhões continua a ser recordada por todos os que a conheceram, como uma grande Mulher, grande esposa e grande mãe, dona de casa, agricultora, moleira, cozinheira, merceeira, mãe dos pobres e muito mais. Tudo em grande muito grande.



Nasceu em Parada de Ester, em 1902 e sempre aí viveu. Casada com António da Costa, o primeiro motorista de táxi da terra, não podia contar com ele para a imensa labuta do dia-a-dia.

Teve doze filhos, nove rapazes e três raparigas, que criou com fartura e em ambiente são e feliz.

Muito alegre, bem-disposta e desembaraçada, de figura meã e anafada, recordo-a quase sempre de lenço em triângulo, com as pontas dobradas no alto da cabeça, avental apertado abaixo do ventre a repuxar a saia para cima, sempre de mangas arregaçadas.

Falava alto para bem se fazer ouvir e a sua expressão mais repetida, nas mais variadas situações e intenções, era: «Ai cessa ali! Cessa ali, diabo!»

Habitava com a família numa grande casa caiada de branco, ao cabo da Feira, em Parada. Com os três criados que ali viviam também e a ajudavam na lavoura, eram dezoito pessoas à mesa, diariamente, a cada refeição. Por isso, tinha que cozer o pão no forno de lenha, dia sim, dia não. Eram sempre quinze broas. Caldo de feijão havia sempre, forte e de sustento, para os seus e para quem a procurasse para matar a fome. Que nunca deixava um pobre sem esmola ou com a barriga vazia. O Amadeu do Pobre, o Augusto da Corredoira e a Ti Maria de Covas do Monte eram visitas assíduas da sua porta e da sua generosidade.



Quando chegava a casa, exausta, dos lameiros ou dos moinhos e tinha que preparar o jantar ou a ceia para a família, era outra epopeia, penosa e sempre repetida. A batata, o feijão, os legumes frescos e as hortaliças, a carne de porco ou de frango, em pequenas quantidades, o bacalhau, o chicharro, a sardinha e os ovos eram a base de uma alimentação saudável e abundante. As bogas da Paiva eram um luxo e um mimo. Em dias de festa, não faltava o cabrito recheado. O tempero privilegiado era o azeite puro de oliveira. De vez em quando, um pouco de unto ou de manteiga de porco. E assim Ti Ermelinda usava, sem o saber, a hoje tão defendida “ dieta mediterrânica”.

Um dia, estando eu naquela cozinha de enormes panelas de ferro à volta da lareira, olhei impressionada o seu rosto ofegante e cansado, coberto de mil gotinhas de suor, enquanto enchia uma enorme sertã colocada em cima das trempes, com batatas grosseiramente cortadas às rodelas, mesmo com a casca (não havia tempo para mais) e que a seguir polvilhou de sal e fritou em azeite.

-Queres comer, pequena?    

Aceitei com gulodice de criança e ainda hoje aquelas batatas fritas com casca me sabem bem. «Ai cessa ali!»

Mas era nos dias de feira, dias doze de cada mês, quando os terrenos circundantes se enchiam de feirantes que compravam ou vendiam os produtos de toda aquela região, que Ti Ermelinda mais esmerava na cozinha. O caldo de feijão branco, a massa com fressura de cabra, a carne da mesma assada em forno de lenha com o respectivo arroz, eram os pratos confeccionados e servidos aos fregueses sentados em grandes bancos corridos. Os aromas que enchiam os ares ajudavam a criar atmosferas que não se esquecem nunca.

Poucas cozinheiras tinham mão como ela para aquele tempero, para aquele molho do assado da carne, carne de cabra, sempre. Os cabritos, esses eram para vender, assim como o eram os vitelos.

As vacas, duas juntas delas, ajudavam no trabalho das terras, algumas bem distantes de casa, em Eiriz, Ester ou à borda da Paiva. Atreladas aos respectivos carros de madeira de grandes rodas, faziam o transporte dos produtos dos campos, dos estrumes, dos adubos, das lenhas. Atreladas ao arado ou à charrua, lavravam os campos, preparando-os para as sementeiras.

Trazia quase sempre gente de fora a trabalhar nos seus terrenos, mas era ela quem, além de participar em toda a lida, orientava o pessoal com a garra e o saber de uma verdadeira líder. Mais tarde, um dos filhos, o Tiago, tomou ele a seu cargo toda a orientação na labuta da lavoura, já com alguns dos irmãos perfeitamente integrados neste esquema de rigorosa partilha de tarefas e de verdadeiro empenho numa equilibrada economia de subsistência. Que à mesa eram dezoito a cada refeição.

Numa das várias cortes agregadas ao núcleo habitacional, vivia um burro. Seria uma mais-valia no transporte das taleigas, uma vez que, nos seus dois moinhos, eram transformados em farinha o trigo e o milho do pão que comia grande parte da freguesia: Parada, Mós, Eiriz, Ester.





Os moinhos constituíam um recurso económico de grande importância, já que Ti Ermelinda arrecadava a maquia de um décimo no peso da farinha em cada saco de cereal. Mas não deixava de ser uma tarefa penosa, cansativa e até perigosa. Muitas vezes, em ocasiões de maior azáfama nos moinhos, como na Páscoa, em que toda a gente cozia grandes fornadas de trigo de ovos quase ao mesmo tempo, era necessário ir aos moinhos de noite ou mesmo dormir lá. Nessas situações, costumava levar consigo três dos filhos, sempre três. Prestar-lhe-iam ajuda, protecção e segurança.

Os filhos foram crescendo, fortes e saudáveis. Todos frequentaram a escola e fizeram a quarta classe. Quando podiam, iam à missa e à catequese. Todos fizeram a Primeira Comunhão. Pelo exemplo de trabalho e honestidade de seus pais, pela exigência da educação que esta verdadeira matriarca lhes transmitiu com carinho mas também com mão-de-ferro, todos se tornaram pessoas de bem e eram o seu orgulho.




Ti Ermelinda era católica, mas uma vida tão cheia de obrigações e de canseiras deixava-lhe pouco tempo para as práticas religiosas. No entanto, quando podia, ia à missa aos domingos e gostava de participar nas procissões e cortejos em dias de festa na Igreja. Nessas cerimónias, a sua voz enchia os ares de cânticos e orações.

Gostava de cantar nas vessadas e nas ceifas e de cantarolar enquanto no tanque lavava a roupa de tanta gente.

Juntava os lençóis de linho, do linho cultivado, tascado, maçado e fiado por suas mãos. Os lençóis de linho e os comprados na feira, as toalhas e outras roupas claras, como as camisas suadas dos seus rapazes, eram lavadas com sabão, estendidas em grandes coradoiros ao sol e molhadas de vez em quando com a água de grandes regadores de latão. As que teimassem no encardimento iam à barrela.

A barrela era feita a cada quinzena. Em grandes cortiços cilíndricos, a roupa era posta de molho em sabão e água morna. Passadas umas boas horas, a água era substituída por outra bem quente a ferver e a roupa coberta de cinza. Assim ficava por um ou dois dias e a seguir era lavada no tanque. Branquinha e bem cheirosa.




Os cobertores e as mantas de tiras usadas nas camas eram, uma vez por ano, lavadas na Paiva. Eram dias diferentes, cheios de cor e movimento, as mulheres de pulso metidas no rio em lugares estratégicos de grandes lavadouros, as margens armadas em estendais improvisados. Dias de árduo esforço e sempre de muita alegria.

Toda a roupa era bem esticada antes de ser estendida, pois não havia hipótese de tempo para a passar a ferro.




Ti Ermelinda do Alhões faleceu em 1984, com oitenta e dois anos de idade. Acabou de repente, pelo Natal, estava à janela a escolher os feijões para o caldo. Como se tivesse pressa de um descanso merecido. Como se, nessa pressa, procurasse ainda tempo para uma despedida, daquela janela de onde podia avistar o seu mundo, o mundo onde, pelo qual e para o qual vivera. Como se quisesse, num último esforço, morrer ainda a trabalhar.

Será sempre recordada com saudade e um misto de admiração e de respeito. O seu nome continuará a ser uma referência importante em toda a freguesia de Parada de Ester. Durante décadas, ela moeu o pão de quase todos nós, cozinhou os petiscos que tantos de nós saborearam, deu-nos exemplos de trabalho e de honestidade, espalhou o bem e consolou os pobres, inundou os ares com as suas risadas sadias, deixou-nos o seu inconfundível «ai cessa ali!».

Ti Ermelinda do Alhões é, sem dúvida, uma grande heroína, o expoente máximo das heroínas sem nome, que são as Mulheres da beira-Paiva.


Aurora Simões de Matos

in Imagens da Beira Paiva

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