CONTOS DE XISTO
Apresentação no Porto
pelo Professor Doutor Rui Lage
pelo Professor Doutor Rui Lage
Capa de Francisco Henriques
Ilustrações de Carlos Miguel Batalha
"Tinham sido criados entre sóis abertos e as neblinas do rio em manhãs de cetim, brisas frescas e ventos desassossegados, à solta pelos requebros dos montes, frios e calores de rachar a pele no curtimento autêntico da vida, chuvas a descer do céu como cordas que as nuvens lançassem à Terra.
Tinham crescido na inocência da sua aldeia xistosa, companheiros de outros meninos quase todos seus primos que, como eles tinham adormecido ao gosto de chuchas de trapo passadas por açucar, jogado o pião nas lajes macias da eira grande, feito camiões de lata puxados por um cordel, usado tamanquinhos de madeira ferrada, comprados na Feira dos Doze."
Do Conto "As Casas Gémeas"
"Ti Casimiro prepara-se agora para a última fase daquele trabalho rotineiro.
Em cima da jangada de cortiça e armado de grande vara com argola no fundo, vai enxotando o peixe. Com a ajuda das filhas a puxarem o cabeção para fazer o rodo, varre o poço com a rede de montante.
- São para aí trinta quilos bem pesados! - orgulha-se o velho pescador. E traz mais bogas que barbiscos. Amanhã vamos furtar o Poço da Frieira, o mais fundo de todos.
- Ó senhor pai, nem é preciso o travessilho!"
Do Conto "Entre bogas e alvitanas"
"A luta começa. O boi finca as patas no chão e, usando a força da sua corpulência, empurra o adversário com a testa. Chifres contra chifres, músculos retesados, baba a escorrer de raiva, olhos desvirados de nervos, rabos a enxotar pachorrências que ali não têm lugar. Bravura à flor da pele, num jogo de força e resistência."
Do Conto "Luta de bois na Feira do Fojo"
E não é que a Santa Padroeira ouviu as suas orações, aceitou a vela e fez o milagre?
No dia da festa, no fim da Eucaristia, o povo, atrás do andor da Santa, organizou-se em procissão até ao Cruzeiro, rezando e entoando cânticos.
A fechar o cortejo, o Tonho das Cancelas, com ar solene, montado na burra manca, ia respondendo às palavras do Senhor Abade:
Arre Mulata... cheia de graça... Arre Mulata... entre as mulheres... Arre Mulata... rogai por nós... Arre Mulata... agora e na hora da nossa morte. Amem."
Do Conto "Burra escondida... com o corpo de fora"
O Antropólogo e Historiador, Dr. Alberto Correia, faz a sua análise do livro
Contos de Xisto
As avós antigas contavam habitualmente os seus
contos à lareira para entretém de netos, e as narrações estavam
sempre situadas num tempo longínquo – Era uma vez…
começavam sempre assim e mesmo quando as histórias tivessem
ocorrido em seu tempo elas eram trazidas como se viessem de um
longínquo chão de memórias.
Aurora Simões de Matos, a autora de Contos
de Xisto, jamais começa as suas narrações pela
expressão – Era uma vez… - porque as
histórias que ela conta são histórias de verdade, por mais que
aureoladas por um tempo de memória, histórias vividas por ela
mesma, por ela participadas, ou acompanhadas de tão perto que ela as
interiorizou como se a ela lhe pertencessem e agora no-las entrega,
como se estivesse em sua terra e nos trouxesse uma cestinha breza com
cerejas, se tempo fosse de estarem já maduras.
De uma pequena pátria nos falam as histórias,
contidas as fronteiras desta pátria por uma estreita geografia de
pitorescas aldeias que marginam o Rio Paiva quando, ainda de longe,
se apressa para a foz. A Paiva como antes ela lhe chama, como lhe
chamam os naturais daqueles lugares, como se o rio permanecesse ali
criança, como se fosse ali ainda ribeira. [...]
Pequena pátria, essa de que a autora fala,
construída por homens, construída por mulheres, que os deuses ali
pouco fizeram para além de oferecerem o xisto, que ofereceram,
construída a partir de um chão original, desse xisto esboroado e
fecundo amparado pelos longos muros dos socalcos, desse xisto de que
nasceram as habitações dos homens e dos gados, esse sublime desenho
da paisagem quando, ao findar das chuvas, as coberturas das casas da
gente, os abrigos do gado, as abas que recobrem os canastros nos
mostram na pureza da luz do sol, lavadas, o brilho da lousa original.
Pequena pátria, que ali também foi solto Adão, ali
cumpriu seu fado, o suor do rosto para inventar uma terra que de
algum modo lhe lembrasse o paraíso. Camponeses e pastores, que
sempre foram isso, os filhos de Adão, até tempos muito próximos,
modelaram uma civilização, como diz o autor do prefácio deste
livro, modelaram uma cultura que permaneceu, surpreendentemente,
quase intocável até tempo que não vai mais longe que a memória de
nossos mais velhos avós. [...]
De outro modo se enriqueceu no tempo essa cultura com
esse fácies que lhe foi acrescentado, aquilo que hoje designamos
como património no sentido imaterial, e que tanto pode ser a devoção
familiar entre os seus membros, o sentimento da honra de um chefe de
família, a solidariedade cumprida num quadro de vizinhança, a vigia
do gado da partilha comunal, a chega dos bois na Feira do Fojo, a
queima de ervas benzidas numa tarde de trovoada, as rezas de
quebranto, da erizipela, do mau olhado, e esse outro quadro de
religiosidade ortodoxa onde, de tão forte subsiste a tradição
festiva de homenagem aos santos, e também esses resquícios de
religiosidade ancestral que na era cristã se aproveitou e cuja
leitura podemos fazer na fogueira do Natal ou do S. João, na
ludicidade do Carnaval, no assombro de uma casa guardada pelo diabo
transfigurado de caprídio.
Aurora Simões de Matos conheceu este pequeno mundo e
é nele que ancora toda a trama dos contos, assim ela lhe chama,
verdadeiramente desses pedaços de histórias de vida que ela nos
traz.
Ela sabe que esse mundo se perdeu, é arqueologia,
podemos nós dizer, como Saramago chamou ao mundo que Aquilino
descrevera nessa geografia das Terras do Demo, terra de pastores e
camponeses, como esta, só que mais crestada do sol, só que mais
exigente de suor.
A autora de Contos de Xisto incarnou essa laboriosa e
sedutora missão de salvar, através da memória, a sua terra. Já o
intentara antes com as Imagens da beira-Paiva.
Histórias exemplares, é o que ela nos traz. Mais de
trinta, mas muitas mais poderia contar.
Dentro delas está sempre aquele chão que ela pisou
nas brincadeiras da infância, nos caminhos da Escola, os trajectos
familiares da travessia dos campos, das hortas, dos pastos do gado,
da ida ao moinho, dos festivos caminhos da feira ou da romaria.
Dentro deste chão corre, remansosa ou turbulenta, a água da Paiva,
a água das pequenas levadas que regavam os milheirais, dentro dele
desce a água da chuvinha mansa propícia à sementeira do nabal, as
águas demoradas das invernias antigas, a água em catadupa das
trovoadas, e os trovões que as arrastam e os raios que às vezes
davam em tragédia como aquele que esgalhou um castanheiro e matou a
Carmita e uma parte do rebanho que a pastorita guardava. Dentro dos
contos há o cheiro das giestas que abrem no mês de Maio, há
cerejeiras em flor, pereiras com a fruta já madura pronta para o
assalto dos rapazes, renques de oliveiras como essas a cuja sombra
Mindinha adormeceu. E os carreiros à beira Paiva por onde corria a
irrequieta Maria Augusta desafiando as águas, a brincar, sob os
olhos vigilantes do avô entretido a pescar, e os carreiros que
levavam ao moinho e que levaram aquela mãe montada na burrica,
aquela mãe que perdeu no caminho o seu menino porque não pôde
chegar em tempo ao doutor.
Há também, nos seus contos, a alegre convivialidade
das romarias, as madrugadas dos ranchos que partem cantando,
descalços às vezes por todo o caminho ou tão só no passar nas
poldras ou no vau da ribeira, as promessas pagas aos santos, S.
Macário ou S. Bartolomeu, tanto faz, o cordão de oiro oferecido
como ex-voto para salvar o filho doente, a figurinha de cera deposta
num altar, os joelhos doendo no duro trajecto entre as duas capelas
no S. Macário. E o farnel feito a gosto em cesto ou cabaz com alvos
linhos e levado à cabeça, depois aberto na toalha comum.
Só depois destas paisagens construídas, das terras
desbravadas, dos caminhos feitos, vêm os homens. Os homens, como
costumamos dizer, apesar de o nome integrar os dois géneros, homem e
mulher. Só depois vêm os homens, toda a gente, por mais que a
autora diga que gosta de falar no feminino. Daí que sejam mulheres,
me parece, a maior parte das suas heroínas.
Quem são então estes heróis, estas heroínas, que
a escrita da autora assim os eleva?
Mais não são que homens ou mulheres iguais a nós.
Viveram num tempo concreto, diferente do nosso. Sofreram os dramas da
existência que nós sofremos e tiveram para eles, às vezes,
respostas semelhantes às dos remédios de agora.
Para alguns a terra não bastou, ou foi madrasta. Ou
os seus sonhos simplesmente não couberam nela. E tiveram como
destino a emigração, Lisboa, a França, ou o Brasil num tempo mais
distante. Como hoje temos. Alguns tiveram sorte. Cumpriram seus
sonhos. A árvore das patacas foi achada. Como aconteceu com os
irmãos gémeos do primeiro conto, o sol e a lua, que a estes astros
se assemelhava o carácter de ambos, irmãos e amigos, as mesmas
lutas e as casas gémeas construídas na aldeia,
ufanas na sua arquitectura e na felicidade de seus habitantes. Outros
não regressaram. Não se soube deles. Alguns voltaram pobres.
Aparecem bastas vezes, ponteando os contos. No meio destes há
mulheres, passageiras para Lisboa ou para o Brasil. Nenhuma foi
feliz. Uma delas foi, quase ao findar dos dias, chamava-se Ana Marta,
casara com um brasileiro mais velho que, depois de lua-de-mel
demorada retoma o caminho do Brasil, Ana Marta não adivinhara a
razão. Uma espera sofrida, e do jeito de um novo amor nasce Maria
Leonor que a mãe abandona ainda menina, ao cuidado da irmã mais
velha e madrinha enquanto ela, respondendo à impossível carta do
seu homem se decide a partir, os dois perdoados da escolha incerta
dos caminhos. [...]
Aurora Simões de Matos fala muitas vezes da fé em
seus contos. A fé, a sua, que radica numa formação ou catequese
antiga, e o chão sagrado da sua terra, a força do céu que observou
em menina, e os seus heróis que seguiam descalços ao redor do andor
da Virgem da Fátima peregrina, que cantavam ao lado do andor entre
Cabril e Parada, era ela menina, e a festa de arromba ao padroeiro,
S. Bartolomeu, pagadores de promessas, léguas de caminho até S.
Macário. E a crença no diabo. Basta ver o que dele dizia Ti Belmiro
Penata que o sentiu nas estranhas festas da abandonada Casa das
Rolhas, luzes caminhando sozinhas, cantares de que coro não via e,
mais tarde, quando isso passou, a presença de um bode com focinho de
macaco que vagueava entre a ruina da casa que acontecera há muito.
[...]
A autora, mulher de fé ou simplesmente mulher,
coloca também, bastas vezes, nos seus contos, o perdão, a
compaixão, dos mais puros sentimentos humanos que a gente do mundo
rural cultivava, porque do leite o aprendia. [...]
A autora dos Contos de Xisto traz-nos inúmeros
retratos desta gente sofredora, quase sempre resignada e se o
desespero alguma vez chegou, sempre se ouve uma voz compassiva para
atenuar a dor. [...]
Muitos dos contos que falam de mulheres recebem, às
vezes, um título triste. É o caso de O destino de
Carmita, a pastorita que morre, ferida por um raio quando
intenta salvar, num parto demorado, a cabra que trazia em pastoreio.
É o caso de As Mulheres da Pena, de que ela
salienta a heroicidade, particularmente daquela que enterra à boca
do cemitério a filha que parecia ir ter vida tão promissora. Nas
Histórias de Amor e Dor, Maria do Moisés não
encontra sorte, como em Isolamento e Dor a mãe
que vê desfalecer o seu menino morre um pouco em seu coração. No
Conto O Amor Magoado, Rosalina bem cativa de
mimos o marido mineiro em Regoufe. Dá-lhe doze filhos. Ficaram sete.
Os outros morreram, parece, como anjinhos. E esse amor todo do mundo
que lhe deu não resiste aos maus tratos do seu homem. No fim bebe
para esquecer o homem, o mundo e as dores. Tem apenas a compaixão da
gente que vive ao lado dela.
São estes dramas humanos, de ontem e de hoje, que a
autora do livro traz. Dramas de amores não correspondidos, de mães
adolescentes salvas pelo amor de uma madrinha, de adultérios que
parece nem terem sido pecado, da doença que não encontrou remédio.
Mas em Aurora Simões de Matos, apesar deste lado
lunar da vida, cultiva-se a esperança. Quase sempre, no fim dos
dramas, houve um abraço, ou a paz chegou. E ela celebra então a
alacridade da festa, o tempo solar e benfazejo, e celebra a euforia
da feira, esse outro festivo encontro dos homens. E celebra os sonhos
da gente e fica feliz quando os irmãos gémeos constroem as casas
novas, quando o menino que quer ser tocador de trompete tem a
promessa do mestre que o vai ensinar a tocar e evoca, tocada pelo
sentimentos que as quadras despertam o tempo propício da Páscoa das
Flores, do familiar e mágico Natal, esse tempo em que uma Estrela
ilumina os passos de um pequeno cordeiro, de um galaroz façanhudo e
de galinhas poedeiras que sobem misticamente ao presépio da igreja e
se aninham ao pé do Menino e a Estrela que parte outra vez e vai
buscar os reis Magos e eis o seu coração bondoso revelando-se, e a
generosidade cultivada num quadro de família e o sabor redivivo de
uma infância feliz, de uma vida guiada por caminhos de trabalho, de
honra, generosa, grata e solidária.
Uma pátria antiga, revelada, uma pátria que ela
ainda quer restaurar com o álacre colorido das casas gémeas, a
abundância do pão e do saber, a estrada que traga o retorno da
gente, a Escola cheia de crianças que possam aprender ali, com as
tecnologias novas, o velho falar de seus avós, que entendam os
significados do sarge e da merugem, que entendam, isso sim, que o
trabalho é redentor e que o amor só vale a pena se for compassivo e
solidário.
Alberto Correia
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