NA VOZ DO TEMPO
«É
Natal! É Natal! É Natal!»
A
notícia vinha das alturas da Fonte-Fria, lá de onde a neve e o
nevoeiro anunciavam a chegada do Inverno.
«Nevoeiro
na Fonte-Fria… chuva ao outro dia».
«É
Natal! É Natal! É Natal!»
A
notícia vinha pela brisa cortante que a neve soprava ao cair
mansinha nos cimos do monte, na voz do cieiro a gretar a pele do
tempo no corpo; atravessara matos e fraguedos, soutos e pinhais;
espalhara-se por encostas e outeiros, névoas e neblinas; e inundava
de paz os caminhos e os carreiros até chegar à Ribeira, diluída em
oração.
-
Mais um Natal! - rezou Maria Júlia num murmúrio, um raiozinho de
luz a brilhar-lhe no olhar cansado duma vida entregue ao trabalho e à
família, à saudade e tantas vezes à solidão. E, enquanto bafejava
as mãos enregeladas no codo e ajoelhava sobre o toldo crivado de
azeitona, olhou orgulhosa a grande abóbora-menina a um canto da
horta, atrás da casa.
- Fritas de abóbora, o
melhor da consoada para o meu filho, que Deus mo traga com saúde….
E, chamando para
dentro da porta do quinteiro: - Ana Marta, vê se te despachas com
esses trabalhos da escola, para me ajudares nas limpezas. Não tarda
que cheguem os teus pais e quero adiantar os fritos para amanhã.
-
Mais um Natal! - rezou de novo num murmúrio, relembrando mentalmente
alguns dos dias que lhe marcaram a vida, esses Natais que ficaram
como horizontes mitificados a que remete quanto de mais importante
guarda nas suas memórias:
O
Natal de há cinquenta anos, o primeiro que, enquanto criança, lhe
soube a festa verdadeira, risos e fartura como nunca vira à mesa da
consoada, o dia em que uma descarga de foguetes lhe anunciou, à
porta de casa, a chegada do pai, desde sempre ausente no Brasil. A
surpresa de o conhecer, a surpresa da alegria na voz e no olhar da
mãe, a surpresa da linda bonecrinha que ainda hoje guarda sobre o
roupeiro.
O
Natal seguinte, quando no mesmo dia, se calhar à mesma hora, a mãe
deu à luz um menino igualzinho ao da Nossa Senhora. E foi assim e
por isso que o irmão, ao encher a casa de risos e de fartura,
mereceu o nome de José Maria. E foi assim e por isso que, quando
nesse Dezembro lhe pegou ao colo pela primeira vez e durante mais uns
poucos de Dezembros, lhe segredou ao ouvido que um dia o pai haveria
de chegar para lhe trazer uma bola ou um pião.
O
Natal em que a mãe, doente e já sem forças, não conseguiu
levantar-se da cama e foi ela quem, pela primeira vez, assumiu aos
quinze anos as lides e o governo da casa, os cuidados com o
irmãozito, o amanho dos animais. Nada lhe custou fazer a ceia da
consoada, a troncha a fumegar ao lado do bacalhau, as rabanadas, as
filhós com mel, a aletria polvilhada de canela. Nada faltou, como se
desde sempre estivesse pronta para isso e para tudo. E foi nesse dia
que aprendeu a controlar os medos e as dores, a tomar decisões e a
enfrentar a vida com coragem.
O
Natal em que, já casada e mãe de um filho, ouviu pela rádio o seu
Quintino falar-lhe de Angola, prometendo valentia «na defesa da
integridade Pátria» e prometendo regressar «na volta do dever
cumprido».
Mas
não regressou. Restou-lhe o filho, a perpetuar o amor do único
namoro que conhecera. O seu Jaimito, a riqueza maior que a vida lhe
deu. Custou-lhe muito a criar, mas hoje sente-se uma mulher feliz.
O
filho deixara-lhe a neta que era agora a sua companhia. A vida em
Lisboa não era fácil, ambos a trabalhar longe de casa, a falta de
tempo e espaço para a criança. Não queria que a mãe fizesse mais
nada. Que lhe tratasse da menina. A casa farta, a arca frigorífica
cheia do bom e do melhor, a visita uma vez por mês com o carro cheio
de prendas. E a casa nova do seu rapaz, mesmo ao lado da que o vira
nascer. Nunca vivera tão bem.
O
Natal em que deu conta que é este o tempo certo que põe Deus em
diálogo com os homens e a vida em diálogo com as consciências e
assim aprendeu a ideia de o viver sustentado em coordenadas de fé,
de esperança e de milagre.
E,
consciente da influência que este tempo desde sempre sobre si
exerceu como estímulo que lhe afeiçoou a maneira de ser e como
resposta a que foi afeiçoando muitos dos seus sonhos e ideais,
ajoelhada sobre o toldo crivado de azeitona, rezou ainda num
murmúrio:
- Que Deus mo traga com
saúde….
Da
Fonte -Fria soprava a voz do cieiro a gretar a pele do tempo no corpo
e a lembrar cânticos de paz que, atravessando soutos e pinhais,
matos e fraguedos, névoas e neblinas, inundaram encostas e outeiros,
caminhos e carreiros até chegarem, diluídos em oração, ao coração
da Ribeira, que é como quem diz, às terras da beira- Paiva.
4 comentários:
Maravilhoso de se ler...todos temos recordações dos Natais dos tempos idos...quando o importante era a partilha e a união. Não o consumismo desenfreado dos últimos tempos.
Que o Espírito Natalício, perdure nas nossas vidas à imagem do Amor de Cristo.
Feliz Natal minha querida amiga, Aurora Simões de Matos e, para toda a sua família...
Beijinhos com muita amizade e carinho! ***
Natal de memórias,nas lembranças da personagem.Que de memórias costumam ser os natais de todos nós.
São as verdades vivas das gentes da minha região,a quem este blog se destina,em primeiríssima mão.
Não há como fugir a estas vivências ainda muito actuais.
Das minhas raízes me orgulho e tento promover esse orgulho,muito em especial nas geraçóes mais jovens.
Bem haja,Amiga Cristina Cebola...
Bom Natal também para si e para os seus.
Aurora
Que bem me sabe ler-te nestes encontros presentes com um passado tão perto ainda de mim, de nós.
beijinhos e Feliz Natal, Mulher grande da minha terra
Querida Maria Dolores Marques
Os «encontros presentes com um passado tão perto de nós...» serão sempre momentos de emoção, neste sentir pleno de vidas, cuja rudeza lhes alicerça a autenticidade.
Bem vinda, Amiga e Escritora da minha terra. A tua presença e o teu apoio enchem-me de orgulho.
O meu abraço natalício.
Aurora S. M.
Enviar um comentário