quinta-feira, 18 de abril de 2013

S O P E A M...Tertúlia Literária do Hotel Lamego---13/ 04/ 2013

                  VISITA DA SOPEAM

SOCIEDADE PORTUGUESA DE ESCRITORES E ARTISTAS MÉDICOS



TERTÚLIA LITERÁRIA DO HOTEL LAMEGO

(Fundada e dinamizada por Aurora Simões de Matos)


Homenagem aos Escritores e Artistas Médicos







A entrada da SOPEAM na Tertúlia...À frente, com a bandeira da Sociedade, o see Presidente e a Vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Lamego



Aurora Simões de Matos, coordenadora da Tertúlia, dá as boas-vindas à SOPEAM, na foto representada pelo seu Presidente e pela sua Vice-Presidente














António Lobo Antunes


INTERVENÇÃO DE LÍDIA VALADARES



O Texto Que Não Consegui Escrever

Começo por dizer que é para mim um prazer participar nesta homenagem aos Escritores e Artistas Médicos e por agradecer à Sra. Professora Aurora Simões de Matos o convite que me dirigiu. Homenagem merecida, pois muitos têm sido os escritores médicos que têm contribuído para o enriquecimento da nossa literatura e para a sua difusão além-fronteiras.

É, pois, com inefável apreço que trago até aqui o nome de António Lobo Antunes, um gigante da literatura portuguesa contemporânea e de inquestionável destaque a nível mundial. Licenciado em medicina, especializado em psiquiatria, exerceu a sua profissão de médico até 1985, altura em que decidiu dedicar-se inteiramente à escrita.

Escritor controverso, não reunindo consenso no tocante ao apreço do seu arrojado estilo de escrita, parece-me, contudo, incontestável o seu genial contributo na reinvenção de uma nova arte de narrar.

Em «Conversas com António Lobo Antunes», este escritor confessa a María Luisa Blanco:

«O que pretendo é transformar a arte do romance, a história é o menos importante, é um veículo de que me sirvo, o importante é transformar essa arte, e há mil maneiras de o fazer, mas cada um tem de encontrar a sua. A intriga não me interessa, o que queria não é tanto que me lessem mas que vivessem o livro» (Apud Blanco, 2002: 125).

Analisando o percurso literário de António Lobo Antunes, sobressaem, logo nos primeiros livros, algumas técnicas evidenciadoras de um novo rumo que o autor pretende traçar na arte do romance, destacando-se a rutura da linearidade narrativa, a fragmentação do discurso, a austera sobriedade da linguagem, a depuração de uma escrita trabalhada até ao osso e assim despida das «lantejoulas (…) de palhaço rico» (Apud Arnaut, 2008: 215), a indisciplina formal, a confusão de tempos e de vozes narrativas e a valorização do silêncio como elemento fundante do ato de comunicar. Estas técnicas foram progressiva e exaustivamente trabalhadas nos livros seguintes, onde impera o princípio da imprevisibilidade narrativa e um silêncio denso, contudo pregante de significação. As narrativas surgem como uma espécie de caóticos ditados promovidos por uma memória que, em simultâneo, parece dar voz às recordações de tempos e lugares distintos, pela mesma sequência desordenada com que esses lugares e tempos invadem a mente do protagonista, do narrador, da personagem…

Como é evidente, as inusitadas técnicas da escrita antuniana, que subvertem os canônes tradicionais da narrativa, fazem vacilar o leitor que está habituado à comodidade (como aduz Roland Barthes) de «uma prática confortável de leitura» (Barthes, 2009: 138) facultada pelo «texto de prazer» (Ibid.: 138). Todavia, esse princípio da subversão converte-se num princípio gerador de fascínio nos leitores que apreciam um texto de fruição empenhada, aquele que, segundo Roland Barthes, «desconforta […], faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do leitor, a consistência dos seus gostos, dos seus valores e das suas recordações, faz entrar em crise a sua relação com a linguagem» (Ibid.: 138), no fundo, aquele texto que desafia. E é esta fruição «in-dizível, inter-dita» (Ibid.: 144) que nos faculta o texto antuniano, onde o não-dito, o silêncio e a indisciplina formal do discurso captam o leitor para dentro do texto, obrigando-o a mergulhar profundamente até «ao fundo avesso da alma» (Antunes, 2007: 113), para poder vir a ter «uma voz entre as vozes do romance» (Ibid.: 114).

Contudo, para que o leitor possa vir a ter uma voz entre as vozes do romance, afigura-se-me de particular relevância a leitura das suas crónicas, tendo em conta a importância de que se revestem para a compreensão da escrita antuniana.

Muitos destes textos apresentam-se como sublimes espaços de metaficcionalidade, de experimentalismo linguístico e temático, de exuberância poética, estabelecendo frequentes diálogos com os romances e detetando-se uma migração de temas, de personagens, de espaços entre os dois géneros. Algumas delas são perfeitos tesouros de elaboração textual, quer pelas reflexões que encerram sobre o modo de escrever do autor, quer pela tonalidade lírica que as matiza ou, ainda, pelo modo privilegiado de dizer e de estruturar o texto.

Por conseguinte, ao invés do autor, que as encara como «textos leves» (Apud Luís, 2008: 498), julgo poder considerá-las como apurados exercícios pré-romanescos, laboriosos alicerces dos seus romances e indubitáveis chaves de leitura dos seus textos. Várias crónicas são utilizadas como campo de reflexão e análise da sua escrita, dos seus métodos de conceção, das suas técnicas de construção textual. Na crónica “O coração do coração” (2002: 45 – 47), o romance perfeito é-nos apresentado como o espelho do leitor, ideia esta que é retomada em “Receita para me lerem” (Antunes, 2007: 113 – 116), onde o livro ideal é considerado como o espelho em que a imagem do leitor e do escritor possam fundir-se numa só, fazendo uma aventura em conjunto ao negrume do inconsciente, à raiz da natureza humana. Nesta última crónica, o escritor manifesta a exigência da participação da voz do leitor entre as vozes do romance, afirmando não existirem nas suas obras sentidos exclusivos nem conclusões definidas. Em “A confissão do trapeiro” (Antunes, 2006: 133 – 135), confessa que o material dos seus romances é composto por aquilo que os outros deitam fora – “despojos, restos, fragmentos, emoções truncadas, sombras baças, inutilidades minúsculas” (Antunes, 2006: 133) – e onde ele descobre “brilhos, cintilações, serventias” (Ibid.:133). E é costurando os textos com estes restos insuspeitados que António Lobo Antunes procura evitar o “Já escrevi isto amanhã” (Antunes, 2011: 93 – 95) e compor livros ou sinfonias que sejam como “uma bela desordem precedida de furor poético” (Antunes, 2007: 137), onde reina a imprevisibilidade na disposição dos restos. A crónica “Explicação aos paisanos” (Antunes, 2006: 169 – 172) reforça esta ideia e reitera a condenação do óbvio “no sentido de uma clareza transparente que não oferece resistência” (Seixo, 2010: 202).

Na esteira do que tem sido exposto, torna-se evidente que a escrita de António Lobo Antunes aposta na rutura da estrutura clássica da narrativa, estilhaçando as categorias que tradicionalmente a sustentavam, dissolvendo o espaço e o tempo cronológico, fragmentando a linearidade da ação e povoando o texto de vozes, silêncios, pensamentos e monólogos que se atropelam. A soberania da voz narrativa é substituída pela intervenção de uma multiplicidade de vozes que se intersetam e que, pelas suas presenças, ausências e suspensões, marcam um ritmo peculiar do texto, tal como acontece com o jogo de presenças e ausências dos instrumentos numa composição musical. Vários são os pontos de contacto que têm sido identificados entre a escrita antuniana e a escrita musical, tendo a legitimidade deste paralelismo crítico sido já confirmada pelo próprio escritor, que tem declarado veemente e repetidamente a influência que a música tem assumido na construção do seu singular estilo de escrever.

A crónica «De Deus como apreciador de Jazz» (Antunes, 2007: 137-139) reveste-se de um valor considerável no tocante à compreensão da narrativa antuniana, uma vez que o autor nos conduz, de forma magistral, ao mundo da música para nos explicar a influência que esta teve na sua escrita e nos aponta o Jazz como um forte indicador da composição e da legibilidade textuais.

Tal como na partitura os sons e os silêncios se entrelaçam, também no texto se verifica a existência relacional entre palavra e silêncio, sendo a sua articulação uma arte que desafia o leitor à sua interpretação e se a «música, ou arte das Musas, pode ser definida como a arte de combinar sons sobre uma tela de silêncio, a partir de regras variáveis de acordo com o lugar e a época» (Smedt, 2006: 69), também a escrita de Lobo Antunes pode ser entendida como uma combinação de palavras sobre uma tela de silêncio tecida numa retórica da supressão, da elipse e da rutura sintática. Existe, assim, no texto uma espécie de velatura que se apoia no silêncio, no não-dito e no discurso imprevisivelmente interrompido, sobressaindo dessa mesma velatura a ausência de um travejamento diegético mitigada pela convocação do leitor, a fim de que este possa ressuscitar o sentido que o narrador eclipsou do texto.

Retomando a analogia com o Jazz, assim como Charlie Parker, Lester Young e Ben Webster introduziram marcantes alterações no mundo da música (do Jazz, em particular), também Lobo Antunes rompeu com o ritmo previsível das narrativas, jogando com as entradas da palavra e do silêncio em tempos insuspeitados. Está subjacente à obra antuniana a ideia de surpreender, de chocar, de captar a concentração do leitor, sugando-o para o interior do texto. Tal como o Jazz é marcado pela imprevisibilidade dos sons, em termos de presença/ausência, intensidade e ritmo, também na escrita de Lobo Antunes é possível encontrar processos muito próximos da construção desse tipo de música. Podemos, assim, dizer que estamos perante uma técnica de construção textual inovadora e que exige um engenho apuradíssimo para evitar o desmoronamento de todo o «edifício» verbal, competindo ao leitor, cúmplice desse trabalho de engenharia textual, colaborar na tarefa de dar sentido às lacunas, às pausas e aos cortes discursivos.

Espera-se, então, que o leitor, em estreito dialogismo com o texto, reaja ao desafio da (des)ambiguidade interpretativa que lhe é proposto, investigue a identidade das falas, organize os fragmentos desordenados, una os fios narrativos soltos e preencha os vazios ou escreva nos silêncios, pois, como afirma Lobo Antunes a Luísa Jeremias, «ler é escrever. E quando estamos a ler um livro também o estamos a escrever» (Apud Jeremias, 2008: 377). Destaca-se, assim, o papel de relevo atribuído à interação entre o leitor e o texto, revelando o construto textual, na linha da Théorie de l’effet esthétique de Wolfang Iser (1976), mais ênfase no efeito que a obra pretende provocar no leitor do que na transmissão da intenção autoral, visando-se, pois, um sentido multívoco para o texto literário. Deste modo, parece-nos que a busca incessante do silêncio na narrativa antuniana ambiciona o papel ativo do leitor face ao texto, exigindo um leitor participativo. Neste sentido, a escrita antuniana, repleta de implícitos e de silêncios, afigura-se-nos um apelo constante à reescrita do leitor, pois como Pierre Van Den Heuvel sustenta, «la parole de l’implicite est toujours un silence, le plus souvent volontaire, par lequel le locuteur fait appel à la faculté de déduction chez son interlocuteur» (Heuvel, 1985: 93).

E, neste momento, assalta-me o pensamento  “A crónica que não consegui escrever” (Antunes, 2007: 107 – 111) de Lobo Antunes, pela similitude da situação em que me encontro. Tal como o autor, que a inicia com o desabafo “Estou há meia hora aqui sentado à espera que me venham as palavras para esta crónica e nada. De que vou falar?”, também eu, ao iniciar este texto pensava: “De que vou falar?” É que falar de António Lobo Antunes em tão curto espaço de tempo é quase uma tarefa impossível, uma utopia. E, chegada ao fim, reconheço que não, não consegui falar de Lobo Antunes. Portanto, finalizo este texto parafraseando a referida crónica, assumindo que este foi “O texto que não consegui escrever”.



     Resta-me esperar que as notas soltas que aqui deixo possam, de algum modo, contribuir para seguirmos os conselhos de António Lobo Antunes, não lendo os seus livros, mas intentando vivê-los, vendo as nossas sombras nos espelhos das suas páginas e sendo uma voz entre as vozes dos seus romances

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Lídia Valadares

Hotel Lamego, 13 de Abril de 2013











Lídia Valadares
(Estudiosa de Lobo Antunes)  

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