segunda-feira, 18 de junho de 2012

D. ANTÓNIA FERREIRA, UMA DAS VOZES MAIS FASCINANTES DE SEMPRE, NESTE DOURO VINHATEIRO


FERREIRINHA - A VOZ DE UMA LENDA”

                                                           

A VOZ DE UMA LENDA

Desde sempre me senti fascinada por uma das Vozes maiores deste Douro, que lhe ofereceu e a quem ofereceu a razão e o sentir de uma vida ímpar, perpetuada na intemporalidade de forças, convicções, ideais e sensibilidades que a transformaram na Figura quase lendária em que o mito, de mãos dadas com a História, paira ainda nas águas e nas margens deste rio que a viu nascer, assistindo ao crescer e ao pulsar de um percurso impetuoso, com rasgos de heróico desassombro. Deste rio que a viu morrer.

Do Douro e para o Douro, a Voz da “Ferreirinha” emerge em fragilidades e forças misteriosas, a repercutirem a fidalguia e a ruralidade de uma região em que a Mulher, por força de todas as circunstâncias, pode ainda e sempre rever-se na coragem, na persistência e na generosidade desta grande senhora. Na humilde altivez de quem, vencendo pequenas e grandes barreiras, se impôs ao respeito, à admiração e ao carinho dos grandes nomes e das gentes mais ignoradas. Na independência de quem, desafiando todos os preconceitos, se impôs pela agudez da inteligência, pelo desassombro de atitudes, pela audácia de actos que marcaram uma época. Na defesa de valores ancestrais, como a multiplicação do património, a solidariedade para com os desprotegidos, a coesão da família, a delicadeza de sentimentos. Mas também a coerência de um carácter moldado ao arrepio de todas as convenções.



Antónia Adelaide Ferreira nasceu em 1811. Descendente de abastados proprietários do Douro, foi muito devido à sua iniciativa empreendedora que esta região se cobriu de cepas em vastíssimas extensões e que o vinho do Porto levou a todo o mundo o nome de Portugal, em sabores e aromas inconfundíveis. Nas suas vinte e cinco quintas, desde Barqueiros até Barca de Alva, desbravou terrenos até aí incultos, ajardinou a paisagem de opulenta riqueza, abriu caminhos e estradas, construiu casas sólidas e luxuosas. Edifícios modelares, apoiados por grandes armazéns.
 Empregou mais de mil trabalhadores ao mesmo tempo. Nas suas quintas do Vesúvio, Travassos, Monte Meão, Mileu, Nogueiras, Granja, Valado, Boavista, Aciprestes, Vila Maior, etc., chegou a colher por ano 4000 pipas de vinho. Resultado da multiplicação dos bens que havia herdado da família. Resultado de colossais plantações e replantações quando, cerca de 1870, a filoxera trouxe a devastação e a tragédia às vinhas do Douro.

Casa da Quinta do Vesúvio (Olhares.pt)
Seu avô, José Bernardo Ferreira, era já homem de muitos haveres. Morreu fuzilado por soldados franceses durante uma patrulha, na terceira invasão, porque estes o tomaram por um seu desertor, devido ao primor com que falava a língua de Napoleão. Deixou três filhos: José Bernardo, pai de D. Antónia, António Bernardo e Francisco.

Dos três descendentes deste avô azarado, herdou a “Ferreirinha” o que cada um tinha de melhor. Se do tio mais velho, António, lhe veio o rasgo de génio e a enorme perícia para grandes golpes comerciais, que a transformariam num dos maiores vultos do mundo empresarial português, ao tio Francisco foi buscar a originalidade, a irreverência, o desapego a certos padrões vigentes. Mas foi o pai, José Bernardo, quem lhe legou a excepcional bondade.
Continuando a obra social que o seu progenitor vinha desenvolvendo no Douro, empenhou-se em actos de generosidade que lhe valeram a veneração do povo e o nome carinhoso de “Ferreirinha”. A sua acção está presente na construção dos hospitais da Régua, Lamego, Vila Real, Moncorvo, Misericórdias do Porto. E as Caldas do Moledo são obra sua. O balneário, as piscinas, o parque que compõem as termas tiveram a presença dos reis e da alta roda de Lisboa e Porto. O Palácio do Moledo foi construído, para D. Antónia receber El-Rei D. Luís.
Nas suas casas, espalhadas pelos quatro cantos do Douro, recebeu ilustres personalidades, figuras de Estado, altos dignitários da Corte, portugueses e estrangeiros da mais alta estirpe.


                                                            Barão de Forrester

Dentre eles, destaque para um britânico, o barão de Forrester, grande defensor da qualidade do vinho do Porto, a quem a Câmara do Peso da Régua declarou “Protector do Douro”. Mas o rio que ele tanto visitara, medira, desenhara, fotografara, estudara e amara, onde tanta vez navegara, causando, com o seu luxuoso rabelo, o deslumbramento e o espanto das gentes, matou-o tragicamente, durante um naufrágio, junto ao Cachão da Valeira. Assistiu ao desastre D. Antónia, que naufragou também, mas acabou por salvar-se.
A “Ferreirinha” e o barão de Forrester são duas das figuras mais importantes de sempre na região duriense. Pela força das suas personalidades, pelo rasgo dos seus génios, pelas suas lendárias aventuras.

O primeiro marido de D. Antónia,  primo direito António Bernardo Ferreira, filho de seu tio António, formou com ela um casal elegantíssimo, que fazia as delícias dos salões de festas de Lisboa e do Porto. Fez grandes obras na Quinta do Vesúvio, que causaram a admiração de quantos por ali passavam. Ausentava-se por grandes temporadas ao estrangeiro, entregue a hábitos de luxo e requintados prazeres, esbanjando grande parte da sua enorme fortuna, o que muito desgostava D. Antónia. Morreu em Paris, apenas com 32 anos, deixando a jovem viúva com dois filhos menores e o encargo de administrar, sozinha, a maior casa agrícola do Douro.

O segundo marido, Francisco José da Silva Torres, fora o seu principal procurador. Homem de bem, amigo fiel, sempre estivera a seu lado nos bons e nos maus momentos. Foi par do reino e amigo íntimo do rei D. Luís e de Fontes Pereira de Melo. Incansável no apoio à mulher, conseguiu, em 1865, a liberdade de comércio dos vinhos do Alto Douro, um sonho antigo da família Ferreira. Morreu em 1880.

Vinhas do Douro (Dourofotos)

D. Antónia, de novo viúva e só, continuou, mesmo em idade avançada, a gerir as suas empresas com um dinamismo excepcional, a espalhar caridade e promoção social. O povo venerava-a. Quando passava a sua carruagem, mesmo vazia, os camponeses, em sinal de respeito, tiravam o chapéu.
Morreu em 1896, aos 85 anos, na sua Casa das Nogueiras, rodeada pela família, a quem fora tão dedicada. A sua perda foi muito sentida, não só na região, como a nível nacional.

Dela se contam muitas histórias, umas verdadeiras, outras cheias de fantasia. Atribuem-se-lhe amores e desamores, romances e aventuras, dramas e brejeirices. Tudo isso, aliado ao facto de poucos se poderem gabar de ter tido com ela familiaridade, contribui para o adensar do mistério que a tornou numa das lendas mais vivas que paira sobre o Douro, onde, segundo os crédulos do fantástico, o seu espírito continua a vaguear por entre os bardos. Do Douro e para o Douro, a Voz da “Ferreirinha”.

***
POR MARIA D'ASSUNÇÃO,
 CONTRA O DUQUE DE SALDANHA

Pelas terras durienses
Caía a noite de breu
E a noite escura caiu
Também no coração seu
***
De encontro à alma apertava
A filha, com muito amor,
E pela noite fugiam
Aterradas de pavor
***
Mosteiro das Chagas - Lamego
(igogo.pt)
De Travassos ao Mosteiro
Muita lágrima chorou
E nas Chagas, em Lamego
Umas horas pernoitou
***
Dali a Vila Real
Disfarçada de campónia
Teve o apoio da gente
Que tanto amou D. Antónia
***
Sempre abraçada à filhinha
Por Maria d'Assunção
Soluçava a Ferreirinha
E não dava a sua mão
***
Sua mão tão pequenina
Pois onze anos teria
Queria o Duque Saldanha
Com seu filho casaria
***
Àquela hora, Travassos
Estaria já cercada
Pelos homens do Marechal
Que à força a queriam casada
***
Mas as duas, em burrinhos
Já a caminho de Espanha
Mãe e filha estavam salvas
Das mãos do Duque Saldanha
***
E para Londres seguiram
Para aí permanecer
Até Saldanha cair
E perder todo o poder
E Maria d'Assunção
Ter idade de escolher


Estas quadras muito simples, ao jeito da literatura de cordel tão vulgar no século XIX, bem podiam ter sido vendidas em folhetos, contando o drama que comoveu o País, ainda hoje nos enche de ternura e ilustra bem a fibra e a sensibilidade desta insigne Mulher capaz de desafiar os mais poderosos pelas suas convicções e sobretudo de, como qualquer mãe, expor a vida por sua filha.

São feitas desta raça as Mulheres do Douro, de quem a “Ferreirinha” é certamente um emblema, a guardar com o maior respeito e com o maior orgulho.


Aurora Simões de Matos
(Do livro "Vozes do Douro
Antologia de Textos Durienses" - 2004
Edição da Câmara Municipal de Lamego)

2 comentários:

Prazeres Caseiro disse...

Maravilhoso. O que fez D. Antónia foi extraordinário.

raiz de xisto disse...

Muito obrigada pelo comentário, querida Prazeres Caseiro. A Ferreirinha foi um exemplo muito digno, do qual devem orgulhar-se as mulheres do Douro!