quinta-feira, 1 de novembro de 2012


Emigração para o Brasil
no século XX



As mulheres casadas-viúvas da minha terra





Leonor era uma das muitas mulheres casadas - viúvas que, por meados do século XX, me lembro viverem na minha aldeia, em todo o Vale e nas serras ao redor.
Casada de fresco, partira-lhe o homem, em resposta à «carta de chamada» enviada pelo sogro, que desde quase sempre vivera e trabalhara do outro lado do mar.
Ficou grávida de três meses, carregando no ventre um filho que só conheceria o pai aos dez anos, quando Malaquias Brasileiro, de paletó claro, duas malas carregadas e sotaque na fala e nos costumes, veio de visita à terra.


Nessa altura, Leonor tirou o luto e fez tréguas com a vida. Aviou-se de cores garridas na loja do Pontes, jantou várias vezes no Ivo de Castro Daire e foi de carro de praça à Senhora dos Remédios. Esbanjou alegria e rejuvenesceu dez anos. Esqueceu saudades, arranjou tempo para se enfeitar, até cortou o cabelo. Deixou de lado a escrita das longas cartas ao serão. Comprou um gira-discos e a máquina de costura. Entrou em obras com a casa e aumentou-lhe um quarto para o filho e uma casa de banho. Leonor fazia tréguas com a vida.


Curtas tréguas. Habituado a horizontes mais largos, que lhe ofereciam a única possibilidade de mais uns bens, dois lameiros mesmo à borda da Paiva, que andava a namorar há muito, Malaquias de novo partiu para o Brasil. Foi ao outro dia da Feira dos Doze do mês a seguir ao Natal, numa madrugada feita do codo cristalizado na alma de Leonor.


Novamente de luto, sentindo ainda nas fontes a latejar o eco do toque a quebrados do seu coração, com outro filho na barriga, assumiu de vez para com a sorte o crónico ressentimento que a tornara calada, triste e amarga. Destinada à solidão daquele amor sofrido, na grande injustiça de uma situação em que, por necessidade de cumprir a legítima ambição de oferecer aos filhos uma vida mais desafogada, os privava e se privava do que de melhor tinha a vida em família, Leonor foi construindo, a pulso, o lugar de uma das muitas heroínas anónimas da minha terra.


E à noite, feita num molho, depois de rezar as contas com os filhos, a ideia voava-lhe para lonjuras onde nunca haveria de chegar, à procura do seu homem. Porque era sempre nele que repousava o pensamento exausto das canseiras, saudades e esperanças duma vida injusta. Porque era sempre nele que buscava forças para, sozinha, ir criando os filhos que, indiferentes ao seu desgosto, cresciam tranquilamente à beira-Paiva.

















Carta para o Brasil                                    

E o Zezito escrevia….

Zezito escrevia ao pai

as “ palavras mal notadas”

com lágrimas embrulhadas

pela voz de sua mãe:



«Meu querido Malaquias:


Muito estimo que estejas de saúde,

que nós ficamos bem, graças a Deus.

Escrevo-te esta carta mal notada

para te dizer….


Que a vida sem ti é nada

neste vale de sofrimento;

que o luto do meu lenço

é o retrato da alma

que, por ti, pena no tempo.

E tanto tempo já é,

que chego a perder a fé

que um dia acabe o tormento.



A “ Morena” já pariu

e a bezerra tem também

o sinal do mesmo lado

que o tinha sua mãe;

no quelho detrás da casa

crescem alfobres de couves

e a sorte do Loureiro,

as da Ilha e do Vieiro

parecem jardins em flor

que, a pensar no nosso amor,

arranco ao chão do lameiro.



O teu padrinho morreu,

foi ontem a enterrar;

os povos das redondezas

o foram acompanhar.

A ti Ana Zeferina

casou a última filha

na Igreja da Freguesia;

há muito que se não via

boda com tanta alegria.


O nosso filho mais velho

no mês que vem vai às sortes

e, se Deus o ajudar,

há-de ficar apurado

e ser um bom militar.



Só me resta despedir

e desejar-te saúde

para poderes ajuntar

para a casa que queremos

e que , em breve, possas vir

juntar-te a nós e acabar

esta vida que sofremos.



Fico à espera da resposta

já na volta do correio.

Recebe os cumprimentos

dos amigos e vizinhos

e beijos dos nossos filhos.



Com a saudade maior,

tua mulher

Leonor.»


Aurora Simões de Matos
in Imagens da beira-Paiva

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