Emigração para o Brasil
no século XX
As mulheres casadas-viúvas da minha terra
Leonor era uma das
muitas mulheres casadas - viúvas que, por meados do século XX, me
lembro viverem na minha aldeia, em todo o Vale e nas serras ao redor.
Casada de fresco,
partira-lhe o homem, em resposta à «carta de chamada» enviada pelo
sogro, que desde quase sempre vivera e trabalhara do outro lado do
mar.
Ficou grávida de três
meses, carregando no ventre um filho que só conheceria o pai aos dez
anos, quando Malaquias Brasileiro, de paletó claro, duas malas
carregadas e sotaque na fala e nos costumes, veio de visita à terra.
Nessa altura, Leonor
tirou o luto e fez tréguas com a vida. Aviou-se de cores garridas na
loja do Pontes, jantou várias vezes no Ivo de Castro Daire e foi de
carro de praça à Senhora dos Remédios. Esbanjou alegria e
rejuvenesceu dez anos. Esqueceu saudades, arranjou tempo para se
enfeitar, até cortou o cabelo. Deixou de lado a escrita das longas
cartas ao serão. Comprou um gira-discos e a máquina de costura.
Entrou em obras com a casa e aumentou-lhe um quarto para o filho e
uma casa de banho. Leonor fazia tréguas com a vida.
Curtas tréguas.
Habituado a horizontes mais largos, que lhe ofereciam a única
possibilidade de mais uns bens, dois lameiros mesmo à borda da
Paiva, que andava a namorar há muito, Malaquias de novo partiu para
o Brasil. Foi ao outro dia da Feira dos Doze do mês a seguir ao
Natal, numa madrugada feita do codo cristalizado na alma de Leonor.
Novamente de luto,
sentindo ainda nas fontes a latejar o eco do toque a quebrados do seu
coração, com outro filho na barriga, assumiu de vez para com a
sorte o crónico ressentimento que a tornara calada, triste e amarga.
Destinada à solidão daquele amor sofrido, na grande injustiça de
uma situação em que, por necessidade de cumprir a legítima ambição
de oferecer aos filhos uma vida mais desafogada, os privava e se
privava do que de melhor tinha a vida em família, Leonor foi
construindo, a pulso, o lugar de uma das muitas heroínas anónimas
da minha terra.
E à noite, feita num
molho, depois de rezar as contas com os filhos, a ideia voava-lhe
para lonjuras onde nunca haveria de chegar, à procura do seu homem.
Porque era sempre nele que repousava o pensamento exausto das
canseiras, saudades e esperanças duma vida injusta. Porque era
sempre nele que buscava forças para, sozinha, ir criando os filhos
que, indiferentes ao seu desgosto, cresciam tranquilamente à
beira-Paiva.
Carta
para o Brasil
E
o Zezito escrevia….
Zezito
escrevia ao pai
as
“ palavras mal notadas”
com
lágrimas embrulhadas
pela
voz de sua mãe:
«Meu
querido Malaquias:
Muito
estimo que estejas de saúde,
que
nós ficamos bem, graças a Deus.
Escrevo-te
esta carta mal notada
para
te dizer….
Que
a vida sem ti é nada
neste
vale de sofrimento;
que
o luto do meu lenço
é
o retrato da alma
que,
por ti, pena no tempo.
E
tanto tempo já é,
que
chego a perder a fé
que
um dia acabe o tormento.
A
“ Morena” já pariu
e
a bezerra tem também
o
sinal do mesmo lado
que
o tinha sua mãe;
no
quelho detrás da casa
crescem
alfobres de couves
e
a sorte do Loureiro,
as
da Ilha e do Vieiro
parecem
jardins em flor
que,
a pensar no nosso amor,
arranco
ao chão do lameiro.
O
teu padrinho morreu,
foi
ontem a enterrar;
os
povos das redondezas
o
foram acompanhar.
A
ti Ana Zeferina
casou
a última filha
na
Igreja da Freguesia;
há
muito que se não via
boda
com tanta alegria.
O
nosso filho mais velho
no
mês que vem vai às sortes
e,
se Deus o ajudar,
há-de
ficar apurado
e
ser um bom militar.
Só
me resta despedir
e
desejar-te saúde
para
poderes ajuntar
para
a casa que queremos
e
que , em breve, possas vir
juntar-te
a nós e acabar
esta
vida que sofremos.
Fico
à espera da resposta
já
na volta do correio.
Recebe
os cumprimentos
dos
amigos e vizinhos
e
beijos dos nossos filhos.
Com
a saudade maior,
tua
mulher
Leonor.»
in Imagens da beira-Paiva
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