segunda-feira, 5 de novembro de 2012


História de uma Vida – A Sobrevivente
(Continuação)


(Biografia romanceada de Maria do Céu Trindade, que reside há 25 anos no Lar da Santa Casa da Misericórdia de Castro Daire e que, no próximo mês de Dezembro, completa a bonita idade de... 110 anos)








Capítulo II



Na salita, media, cortava, alinhavava, provava, cosia os buréis, os riscados, os linhos e muito mais tarde os modernos terilenes que lhe cobriam a cama de ferro, a um canto. Tecidos que esperavam a sua mão de hábil artista. O ferro de brasas aceso, com que havia de alisar as peças de roupa que ali ia confeccionando, como alfaiate prestigiado que era. Obra não lhe faltava, ajudado pela mulher. Obra para as aldeias, os lugares e as quintas ao redor. Das redondezas chegavam os fregueses, vindos das lojas da vila ou da feira do Crasto, com os panos à cabeça, atados com uma guita. De tudo fazia e fazia bem. Mas o orgulho maior, sentiu-o ele, quando costurou a farda para a antiga música de Castro Daire. Do seu trabalho de alfaiate haveria de sustentar a casa, que as territas pouco davam, nem para o dia-a-dia. E ele tinha ambições para os filhos.

Tinha ambições para os filhos. E eles eram quatro. Ou cinco, contando com a rapariga, que também comia e a quem igualmente queria muito bem. Tinha ambições para os filhos. Queria vê-los crescer saudáveis e felizes. Queria muito que, da Quinta da Seara, os seus rapazes saltassem os socalcos e se embrenhassem no mundo.

Queria mostrar-lhes que o barroco do lameiro fundeiro das suas terras não era nada comparado com a Paiva, lá em baixo, onde tantas vezes já fora deitar as redes, na mira de sorte na pescaria que lhe valesse um petisco para o jantar do meio-dia de Domingo. Mas que a Paiva, mansa de consolo em Verões de abrasar o corpo e o chão, ou brava de meter medo em Invernos rigorosos, quando o bramido das águas se ouvia por todo o vale, a Paiva era uma criança até chegar ao Douro, soberbo de orgulho e de força. E que, mergulhadas as suas águas no caudal do grande rio, mesmo assim continuava a ser uma criança trémula de medo, ao enfrentar o mar imenso.






O mar, o mar imenso... Tão grande, que o vapor demorara quase um mês a atravessá-lo. E os seus rapazes tinham que ver e que sentir a imensidão das coisas. Da água e da terra. Das cidades e das gentes por esse mundo fora. Que os seus rapazes não haviam de ser menos que os filhos dos outros. Dos outros, dos que ele conhecera no Brasil, onde se ganhava dinheiro certo e não faltava trabalho. E não haviam de faltar oportunidades para os seus rapazes serem alguém.

Era esse o maior sonho de João Trindade. Por isso, quando cada um deles chegou à idade de aprender a ler, obrigou-o a ir para a escola. Já se sabia que ficava longe, os caminhos eram carreiros ruins de atravessar até Vila Seca, a perto de uma hora de distância, o lugar mais próximo onde a Mestra ensinava um grupo de rapazes, numa salita meia escura. Tudo rapazes. Não era que fossem obrigados, naquele tempo, à frequência da escola. Mas quem soubesse ler e escrever tinha o futuro garantido.

No caso das raparigas, a situação era diferente. Eram raríssimos os casos em que os pais dispensavam as filhas do trabalho e as mandavam para a escola. Nem haveria necessidade disso – pensava João Trindade. Para quê mandar para a Mestra a única rapariga que o Senhor lhe deixara ficar? Para quê, se a vida da mulher era no lar, a tratar do homem, dos filhos, da casa, dos animais e das terras, se adregasse de as ter? Que sempre uma mulher haveria de arranjar que fazer e onde empregar forças e afectos. Que sempre uma mulher ficaria melhor no aconchego do lar, que por esse mundo fora, louvado seja Deus!

Louvado seja Deus, que a João Trindade calhara-lhe a sorte grande. Mulher trabalhadeira a sua. E respeitadora. Amiga do marido e cumpridora dos seus deveres de mulher e mãe. Que Deus lha conservasse.

Maria Emília de seu nome, filha de gente de bem, família de boa formação religiosa e moral, tia de Padre, era ela o grande apoio daquele lar. Nunca se lhe ouviu uma praga, um maldizer, um berro zangado. A calma em pessoa, era esta mulher que, desde madrugada, não parava até altas horas da noite. Para tratar da casa, dos filhos, do homem. E de tudo o resto, que a seu cargo tinha tudo o resto. Animais e terras. E as compras na vila ou na loja de Sobradinho, ou na de Ribas. E a lã para fiar e fazer caturnos. E o linho para semear, mondar, regar, colher, massar, tascar, limpar, fiar, dobar, tecer. Do pouco linho que conseguia cultivar no lameiro do meio, abaixo da casa. Que haveria de lavar na barrela e estender no coradoiro, em lençóis e brancas toalhas. E, pela noite fora, ajudar o homem na costura. Que o tempo fez-se foi para trabalhar.

O que lhe valia era a filha, a única que o Senhor lhe deixara, desde que a última lhe morrera, com doze anos apenas. A sua Margarida, que Deus havia de ter no céu. O que lhe valia era a filha. A Céuzita, calma e obediente como a mãe, trabalhadeira como a vida lho exigia. Humilde e meiga como a mãe, responsável e atenta como o pai lho exigia. Sorridente e acomodada como a mãe, discreta e púdica como o Senhor Abade lho exigia. Que a sua religião e os ensinamentos da Santa Madre Igreja tinham grande peso nas famílias e nas pequenas comunidades espalhadas por todo o vale da Paiva e serras ao derredor.

- Ó senhora mãe, daqui por quinze dias é a festa de Nossa Senhora do Carmo. Já falta pouco para o 16 de Julho. E eu queria estrear uma saia e um lenço da cabeça...
- Já sabes que o teu pai te dá sempre qualquer coisa para estreares no dia da festa. Mas é só uma peça, que os teus irmãos são quatro e eu prometi que dois deles haviam de levar o andor de Nossa Senhora na procissão. Sempre têm que ir bem arranjados. Tu contenta-te com a saia, ou com o lenço. Eu falo com o teu pai.
- Mas eu é que sou a mordoma da festa... Também gostava de ir bem arranjada!
- E vais, e vais, minha filha. Vai ser a rapariga mais linda daquela festa! - aconchegava a mãe.
- Ó senhor pai, então sempre me dá a saia para a festa? E também me dá um lenço? Já nem lhe peço uma blusa de chita...
- Era o que faltava! Ainda no inverno te fiz uma nova.
- O riscado já se rasgou. Também... ando sempre com ela... Tanto se suja e tanto se lava, que tem que se romper.
- Não respondas ao teu pai! - repreendeu João Trindade, de mau humor.
- Tenho sempre que me calar. Já sei, já sei...
- Ela anda a ficar muito atrevida! Também me responde a mim! Não sejas malcriada, Céu. Senão, pode sair-te cara a brincadeira! - aconselhou o irmão mais velho, em tom irónico.
- Eu não disse mal nenhum...
- A pequena não disse nada que ofendesse ninguém, valha-me Deus! Só pediu uma saia e nada mais...
E dirigindo-se à filha:
- Vai segando o caldo, que eu já vou ter contigo para conversarmos.

Maria do Céu já não ouviu a mãe. Cabisbaixa, meteu-se em casa a resmungar sozinha. Que não havia direito, os rapazes tinham tudo e faziam o que lhes apetecia. Ao contrário dela, que tinha que se calar a tudo. Pegar no que lhe dessem, sem nada poder pedir. Mas o que mais a deixava triste era o pai pôr-se sempre do lado dos irmãos. Que, esses sim, davam-lhe cabo do juízo. «Céu para aqui, Céu para ali, Céu para tudo e mais alguma coisa».

Não era que não fossem amigos dela, mas falavam como se fossem todos seus pais.

- Não vês que o irmão só te quer bem? Quer é fazer de ti uma mulher como deve ser, valha-me Deus! - contemporizava a mãe, com aquela calma na voz.

Aquela calma que enchia o lar de paz. Que fazia de todas as horas, momentos de carinho e de sossego.




Aurora Simões de Matos

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